Como um tratado de 1936 pode obrigar a Turquia a escolher um lado no conflito da Ucrânia

CNN , Isil Sariyuce e Arwa Damon
1 mar 2022, 15:00
O navio turco Yasa Jupiter, com bandeira das Ilhas Marshall, e que foi atingido por um míssil ao largo da cidade portuária de Odessa, na Ucrânia, navega no Bósforo em Istambul, na Turquia, a 25 de fevereiro

A Turquia tem autoridade para impedir a passagem dos navios de guerra dos países envolvidos num conflito. Quais são as implicações deste poder?

A Turquia classificou oficialmente a invasão da Ucrânia pela Rússia como uma guerra e garante que irá impedir alguns navios de guerra de passar por vias marítimas ​​importantes, uma manobra que, segundo alguns especialistas, pode prejudicar algumas das atividades militares de Moscovo na região.

Na quinta-feira, as forças russas atacaram a Ucrânia por via terrestre, marítima e aérea, dando assim início ao maior ataque de um Estado contra outro, na Europa, desde a Segunda Guerra Mundial.

O embaixador da Ucrânia na Turquia, Vasyl Bodnar, foi à televisão local na semana passada e apelou ao governo de Ancara que fechasse os principais estreitos aos navios de guerra russos, ao abrigo das disposições da Convenção de Montreux de 1936. A Turquia disse que só o poderia fazer se reconhecesse oficialmente o conflito como uma guerra e, no domingo, foi exatamente isso que fez.

Na segunda-feira, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, garantiu que o seu governo dará uso à "autoridade" que lhe fora conferida pela Convenção de Montreux em relação ao tráfego de embarcações nos estreitos, "de forma a impedir uma escalada desta crise”.

Apesar de classificar a invasão da Ucrânia como algo "inaceitável”, Erdogan deixou claro que a Turquia não colocará em causa as suas relações com a Rússia ou com a Ucrânia.

Eis o que precisa de saber:

O que é a Convenção de Montreux?

No âmbito desta convenção de 1936, a Turquia fica com um certo controlo sobre a passagem de navios de guerra nos estreitos de Dardanelos e Bósforo, que ligam o Mar Egeu, o Mar de Mármara e o Mar Negro.

Em tempos de paz, os navios de guerra podem passar pelos estreitos mediante notificação diplomática prévia com certas limitações ao peso dos navios e às armas que transportam - e dependendo se o navio pertence ou não a uma nação do Mar Negro.

Mas, em tempos de guerra, a Turquia pode impedir a passagem dos navios de guerra dos países envolvidos no conflito. Com efeito, se a Turquia for um dos países envolvidos na guerra ou se se sentir ameaçada de perigo iminente, pode fechar os estreitos à passagem de navios de guerra.

Como é que isto afeta a Rússia?

Tanto a Rússia como a Ucrânia estão localizadas no Mar Negro, juntamente com a Roménia e os membros da NATO Bulgária e Geórgia. É certo que a Turquia tem autoridade para limitar a passagem de navios de guerra russos do Mediterrâneo para o Mar Negro, através dos seus estreitos, mas a Convenção de Montreux tem uma ressalva: os navios de guerra dos países envolvidos no conflito podem atravessar caso estejam a regressar à sua base de origem.

“Se o navio do país em guerra regressar ao seu porto, é aberta uma exceção. Implementaremos todas as disposições de Montreux com transparência”, disse o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia, Mevlut Cavusoglu, acrescentando que a exceção não deve ser alvo de abusos.

A medida seria apenas simbólica, disse Mustafa Aydin, presidente do Conselho de Relações Internacionais da Turquia: “A Rússia tem poder de fogo suficiente no Mar Negro para não fazer sentido uma entrada dos países da NATO. A Rússia tem total supremacia na água.”

Porém, se a guerra se arrastar, Moscovo pode sentir-se pressionada, uma vez que a Rússia já tinha terminado o destacamento naval no Mar Negro, deslocando unidades do Mar Báltico antes do início das hostilidades, indicou à CNN Serhat Guvenc, professor de relações internacionais da Universidade Kadir Has, em Istambul.

No início de fevereiro, seis navios de guerra russos e um submarino transitaram pelo Estreito de Dardanelos e pelo Estreito do Bósforo até o Mar Negro em direção ao que Moscovo apelidou de exercícios navais perto das águas ucranianas.

De acordo com o professor, a Rússia tem, provavelmente, "recursos suficientes para sustentar o seu poderio naval no Mar Negro durante cerca de dois a três meses”. “Mas se o conflito se arrastar, a história será diferente", frisou.

Porque é que a Turquia classificou o conflito como uma guerra?

Serhat Guvenc admitiu que não estava à espera que a Turquia tomasse uma decisão tão cedo, mas o presidente Volodymyr Zelensky “chamou as atenções para Ancara” ao agradecer prematuramente à Turquia, no Twitter, pelo seu apoio.

I thank my friend Mr. President of 🇹🇷 @RTErdogan and the people of 🇹🇷 for their strong support. The ban on the passage of 🇷🇺 warships to the Black Sea and significant military and humanitarian support for 🇺🇦 are extremely important today. The people of 🇺🇦 will never forget that!

— Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) February 26, 2022

A Turquia disse que respeitou historicamente o tratado e garantiu que continuará a fazê-lo. E, segundo Guvenc, tem todo o interesse em fazê-lo, pois a convenção apoia a Turquia em tempos de guerra. Qualquer exceção feita para agradar a Rússia poderia comprometer a credibilidade da convenção a longo prazo, indicou.

“Os Estados Unidos estão muito interessados na ideia de liberdade ilimitada de navegação pelos estreitos turcos, como acontece noutras vias marítimas como os canais de Suez e do Panamá”, apontou Guvenc, sublinhando que um desvio da convenção daria aos norte-americanos “uma razão legítima para questionar o estatuto da Turquia como guardião de Montreux”.

Como é que isto pode afetar as relações externas da Turquia?

A Turquia tem uma fronteira marítima com a Ucrânia e a Rússia, no Mar Negro, e vê os dois países como amigos. Ancara depende da Rússia para o turismo e pelo gás natural, mas também tem uma relação económica e de defesa forte com a Ucrânia e, apesar das objeções russas, vendeu drones ao país.

A União Soviética, antecessora do Estado russo, foi um dos signatários originais da Convenção de Montreux.

“A Rússia conhece as complexidades da política e da lei e estaria preparada para tal eventualidade”, disse Guvenc. Moscovo, no entanto, podia não estar à espera que Ancara agisse tão cedo com base no tratado, acrescentou.

“A Turquia pode apoiar esta medida como um mero cumprimento de uma obrigação, ao abrigo da lei internacional”, disse o professor, mas a medida pode ser uma indicação do lado para o qual a Turquia irá pender, caso o conflito se prolongue.

“A Turquia decidiu alinhar-se mais com os seus aliados tradicionais da NATO e da União Europeia, e afastar-se um pouco da Rússia.”

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