Coragem não é ir lutar, é dizer à família que o vão fazer: encontrámos 3 portugueses e 2 brasileiros a caminho do exército ucraniano

Germano Oliveira , Enviado especial da CNN Portugal
13 mar 2022, 16:24
Famílias não abandonam animais de estimação na fuga da Ucrânia (Associated Press)

REPORTAGEM - Três portugueses e dois brasileiros estão num autocarro que os vai deixar na Polónia e depois eles seguem para a Ucrânia. Vão combater. E mais do que uma lição sobre guerra, eles dão uma lição sobre família. E sobre coragem, mas não a coragem que se pensa. Exclusivo CNN Portugal

O que é coragem?
O que é mesmo coragem a 13 de março de 2022?
Coragem é combater?
É esfaquear?
É disparar? 
É bombardear?
É ir para sobreviver ou morrer?
É ir matar para não ser morto?
É ser patriota por uma pátria que não é a nossa?
O que é coragem, alguém sabe?

O Cunha sabe. O Cunha pede para ser tratado assim, "O Cunha", porque O Cunha é só O Cunha devido à filha dele: 

"Estou a tentar arranjar coragem para fazer um vídeo..."

Um vídeo para quem, Cunha?

"Para minha filha, tem 15 anos."

O Cunha, homem forte com dois brincos de prata, tapa a cara com o braço direito, é um braço volumoso e por isso tapa mesmo tudo, as lágrimas também, só dá para ouvi-las. O Cunha sai de onde está, vai chorar sozinho, e o António Pereira, 46 anos, é este mesmo o nome dele, intervém: "É difícil". É difícil sim, O Cunha não disse à filha que ia para a guerra e por isso tapa o rosto quando a câmara da CNN aparece para fazer os diretos ou quando alguém vem para tirar fotos, O Cunha vai para a guerra vivo e não sabe se haverá de vir morto dela mas aí vai ele, vai pegar em armas para matar russos e defender o Zelensky, "vou por ele, não ia por outro que tivesse fugido", O Cunha vai fazer isto tudo mas ainda não ganhou coragem para dizer à filha para onde foi, portanto: o que é mesmo coragem a 13 de março de 2022? Perguntem ao Cunha.

O António só disse à mãe que ia para a guerra quando foi apanhar o autocarro que o está a levar agora mesmo para a Polónia, chega terça-feira e a seguir ele vai a uma entrevista com uma alta patente do Exército ucraniano, é aí que vai saber como e para onde vai combater, "não queria Kiev mas lá irei se mandarem", olhe-se bem para o António: vai para onde os ucranianos disserem, assim seja, mas só avisou a mãe quando já estava no autocarro, "está farta de me mandar mensagens, 'estás bem, filho?', 'o que é que se passa, filho?', 'não faças isso, filho'", magoar enquanto filho é mais difícil que magoar enquanto soldado, "o meu irmão já sabe há uma semana, a minha filha de 16 anos sabe e fartou-se de chorar, os pequenos não sabem". Outra vez: o que é mesmo coragem a 13 de março de 2022? Perguntem ao António.

O Alexandre Marrafa vai com eles, veste uma sweatshirt da Tommy Hilfiger e tem uma capa linda castanha-escura a proteger o iPhone, fica-lhe tudo bem porque ele tem aquela beleza confiante dos 19 anos, pois, 19 anos, o Alexandre vai combater russos também, "decidi ajudar, tenho experiência militar", 19 anos, "tenho experiência militar e vou ajudar pessoas que não têm experiência", 19 anos, "se o meu país fosse atacado gostava que as outras pessoas viessem ajudar, é uma decisão minha e a minha mãe aceitou, não me tentou demover", o Alexandre tem assim uma reserva adicional de coragem que não teve de gastar para anunciar à família o que vai fazer, o Cunha e o António estão em estágios diferentes de coragem mas já se sabe que quanto mais se envelhece mais dói dizer adeus à mãe ou aos filhos, mas regressando ao Alexandre: que experiência tens, Alexandre de 19 anos?, "eu fui militar no exército normal, estive em Beja e depois em Estremoz, já é qualquer coisa", o Alexandre é muito simpático, é fácil gostar dele.

O Dymizon Souza, 24 anos, está a dormir, é Souza com Z, ele explicou isso depois de acordar e comer uma sandes de lombo comprada numa estação de serviço já em Espanha, o autocarro vai chegar a França ainda este domingo, o Dymizon fala pouco, é brasileiro e soletrou o nome dele para ficar bem escrito no artigo, quis ser da legião francesa mas não deu, foi para o Porto, "é lindo mas chove muito", é preciso entender o Porto, Dyzmizon, estás a meio caminho, já sabes que é lindo; depois o Dyzmizon passa o número dele do WhatsApp, por agora eles ainda usam WhatsApp mas na guerra vai ser o Signal, o Dyzmizon passa então o número dele, põe o boné militar na cabeça e a conversa acaba, mas no banco ao lado está outro Souza, "Souza com Z mas não somos familiares", diz o Patrick, 31 anos e natural de Belém de Pará no Brasil, "a minha mãe, no início, era totalmente contra eu ir lutar, ela passou um dia inteiro sem falar comigo, estava com raiva, mas no dia seguinte ela ligou dizendo 'meu filho, você vá, viva tudo o que você tem para viver, ajude quem você puder ajudar, mas faça de tudo para você voltar vivo". O Patrick é ex-militar da Marinha, serviu durante três anos e agora vai servir não sabe durante quanto tempo, os cinco têm um contrato à espera e supostamente é de um ano mas eles não sabem bem mas também não estão muito preocupados, "eu gostaria que outras pessoas ajudassem se o meu país estivesse a ser atacado, então eu me senti na obrigação de o fazer: se eu posso, se eu tenho condições de ajudar, se eu tenho um corpo funcional, então porque não ajudar?", pergunta o Patrick mas não é pergunta - é retórica.

Portanto, o que é coragem a 13 de março de 2022?

Coragem é dizer ao Alexandre que eles vão comer sushi no primeiro jantar de celebração do pós-guerra. O Alexandre detesta sushi. Quer um churrasco. Boa sorte para quem o obrigar a comer peixe cru.

 

Nota: atualização de informação às 21:20 de domingo, 13 de março de 2022

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