O cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia vai depender de tudo, até de vírgulas

8 mar 2022, 08:00
Vladimir Putin (AP Images/Andrei Gorshkov)

Desmilitarização, neutralidade e independência. São estas as três palavras que estão a moldar as negociações para um cessar-fogo entre a Rússia e a Ucrânia. Os especialistas ouvidos pela CNN Portugal reconhecem que são condições duras mas veem margem para cedências

Há um ponto em que os especialistas estão de acordo: as duas partes vão ter de negociar acordos “palavra a palavra”. “A negociação aqui vai ser vírgula a vírgula, mesmo. Vai ser tensa. Até o tempo verbal será um detalhe importantíssimo”, diz Tiago Ferreira Lopes, especialista em questões de diplomacia. O general Garcia Leandro, que no passado mediou acordos de paz, acena no mesmo sentido: “É preciso muito cuidado com o que está escrito. Tem de ficar tudo muito bem escrito”. Até porque, avisa Ana Santos Pinto, investigadora na área das relações internacionais, urge evitar que se repita o que aconteceu em 2015, com “negociações apressadas” para os chamados Acordos de Minsk, cujo texto resultou em “interpretações muito diferentes por cada parte”.

Os russos, pelo menos, já acenaram com o que querem para colocar fim ao conflito armado: a desmilitarização da Ucrânia, a alteração da Constituição para que o país seja neutro relativamente à NATO e à União Europeia e o reconhecimento da Crimeia e das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk como território russo. Estas exigências são vistas pelo presidente ucraniano como um “ultimato”. Volodymyr Zelensky já veio exigir que Putin “saia da bolha” e negoceie verdadeiramente.

Mas há margem para o Kremlin ceder quando já tem um caderno de encargos tão bem definido? Sim, há. “Estas condições são aceitáveis. São propositadas para permitir à Rússia fazer concessões. Estas posições não são linhas-vermelhas, como tendemos a encará-las. É antes uma posição declarada”, explica Tiago Ferreira Lopes. Ana Santos Pinto diz mesmo que o tom de Moscovo é hoje diferente face ao que acontecia em dezembro passado ou na negociação dos Acordos de Minsk. “Há ligeiras nuances no porta-voz do Kremlin, parece haver uma diminuição na gradação da exigência. Foram muito mais taxativos e assertivos em dezembro.”

Mas é tudo uma questão de detalhes, de pormenores. Quem está habituado às negociações em tempo de guerra sabe que ter um ponto de partida “muito extremado” acaba por colocar barreiras ao próprio diálogo. “Se fosse negociar com Putin, ia já com 40 pés atrás”, diz o general Garcia Leandro.

Zelensky já definiu condições russas como "ultimato" (Gabinete de Imprensa do Presidente da Ucrânia)

O ponto-chave da neutralidade e a condição "menos dolorosa" (será mesmo?) das regiões separatistas

“A condição que me parece mais dolorosa é a desmilitarização”, traça o general. Porque tal deixaria a Ucrânia à mercê de qualquer invasão, viesse ela de onde viesse. Na lista da dureza do general segue-se a neutralidade, que ainda assim tem “evitado outros problemas” em geografias como a Finlândia ou a Áustria.

E é essa mesma neutralidade que Tiago Ferreira Lopes procura mostrar como essencial neste processo: “A partir do momento em que a Ucrânia for neutral, a desmilitarização deixa de fazer sentido. Passa apenas a ter um exército defensivo”. A prioridade do Kremlin será então a de alterar a Constituição, para que a ela volte ao que estava antes de 2015, com um artigo sobre a neutralidade ucraniana relativa à NATO e à União Europeia.

Para os especialistas, uma das matérias onde haverá mais abertura de parte a parte é na autonomia ou independência das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk. O general Garcia Leandro admite mesmo que seria a “condição menos dolorosa”. Mas fica o aviso de Ana Santos Pinto para uma outra crise que se colocará: a interna. “É uma posição que quer partir a Ucrânia aos bocados. A partir do momento em que se aceite a independência, vai haver uma crise interna naquilo que é considerado o grupo nacionalista da Ucrânia. Reconhecer a divisão é o primeiro passo para a fragmentação”, argumenta.

Será então um primeiro passo para a fragmentação e logo a seguir para uma mudança de regime. Daí que outra das condições, que não é oficial mas que tem marcado os relatos das negociações, não seja de todo descabida para os interesses do Kremlin: a Rússia estará disposta a manter Zelensky como presidente mas exigirá um primeiro-ministro indicado por Moscovo. E as competências de cada um podem, elas próprias, acabar alteradas na desejada revisão constitucional.

“O evidente é que o regime russo quer uma mudança de regime na Ucrânia, submisso, que siga as suas orientações e interesses. O que se está a discutir neste momento não é apenas o cessar-fogo - é também a composição do Estado da Ucrânia”, sublinha Ana Santos Pinto. Já Tiago Ferreira Lopes explica que a existência de um líder indicado por outro país “não é algo novo”. “A configuração de governos por regimes estrangeiros é comum se pensarmos, por exemplo, no caso da Síria ou da Líbia. Parece-me que a Rússia quer garantir que a Ucrânia é um estado federal com um governo alinhado com o Kremlin.”

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