As últimas atrocidades na Ucrânia foram inevitáveis e não serão as últimas (análise)

CNN , Análise de Stephen Collinson
4 abr 2022, 16:00
Guerra na Ucrânia (Lusa/EPA)

Nunca mais”, a frase proferida muitas vezes após crimes contra a humanidade, na prática, quase nunca significa “nunca mais”.

Cenas chocantes de valas comuns e civis assassinados na Ucrânia este fim de semana, reveladas com a retirada das tropas russas de Kiev, estão a abalar o mundo e a fazê-lo recordar algumas das mais cruéis indignações da humanidade.

No domingo, uma equipa da CNN viu pelo menos uma dúzia de mortos em sacos de cadáveres empilhados numa vala comum na cidade de Bucha, a noroeste da capital. Os moradores disseram que cerca de 150 pessoas estão sepultadas lá, enquanto o Presidente da Câmara disse em declarações públicas um dia antes que poderia haver cerca de 300 vítimas lá enterradas. A CNN não pôde verificar de forma independente esses números nem as identidades e nacionalidades das pessoas enterradas.

As cenas devastadoras seguiram-se à revelação de imagens captadas pela Agence France-Presse na mesma cidade que mostravam o corpo de pelo menos 20 civis alinhados numa única rua. Alguns estavam de barriga para baixo. Outros caíram de costas, de boca aberta, horrorizados. As mãos de um homem estavam amarradas atrás das costas. Outro estendido sozinho, ao lado da bicicleta, num banco de relva. A Rússia, perante uma cacofonia de repulsa global, acusou, como é característico, a Ucrânia de falsear as cenas horríveis. A CNN não conseguiu confirmar os detalhes sobre a morte dos homens.

Talvez haja uma pequena hipótese de que tais imagens horríveis venham a ser emblemáticas de um ponto de viragem na guerra, catalisando uma ação ocidental mais forte e um novo compromisso diplomático capaz de mudar ainda mais a maré do conflito contra a Rússia.

Mas a única maneira possível de os civis ucranianos serem salvos é se as forças ocidentais intervirem no conflito ou se o Presidente russo Vladimir Putin subitamente desistir da sua ofensiva.

Mas não é provável que nenhuma das duas hipóteses aconteça, até porque o Ocidente impôs limites à sua própria ação para evitar um conflito nuclear direto com Moscovo, e o líder russo sempre desvalorizou a vida dos civis no seu caminho.

Ainda assim, a prova das atrocidades reforça a constatação trágica de que tal mal não se limita a um legado histórico de guerras passadas.

Forçará líderes e cidadãos a perguntarem-se, ou a suprimirem, o mesmo dilema moral que as gerações anteriores enfrentaram sobretudo em retrospetiva: porque é que não foi feito mais para salvar os inocentes de tal horror?

O mundo não deve ficar chocado

Os corpos sem vida de civis espalhados pelas ruas de Bucha, aparentemente mortos em estilo de execução, suscitaram tweets chocados e comentários de líderes mundiais.

Mas as cenas terríveis não devem chocar ninguém que esteja familiarizado com as táticas brutais de Putin e a realidade de uma guerra terrestre insensível.

Em vez disso, são o resultado quase inevitável de uma invasão perversa e ilegal de uma nação soberana, uma reação de um exército russo esgotado que não esperava grande luta, e as temíveis doutrinas do Kremlin que provocaram uma carnificina na Chechénia e na Síria, à medida que uma forma de guerra total dos anos 40 se desenrola 20 anos volvidos no século XXI.

Nascem dos mesmos impulsos cruéis que o bombardeamento de cidades e hospitais, blocos de apartamentos e abrigos aéreos pelas forças russas numa operação que parece, para a maior parte do mundo, uma tentativa de eliminar a Ucrânia do mapa.

Há uma semana, Washington ficou em alvoroço por causa do Presidente Joe Biden que apelidou Putin de “carniceiro” pelas aparentes atrocidades e disse que ele não devia permanecer no poder. Agora, a sua suposta gaffe parece menos um deslize verbal sobre uma mudança de regime, que os EUA dizem que não vão iniciar, do que um julgamento moral premonitório.

Zelensky pede que "tal mal" seja erradicado

O Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, emitiu o seu mais recente e mais fervoroso apelo a mais medidas para salvar o seu povo, depois de o horror em Bucha ter chocado o mundo.

"O mundo já viu muitos crimes de guerra. Em momentos diferentes. Em continentes diferentes. Mas é hora de fazer tudo o que for possível para tornar os crimes de guerra dos militares russos a última manifestação de tal mal na Terra", disse.

A declaração pungente de Zelensky num discurso em vídeo foi uma variação do familiar refrão - após atrocidades cometidas na Síria ao Camboja, ao Ruanda à Bósnia nos últimos 50 anos, remontando até ao Holocausto Nazi - que tal desumanidade nunca mais deve ser permitida.

No entanto, este conflito na Ucrânia está suscetível às mesmas ressalvas e restrições à ação global para proteger os civis de tiranos como muitos outros -incluindo a atual repressão da China aos muçulmanos uigures ou o recente genocídio contra os Rohingya em Myanmar.

O Ocidente simplesmente carece da vontade política, do compromisso militar total, do mandato jurídico internacional ou da aceitação das consequências geopolíticas que se seguiriam para levar a cabo intervenções para evitar crimes de guerra generalizados.

A questão mais premente agora é se as tragédias individuais de civis que foram impiedosamente mortos na Ucrânia farão algo para mitigar a tragédia mais vasta do conflito que indiretamente levou à morte deles.

O povo da Ucrânia tem sido deixado à mercê de tais represálias desde que Biden e outros líderes ocidentais decidiram que uma intervenção militar direta no conflito - incluindo o estabelecimento de zonas de exclusão aérea sobre a Ucrânia que não é membro da NATO - poderia desencadear uma guerra acesa com a Rússia, com o risco de uma escalada nuclear que ameaçaria toda a humanidade.

A longo prazo, tais avaliações podem muito bem ser prudentes. O primeiro dever de um líder eleito é a segurança do seu próprio povo.

Putin compreende claramente o dilema do Ocidente. O empunhar do seu sabre nuclear no início da invasão, por exemplo, desencadeou um alarme generalizado no Ocidente e especula-se sobre o estado mental e emocional do homem com o dedo no botão nuclear da Rússia.

Embora os EUA tenham fornecido enormes volumes de mísseis antitanque e antiaéreos à Ucrânia, a preocupação em atravessar uma linha vermelha invisível e provocar Putin fez com que Biden e outros líderes da NATO travassem um plano da Polónia para enviar jatos da era soviética para ajudar os pilotos de Zelensky a estabelecer o domínio dos céus.

Os próximos dias determinarão se o horror do fim de semana levará Biden a aproximar-se dessa linha. Antes da notícia das atrocidades em Bucha, fontes disseram a Jim Sciutto e Kaitlan Collins da CNN que os EUA estavam prontos para facilitar a transferência de tanques T-72 da era soviética para a Ucrânia.

Líderes mundiais lamentam fim de semana de horror

O impacto prático imediato das terríveis imagens de Bucha desencadeou consternação e condenação por parte dos governos ocidentais, a exigência de investigação de crimes de guerra e promessas de sanções ainda mais severas contra o regime de Putin.

É possível que a espiral descendente para um horror ainda mais profundo na Ucrânia este fim de semana possa iniciar uma investigação formal de crimes de guerra. Mas o tribunal da ONU em Haia não conduz julgamentos à revelia. Portanto, até que seja feita justiça, isso pode ainda demorar muitos anos, na melhor das hipóteses. E embora valha a pena investigar e registar crimes de guerra e responsabilizar os que estão mais abaixo da cadeia de comando, é difícil ver quaisquer circunstâncias num futuro próximo em que a Rússia entregaria Putin.

Qualquer ação das Nações Unidas enfrentaria certamente um veto no Conselho de Segurança por parte da Rússia. Outro dos cinco membros permanentes do Conselho, a China, também consideraria qualquer investigação como potencialmente ameaçadora, dado o seu próprio fraco historial de direitos humanos.

Essa possibilidade limitada de responsabilização significa que o Ocidente pode apenas utilizar a sua ferramenta mais familiar: mais sanções contra a Rússia, contra as pessoas em torno de Putin e contra o próprio líder russo. As alegadas atrocidades na Ucrânia levarão certamente a mais exigências para que os líderes ocidentais enviem mais ajuda letal ao governo de Kiev. É ainda mais difícil ver a Rússia ser autorizada a voltar a ter uma atividade diplomática regular com líderes ocidentais, pelo menos enquanto Putin estiver no poder.

Mas apesar da potência dos mísseis antitanque e antiaéreos ocidentais, dos custos debilitantes que estão a ser impostos à economia russa e do estatuto pária que estigmatiza agora a Rússia, há poucas provas de que Putin será influenciado a deixar os civis em paz. Nunca fez parte do seu carácter em mais de 20 anos de domínio no poder.

E enquanto as forças russas parecem estar a reagrupar-se longe de Kiev - um fator que contribuiu para a descoberta das atrocidades que aparentemente deixaram para trás - Putin está a dar todas as indicações de uma longa guerra concentrada no leste da Ucrânia.

A indignação é, por enquanto, a dominante reação ocidental.

O Primeiro-Ministro britânico, Boris Johnson, classificou os ataques contra civis inocentes como "desprezíveis" e prometeu justiça através do Tribunal Penal Internacional. Em declarações ao "State of the Union" da CNN, o Secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, disse no domingo que as imagens de civis mortos eram "um murro no estômago" e prometeu que os EUA iriam registar  os crimes de guerra cometidos pela Rússia e procurar responsabilização. O Primeiro-Ministro espanhol, Pedro Sánchez, expressou "horror, dor e indignação". O Primeiro-Ministro italiano, Mario Draghi, disse que as imagens o deixaram "estupefacto".

Sem dúvida, as expressões de repulsa foram sinceras. Mas em momentos como este, os líderes mundiais muitas vezes parecem estar a competir sobre quem consegue demonstrar o maior horror num processo de inflação retórica que esconde as verdadeiras questões em jogo.

Johnson, por exemplo, advertiu que "nenhuma negação ou desinformação do Kremlin pode esconder o que todos sabemos ser a verdade - Putin está desesperado, a sua invasão está a falhar, e a determinação da Ucrânia nunca foi tão forte".

Mas nada do que Johnson disse é suscetível de mudar a abordagem implacável do líder russo e a vontade de infligir a dor mais brutal aos civis. As lições da História e as limitações estratégicas do Ocidente significam, além disso, que é quase certo que as imagens horríveis vistas em Bucha este fim de semana estão longe de ser os últimos, ou piores, crimes contra a humanidade desta guerra cruel.

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados