Apesar de Israel reiterar que operação militar no Líbano tem um tempo limitado, nem todos estão otimistas
Semanas de tensão marcadas pela eliminação da liderança do Hezbollah e pela explosão de milhares de pagers e walkie-talkies faziam antever o inevitável. Sob o olhar atento da comunidade internacional, Israel lançou um ataque terrestre “limitado” no Líbano contra as posições do grupo paramilitar apoiado pelo Irão, com o objetivo de travar os ataques através da fronteira, permitindo o regresso dos milhares de cidadãos israelitas deslocados. Só que os especialistas alertam: esta invasão do terreno inimigo vai lançar “as sementes da futura violência” e expõe “um duplo standard” perante os países do “sul global”.
“O Líbano nunca foi um Estado capaz de evitar que o seu território fosse utilizado pelos militares do Hezbollah para evitar ataques contra Israel. Isso faz com que Israel esteja a atuar à luz de uma justificação aceite por muitos Estados. Por isso insistem que é uma operação limitada no tempo, destinada a criar uma zona tampão. É o equivalente a uma operação de polícia para interromper uma ação violenta contra uma organização terrorista que está a utilizar o território libanês”, explica à CNN Portugal o professor José Azeredo Lopes.
Apesar de Israel reiterar que esta operação militar tem um tempo limitado, nem todos estão otimistas. O principal aliado israelita, os Estados Unidos da América, admite que este ataque corre sérios riscos de escalar e de acabar por ver “uma ampliação gradual” dos objetivos iniciais. O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, expressou uma preocupação idêntica ao admitir ter receio que a incursão rapidamente se transforme “numa guerra”.
Após o ataque do Hamas de 7 de outubro, Israel utilizou o seu direito de proteger o território e a população para expandir os objetivos do ataque contra o grupo terrorista. De acordo com declarações públicas de vários peritos das Nações Unidas, como Francesca Albanese, as forças militares israelitas fizeram “um certo número de coisas que são completamente ilegais” ao bombardear “de forma implacável” a Faixa de Gaza. Esta campanha de bombardeamento foi de tal forma intensa que a ONU estima que 66% das estruturas edificadas em Gaza tenham sido destruídas ou danificadas.
“Do ponto de vista da paz e da segurança internacional é mais um passo para o descalabro. O alargamento do conflito e os riscos de escalada fazem temer que Israel faça exatamente o que lhe apetece. Não podemos apontar que Putin é responsável por crimes de guerra mas depois se for Israel a fazê-los já não há problema. Este duplo standard vai sair caro. As sementes da futura violência estão todas ali”, considera Azeredo Lopes.
A situação trouxe também à luz o que muitos países dizem ser a hipocrisia do Ocidente, particularmente entre países do chamado “sul global”. A resposta ocidental aos dois conflitos, com os países da NATO a condenarem a invasão ilegal russa da Ucrânia e a acusarem Vladimir Putin de crimes de guerra, contrasta com a reação aos ataques israelitas em Gaza. Países como o Egito, a Jordânia ou a Turquia têm sido cada vez mais críticos desta postura.
Só que esta invasão demonstra também a perda de influência dos Estados Unidos no Médio Oriente. Durante meses, a administração de Joe Biden tentou encontrar um caminho para colocar um ponto final na guerra em Gaza e evitar que o conflito se estendesse para o sul do Líbano, mas todo esse esforço caiu por terra. O que veio a acontecer foi precisamente o contrário, com os Estados Unidos a enviarem um porta-aviões para a região para dissuadir o Irão de se envolver nesta guerra, evitando torná-la num conflito regional. Mas essa movimentação norte-americana não foi suficiente para travar o regime iraniano, que poucas horas depois do início da operação israelita lançou mais de duas centenas de mísseis balísticos contra o território israelita.
“Benjamin Netanyahu percebe que tem os Estados Unidos da América completamente na mão por se encontrarem em período eleitoral. Nenhum presidente americano pode dar-se ao luxo de ser visto como aquele que abandonou Israel. É curioso como hoje Israel consegue muito mais dos EUA do que os EUA de Israel”, refere o especialista em relações internacionais.
O direito internacional permite que Israel ataque o território do sul do Líbano e Netanyahu não quer desperdiçar a oportunidade de ferir um Hezbollah numa altura em que este se encontra particularmente fragilizado. Em causa está a resolução 1701 das Nações Unidas, na qual estava prevista a retirada das tropas de Israel do sul do Líbano, com o governo e as tropas libanesas a comprometerem-se a desmantelar todos os grupos armados do país e a garantir que o Hezbollah não continuava instalado a sul do rio Litani.
Só que tal não aconteceu e o Hezbollah acabou por fortificar as suas posições no sul do Líbano, criando uma rede de túneis e de bunkers a partir dos quais é possível atacar os territórios do norte de Israel. Essa violação da resolução 1701 só foi possível devido à incapacidade do governo do Líbano de expulsar a organização terrorista apoiada pelo Irão.
“O Líbano é um Estado falhado, não é verdadeiramente um Estado soberano. A resolução 1701 obrigava a desarmar o Hezbollah e, no fundo, diz que o governo do Líbano tinha de ter controlo sobre todo o seu território. Não eram admissíveis grupos [militares] não estaduais. Ainda por cima um grupo não estadual que é próximo de um Estado terceiro, que é o Irão. Essa é que é a questão e a raiz desta intervenção militar de Israel”, refere à CNN Portugal o especialista em Direito Internacional Francisco Pereira Coutinho.
Só que a 7 de outubro tudo mudou. O Hezbollah começou a utilizar o seu apoio ao Hamas para disparar rockets contra o território israelita, levando a que milhares de pessoas acabassem por ser deslocadas das suas casas. Israel respondeu com pesados bombardeamentos contra as posições do Hezbollah, o que, por sua vez, provocou a maior crise de refugiados da história do país. Agora, o conflito entra numa nova fase. Só que ao contrário da Faixa de Gaza, cujas fronteiras são controladas pelo Egito e por Israel, o território do Líbano torna uma invasão uma operação bem mais perigosa e complexa, uma vez que o Hezbollah continua com uma rota aberta para receber armamento do Irão através da Síria.
“Vamos entrar numa fase muito perigosa deste conflito, porque o Líbano tem fronteiras com a Síria. Vamos ter de perceber o que é que o Irão vai fazer, se vai deixar cair completamente o Hezbollah”, frisa Pereira Coutinho.