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Doutorado em Resiliência da Cadeia de Abastecimento pelo Instituto Superior Técnico

O Estreito de Ormuz: da resiliência ao risco

24 jun, 19:50

A cada nova convulsão no Médio Oriente, em particular os ataques e contra-ataques entre Israel com os Estados Unidos e o Irão, somos confrontados com uma verdade incómoda: as cadeias de abastecimento globais pulsam a vida económica do planeta, não deixando parte incólume e fazem-nos sempre tremer. E não, isto já não é uma surpresa. Longe vão os tempos em que uma interrupção no fluxo material de bens seria um evento tão imprevisível que nem sabíamos que podia existir. A COVID-19, com a sua brutalidade global, fez-nos o favor de rasgar o véu da inocência. Hoje, estamos mais bem preparados do que nunca, mas não por virtude, antes por absoluta necessidade. ´

Do cisne negro ao elefante na sala

Pensemos na resiliência das cadeias de abastecimento como aquela capacidade de levar um soco e não ir ao chão, ou até de ir, mas levantarmo-nos mais depressa. No início, quando falávamos de resiliência, pensávamos em eventos de "baixa probabilidade, alto impacto" e em certa medida os eventos "unknown unknown". A resiliência, nesse contexto, foca-se em aguentar o embate, em ter planos de contingência genéricos, em ser ágil para se adaptar a um cenário imprevisível. Não se preocupava em evitar o evento, porque este, por definição, é invisível. A preocupação é com a consequência, fosse qual fosse a origem.

Hoje a conversa muda de tom. Onde está o "unknown unknown" em Ormuz? É o elefante na sala, conhecido há décadas e muito evidente no período mais recente (com a história intrincada que não tenho como objetivo entrar). Uma passagem estreita que liga o Golfo Pérsico ao Mar da Arábia é uma das jugulares do petróleo mundial, Iraniano mas não só. Metade da energia que move os carros, aquece as casas e alimenta as indústrias do planeta passa por ali. As ameaças iranianas, os ataques a navios, incidentes com petroleiros não são novidade. Não são eventos de baixa probabilidade. Já não são "unknown".

E é aqui que saímos do campo da resiliência pura e dura, e entramos na gestão de risco. O risco, que é a probabilidade de um evento acontecer multiplicada pelas suas consequências. Isto faz com que seja possível quantificá-lo, atribuir-lhe um valor (€/$/…), e com isso, criar um incentivo real para as empresas e países se prepararem. A grande diferença entre resiliência e risco é esta: a resiliência prepara-nos para qualquer soco; o risco, para os socos que já sabemos que podem vir.

Hoje, com os recentes ataques, a situação em Ormuz volta à ribalta, e já ninguém se pode dar ao luxo de a considerar um "unknown unknown". É um risco conhecido, um "known unknown" na melhor das hipóteses, com uma probabilidade de ocorrência que está longe de ser desprezível.

O Estreito de Ormuz é um caso de estudo vivo desta transição. Pensemos no ano 2019: Em maio, quatro navios, incluindo dois petroleiros da Arábia Saudita, foram atacados ao largo da costa dos Emirados Árabes Unidos. Uma clara sabotagem. Um mês depois, em junho, mais dois petroleiros – um japonês, outro norueguês – foram atacados perto de Ormuz. As imagens dos navios em chamas, a tripulação resgatada, correram mundo.

As consequências? Um salto imediato nos prémios de seguro para navios na região, levando a custos adicionais brutais para todos numa cadeia de abastecimento global. Das transportadoras até ao produto final. Os preços do petróleo dispararam, sentindo-se o medo de uma interrupção duradoura. Como se resolveu? Pela força da diplomacia, pela presença militar dissuasora e pela fragilidade de não querer escalar para um conflito maior que não interessa a ninguém. Tal como se pode ver na imagem abaixo, a maior parte do material transportado tem como destino a Ásia e apenas cerca de 20% para a Europa e sendo que existem limitações à importação a partir do Irão para a maior parte dos países europeus.

Nas duas imagens seguintes podemos ver uma alteração no comportamento comprador da União Europeia no que diz respeito ao Gás Natural e ao Petróleo, com uma redução da dependência das matérias primas com passagem pelo Estreito de Ormuz. Importante salientar a falta de flexibilidade para substituir o Gás Russo que continua a ser uma origem relevante para a UE. No entanto o mundo está ligado, não há uma implicação apenas num bloco geográfico sem afetar outro e isso será mais um elemento que poderá mitigar e aumentar a velocidade de regresso ao estado normal depois desta nova instabilidade.

Talvez este movimento seja uma das grandes contribuições da resiliência: dotar-nos de ferramentas para lidar com a imprevisibilidade. As empresas diversificaram fornecedores, trouxeram parte da produção para mais perto, construíram buffers de stock, investiram em visibilidade das suas redes. Tudo para serem capazes de absorver o choque e minimizar o seu impacto.

Agora, o desafio é diferente. Não é só levantarmo-nos depois do soco, é antecipar de onde o soco pode vir e tentar evitá-lo, ou pelo menos, minimizar a dor. Para o Estreito de Ormuz, isto significa ir para lá da resiliência, pois isso já está feito. Significa gerir o risco ativamente. Implica análises de cenários específicos: o que acontece se Ormuz for bloqueado por 24 horas? E por uma semana? Que rotas alternativas existem, e a que custo? Que stocks estratégicos de energia precisamos de ter? O que vai acontecer ao custo dos materiais que são necessários para não interromper processos produtivos?

A quantificação do risco é fundamental porque traduz a ameaça em números que são mais tangiveis e facilmente reconhecidos pelas partes envolvidas. Ajuda a justificar investimentos em tecnologia, em redundância logística, em stress tests, em pensar.

Quais os países produtores afetados em caso de bloqueio do estreito, e quais os que vão beneficiar do aumento dos preços? É este equilíbrio de vantagens e consequências negativas que vai posicionar politicamente os países e a eventual resposta ao bloqueio.

Para já no terreno em termos políticos as alianças e rivalidades podem, em casos concretos como este, surpreender considerando os interesses. Aliás, as cadeias de abastecimento são um dos fatores essenciais da geopolítica em que se disputam recursos, mercados e a sua movimentação com base em cenários políticos geograficamente considerados. E isto não é nada novo, veja-se a presença do Forte de Nossa Senhora da Conceição em Ormuz.

Chegamos, pois, a uma encruzilhada. A inocência dos "unknown unknowns" ficou para trás. Aliás as cadeias de abastecimento são um dos fatores essenciais da geopolítica e assumirão um papel crucial nas próximas décadas. O futuro das cadeias de abastecimento não se joga apenas na capacidade de resistir ao inesperado, mas na inteligência de antecipar o previsível e exige uma colaboração sem precedentes entre governos de diferentes “origens” e empresas, mesmo que de forma invisível e sem que se perceba bem quando acabou.

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