A campanha militar desastrada de Putin no sul da Ucrânia não faz grande sentido (análise)

CNN , Análise de Nick Paton Walsh
8 mar 2022, 20:00
Vladimir Putin. Arquivo AP

Todas as manhãs, espero que seja mais fácil processar. Mas quase duas semanas depois de a guerra ter começado, o conflito ainda parece surrealmente distante e assustadoramente para lá da compreensão.

Se nos perguntarmos como é que isto está a acontecer, caímos num abismo tão profundo que está longe do alcance dos nossos sentidos.

Mesmo que Putin pense que consegue recuperar o seu antigo império, como é estes 13 dias de barbárie fariam isso acontecer?

A campanha lenta e desastrada russa pelo Sul tem sido chocante. É óbvio o que Moscovo quer: cortar o acesso da Ucrânia ao Mar Negro.

O difícil de compreender é se o plano do Kremlin falhou e as tropas russas estão apenas a enviar mísseis e tanques a tudo o que conseguem ou se esta espécie de guerra total contra os ucranianos foi sempre o plano.

A cidade de Kherson foi a primeira a “cair”, mas não foi bem isso que aconteceu.

Ao vermos a batalha pela ponte estratégia a leste da cidade, tentei tranquilizar os habitantes, dizendo que o exército russo não estava interessado nas suas casas e que passariam por eles, desejosos de chegar a Odessa, mais a oeste.

Mas estava errado, novamente, quanto às ambições de Moscovo. (Desde os primeiros avisos das agências de informação sobre uma invasão russa completa da Ucrânia, achei que a ideia era tão absurda que esta deveria ser uma falha e não uma história de sucesso das agências).

As tropas russas entraram na cidade de Kherson, onde houve relatos de terem assaltado lojas, detido homens e disparado para o ar contra manifestantes. Os habitantes locais chamam-lhes “Orcs”, os monstros de O Senhor dos Anéis.

É de admirar que Moscovo estivesse convencido de que a desobediência civil não fosse um problema ou que tenha decidido que, simplesmente, não precisava de um plano para lidar com isso. A tentativa do Kremlin de filmar camiões de ajuda russos a resolver o problema da invasão criada foi recebida com desprezo e profanações por parte dos locais. Os protestos continuam.

O porto de Mykolaiv é o próximo na rota russa para Odessa, a terceira maior cidade da Ucrânia. O “plano” russo para Mykolaiv é perturbadoramente mais sombrio. Bombardeamentos é uma grande parte do mesmo. Durante uma semana, atingiram alvos civis várias vezes.

No fim de semana passado, quando os seus mísseis rebentaram com janelas e telhados de edifícios civis, como consequência de um ataque à defesa ucraniana no centro da cidade, pode ter sido apenas um acidente.

Mas este fim de semana, mesmo na avaliação mais generosa, houve um descuido tão extremo que foi claramente intencional. Parecem estar a lançar mísseis para os subúrbios da cidade. A CNN observou três situações em que, aparentemente, as munições de fragmentação atingiram zonas residenciais. Na sexta-feira, a NATO disse que tinha visto a Rússia a utilizar bombas de fragmentação na Ucrânia.

E, mais uma vez, nos arredores de Mykolaiv, os russos continuam a avançar. Os ataques parecem falhar sempre. Numa rotunda, vimos um veículo blindado Tigr russo em chamas, no sábado, e as tropas ucranianas em posições defensivas à sua volta.

Cerca de 24 horas depois, no mesmo sítio, as tropas ucranianas arranjaram tempo para grafitar ofensas contra Putin, nos mísseis que não explodiram perto deles, e os russos tiveram de recuar.

Uns agricultores subiram para um tanque T90 abandonado, para o tentarem pôr a funcionar e depressa perceberam que este tinha um problema na direção. Isso, e talvez o facto de o tanque estar preso nas ruínas de uma ponte que colapsou, pode explicar porque teria sido abandonado.

Mas isto não foi inédito. No domingo, o governador regional, Vitali Kim, publicou um vídeo se si mesmo dentro de outro veículo Tigr russo capturado.

Outro vídeo mostrava o que parecia ser uma significativa unidade de artilharia russa em chamas, destruída ou abandonada. A pessoa que o filmou brincou, dizendo que os restos das máquinas destruídas eram “o que sobrava dos nossos ‘irmãos’, os que nos vieram ‘salvar’”, uma referência às afirmações falaciosas de Moscovo de que estariam numa operação especial para desmilitarizar e “desnazificar” os ucranianos subjugados a um regime vil.

A propaganda do Kremlin, durante anos algo tão concentrado e cínico que acabou por se integrar no ecossistema informativo e até mudar algumas mentalidades, é descartado com o mesmo desprezo com que foi escrito. São verdadeiras aldrabices e é bom ver que a maior parte dos meios de comunicação não lhe está a dar tempo de antena.

Odessa é o prémio na costa. Na segunda-feira de manhã, quando a cidade foi atingida por um nevão, as sirenes soaram, aumentando os receios dos habitantes de um ataque anfíbio russo.

Estas três últimas palavras parecem ridículas aqui, numa cidade com lojas “hipster” escondidas em escadas e com uma série de sinais na estrada que dizem aos recém-chegados russos para “se irem lixar” (em frente), “vão lixar-se também” (esquerda) e “voltem para a Rússia” (direita).

Todo o projeto russo na Ucrânia parece saído de um pesadelo. O plano de Putin continua a não fazer sentido. Será que o Kremlin acreditava genuinamente que a Ucrânia se renderia numa semana? Que os seus cidadãos os receberiam de braços abertos?

Se for esse o caso, porque será que a estratégia evoluiu tão rapidamente para uma espécie de castigo coletivo, assim que se tornou óbvio que não seriam bem-vindos? Não havia nenhum plano para algo entre apreciação e aniquilação?

Porque será que as unidades russas que vemos uma e outra vez a atingir os mesmos alvos, utilizam, muitas vezes, o mesmo tipo de abordagem? Porque será que há tantos militares a abandonar os seus veículos e a serem capturados de livre vontade? E porque será que a força aérea russa, durante anos proclamada como o novo brinquedo de alta tecnologia de Putin, está a ser tão pouco eficaz?

Há a tentação de procurar respostas racionais a estas questões. A razão pela qual estamos às escuras é o fracasso racional que predomina no Kremlin.

Depois de Putin, nestas duas semanas, ter tentado cercar a cidade da capital, ter colocado defesas nuclear estratégicas a um nível mais elevado de alerta, ter utilizado munições de fragmentos e ter atacado uma central nuclear, não sabemos até onde ele estará disposto a ir.

A guerra continua a não fazer sentido. Parece que está além daquilo que julgava ser a nossa realidade partilhada. Resta-nos esperar que não se mantenha assim.

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