"Desnazificação" acordou fantasmas da religião. “A Ucrânia é o único país, além de Israel, que tem um chefe de estado judeu”

6 mar 2022, 08:00
Volodymyr Zelensky (Getty Images)

Quando Putin invocou o nazismo para justificar a invasão da Ucrânia, tocou numa pele sensível do passado. Dias depois, bombas russas destruíram um cemitério judeu, sendo que Volodymyr Zelensky, presidente do país, tem ascendência judaica. A guerra não é um conflito religioso, mas há leituras relacionadas. E pode haver consequências? Sim

“Desmilitarizar e desnazificar”, estes foram os argumentos usados pelo presidente russo, Vladimir Putin, para justificar a invasão da Ucrânia. A invocação do nazismo despertou um fantasma do passado na região e levantou um lado religioso. Mas será a religião uma tema desta guerra? A CNN Portugal falou com várias personalidades para perceber se há fundamentos religiosos nesta guerra e se o desfecho do conflito trará mudanças na área espiritual. Todos garantem que "não existe um conflito religioso", mas assumem que a invasão poderá ter consequências em alguns patriarcados ortodoxos. A igreja ortodoxa tem uma grande influência na região.

“A liderança de Putin está a ganhar contornos irracionais”, afirma José Eduardo Franco, professor catedrático convidado da Universidade Aberta, vice-presidente da Sociedade Internacional de Estudos Jesuítas (Paris) e membro da direção da Sociedade Portuguesa de Retórica. É ele próprio que sublinha que Putin “ativou um fantasma do tempo da II Guerra Mundial”, no que seria “uma mensagem interna” para justificar a invasão ao povo russo.

Na opinião de José Eduardo Franco, a referência aos neonazis “é uma justificação fora de tempo e fora de contexto. Que caiu por terra quando um importante cemitério judeu foi destruído” num ataque a uma torre de televisão, em Kiev. Sobre a referência aos judeus, implícita no termo “desnazificar”, acredita que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, de ascendência judaica, era um alvo.

A verdadeira “questão” nesta invasão não é a religião, diz, “o que está em questão é o nacionalismo russo, a unidade nacional”, a ideia de que a Ucrânia “é um território que pertence à Mãe Rússia”.

Recorde-se que o próprio presidente ucraniano se dirigiu aos judeus, após a destruição do cemitério em Baby Yar, onde ficava a torre de televisão atacada, nos arredores de Kiev, e onde as tropas da Alemanha nazi massacraram milhares de judeus e cidadãos de origem cigana em 1941:

"Estou a falar agora aos judeus do mundo inteiro. Não veem o que está a acontecer? É por isto que é muito importante que os judeus do mundo inteiro não permaneçam em silêncio agora", afirmou Zelensky.
 

Mas há factos históricos, ligados à religião, que José Eduardo Franco considera importante não esquecer: “O imperialismo russo sempre defendeu um Estado sem religião”. Ou seja, “durante os 70 anos da União Soviética, eles quiseram construir a primeira civilização ateia da humanidade. Combateram tudo o que era religioso: católicos, ortodoxos, judeus. Morreram mais de 20 milhões de pessoas. Havia a utopia para uma sociedade perfeita sem Deus”.  

E é aqui que Vladimir Putin se revela diferente, apesar da sua herança histórica e de como “faliu o projeto soviético de criar um império sem Deus”. “Há uma ligação estratégica de Putin à religião. Ele percebe que o nacionalismo não pode ser afirmado sem Deus. O religioso é sempre uma espécie de cimento que une as pessoas".

“A Ucrânia é o único país além de Israel que tem um chefe de estado judeu”

Também Filipe d’Avillez, jornalista freelancer, com um mestrado em História e Teologia das Religiões, autor de vários livros que trabalha junto da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre, considera que a referência ao nazismo serve um propósito interno. “A Ucrânia é o único país além de Israel que tem um chefe de estado judeu”, afirma. O argumento “tenta legitimar a ação internamente".

Na Ucrânia existe cerca de um milhão de judeus e é lá que vive a maior comunidade na Europa de Leste. Filipe d’Avillez sublinha as palavras “fortes” do rabino-mor da Ucrânia ao povo russo, apelando ao fim da guerra. “Ele afirmou ‘nem nos meus piores pesadelos imaginei que pudesse morrer debaixo de mísseis russos. Eu nasci na Rússia’”. Atento à temática e ao conflito, Filipe d’Avillez tem partilhado no seu blogue declarações de diversos líderes religiosos, e não só. Esta foi uma das frases que mais o impressionou.

Mesmo perante um conflito “que não é religioso”, Filipe d’Avillez assume que “há uma dimensão religiosa” e que, provavelmente, depois deste conflito haverá um preço a pagar pela Igreja Ortodoxa na região: “Nada vai ficar igual nem a nível interno [na Rússia], nem na Ucrânia porque isto vai fortalecer a posição moral da igreja ortodoxa ucraniana autocéfala, mas também a nível global. O braço de ferro vai continuar”.

De um ponto de vista histórico “a Ucrânia é o berço do cristianismo naquela região. Foi ali que um príncipe de Kiev, 'Vladimir o Grande', se converteu e batizou o povo, numa altura em que Kiev era uma metrópole e Moscovo ainda não existia”. Com o passar do tempo e a perda de importância de Kiev, “o coração” da igreja ortodoxa da região passa para Moscovo.

Atualmente, na Ucrânia, pode dizer-se que existem duas igrejas ortodoxas: o Patriarcado de Moscovo (ligado à Rússia) e a igreja ortodoxa autocéfala da ucraniana - que se fundiu com o Patriarcado de Kiev. “Vários padres da igreja ortodoxa ligada à Rússia, que ainda é muito grande dentro da Ucrânia, pediram ao próprio líder, que obedece a Moscovo, para se desvincular. Pelo menos dez padres tornaram publica essa declaração”, afirma à CNN Portugal. E isto, para Filipe d’Avillez, é "um sinal" importante.

"Para os russos perder a Ucrânia é um bocadinho como perder a fonte do seu próprio cristianismo"

Ao contrário da igreja Católica, que está centralizada na figura do Sumo Pontífice, na Igreja Ortodoxa existem várias igrejas, autónomas, “autocéfalas”, patriarcados que são independentes entre si, “unidas em comunhão numa figura central, que não tem o mesmo poder do Papa, e que é o Patriarca de Constantinopla, em Istambul”.

Apesar de a igreja Ortodoxa Autocéfala ucraniana ter nascido pouco tempo depois da independência da Ucrânia em 1991, só em 2019 foi reconhecida pelo Patriarca de Constantinopla, “que tem a primazia de honra”. É a ele que cabe reconhecer uma igreja nova. Mas esta foi uma decisão contestada por vários patriarcados, com destaque para o de Moscovo, que deseja ver a igreja ortodoxa ucraniana incorporada na da Rússia.

“Os russos olham para Constantinopla, que tem atualmente cerca de cinco mil fieis ortodoxos [e pensam]: 'por que raio é que este tipo há de mandar no mundo ortodoxo, quando nós somos a maior igreja ortodoxa e a mais influente'? Estão há vários anos a posicionarem-se para assumir esse papel", explica à CNN Portugal.

Na Rússia, a igreja ortodoxa tem uma grande ligação ao Estado e esta dependência e serve ambos. "Ter agora um país vizinho a virar-se para o ocidente e a separar-se também a nível eclesial para eles é uma coisa inaceitável. Para os russos perder a Ucrânia é um bocadinho como perder a fonte do seu próprio cristianismo. Eles não compreendem como é que os ucranianos não veem as coisas da mesma maneira", conclui.

"Uma coisa é certa, para os russos e para esta vertente do nacionalismo russo, a Bielorússia, a Ucrânia e a Rússia são um território só", uma visão que não existirá relativamente a outros países que também fizeram parte da União Soviética. Filipe d’Avillez considera que muitas pessoas, sendo ele uma delas, "não estavam à espera que [Putin] fosse tão longe".

Sendo quase impossível perceber o que deseja Vladimir Putin "a longo prazo", Filipe d’Avillez assume que “é difícil vê-lo sair vencedor” desta situação - e o mesmo em relação à igreja ortodoxa, devido à sua ligação ao Estado. Até porque “apenas 6% da população russa é praticante”. E, apesar de a igreja ter recuperado "a sua glória exterior com o fim do comunismo, as almas das pessoas não. Continua a ser um povo muito afetado pelos anos da União Soviética, e só escaparam às perseguições as religiões que se aliaram ao regime".

"70% da população ucraniana diz-se ortodoxa"

Helena Vilaça é professora associada com Agregação no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e, entre outras coisas, é também membro do Conselho da International Society for the Sociology of Religion, como representante da Península Ibérica. Em 2008 realizou um estudo, em Portugal, sobre a Imigração, etnicidade e religião: o papel das comunidades religiosas na integração dos imigrantes da Europa de Leste. É uma comunidade que conhece bem.

Formada em sociologia, Helena Vilaça considera que este conflito não tem uma base religiosa. "Às vezes quando pensamos em política e religião e no interesse que a religião tem em controlar o poder político... Eu acho que na maior parte das vezes é ao contrário. É ao poder político que lhe dá jeito, entre aspas, a religião", afirma.

Há um motivo para isso: "A religião tem uma dimensão cultural, identitária, que vai contribuir também para uma certa coesão social".

Dados de 2018 citados por Helena Vilaça mostram que “70% da população ucraniana diz-se ortodoxa, cristã-ortodoxa” e esta não é uma questão que preocupe a população. Aqui, tal como na política, este é um tema que aparentemente apenas preocupa os líderes. Apesar de o conflito não ter fim à vista, Helena Vilaça admite que o futuro traga mudanças e até que a igreja ortodoxa na Ucrânia "ganhe uma autonomia definitiva".

Judeus, protestantes, evangélicos, católicos, testemunhas de Jeová, cristãos ortodoxos e, talvez, mais. São muitas as religiões que coabitam na Ucrânia. Para a socióloga não há dúvidas: "A Ucrânia é um exemplo de uma diversidade e coexistência religiosa, desde o fim do bloco soviético". Ou seja, para o povo "esta não é uma questão, não é um problema", por isso, "o problema estará nos líderes, políticos ou religiosos". A localização geo-política da Ucrânia é determinante para este conflito, já que "a Rússia nunca mostrou nenhum incómodo perante outros patriarcados" que se tornaram autónomos, conclui Helena Vilaça.

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