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Coordenador de Grande Reportagem e editor de Religião e Cidadania TVI/CNN Portugal

Como se vai definindo o papel da religião no conflito entre Rússia e Ucrânia

7 mar 2022, 07:00

Com o decorrer dos dias, torna-se evidente a irreversibilidade da invasão. Só não se sabe a dimensão da estratégia do Kremlin. A hipótese de uma solução dialogada e negociada, garantindo a integridade territorial ucraniana, desvanece-se. As vítimas mortais e o incessante movimento de refugiados dão-nos a face humana da tragédia, que se prevê ainda maior, muito maior, perante a resistência ucraniana, já considerada heroica.

As feridas do povo agredido não vão sarar durante, pelo menos, três gerações. E a Europa vê-se obrigada a projetar outro futuro nas opções energéticas, económicas, políticas, sociais, securitárias e de parcerias estratégicas.

É neste contexto, de inesperadas variáveis, que devem interpretar-se as posições das lideranças religiosas mais envolvidas, mesmo que indiretamente. Há que prestar atenção à “religião, num conflito que não é religioso” (reler crónica aqui publicada em 26 de fevereiro).   

A tensão entre a Rússia e a Ucrânia tem também contornos religiosos. Se a ignição deste conflito, de consequências imprevisíveis, não foi a religião, a religião pode ter um papel a desempenhar no desenrolar do conflito. Embora tenhamos de recordar a presença de católicos, protestantes, judeus e muçulmanos, estamos num território de esmagadora influência cristã ortodoxa.

1. Com a independência dos antigos estados soviéticos, no dealbar da década de 90 do século XX, e apesar da histórica influência do patriarcado ortodoxo de Moscovo, os cristãos ortodoxos ucranianos testemunharam movimentações no sentido da autonomia da Igreja ucraniana – seguindo a tradição ortodoxa de cada nação ter a sua Igreja autocéfala.

O processo foi longo e só em 2018 houve condições para esse reconhecimento. Bartolomeu, patriarca ecuménico ortodoxo de Constantinopla, atual Istambul – que a tradição ortodoxa tem como primus inter pares (primeiro entre iguais) dos primazes ortodoxos – atribuiu o estatuto (tomos) de Igreja autocéfala à Ucrânia, contra a vontade de Cirilo, patriarca ortodoxo de Moscovo, representante, na prática, da maioria dos cristãos ortodoxos no mundo. Com este estatuto, a Igreja autocéfala ucraniana fica totalmente desvinculada do Patriarcado de Moscovo.

Em 2018, o pano de fundo era já de alinhamentos geopolíticos, com Putin colado também às narrativas da Igreja de Moscovo, fazendo-se valer também da implantação do cristianismo no leste da Europa – a evangelização daquela região começou pela atual Ucrânia, tendo o patriarcado ortodoxo sido sediado em Moscovo pela vicissitude das circunstâncias apostólicas, populacionais e imperiais – para alegar que a Ucrânia é território da grande Rússia. Trata-se, como é fácil de deduzir, de uma visão instrumentalizada da história, mas o próprio Patriarcado de Moscovo mantém este argumento para alegar que não é legítima a Igreja autocéfala ucraniana.

No terreno, os cristãos ucranianos distribuem-se sobretudo entre as igrejas sob influência de Epifânio, primaz da Igreja ortodoxa autocéfala, sediada em Kyiv, e as igrejas sob influência do metropolita Onofre, espécie de alto-representante do patriarca de Moscovo. Pelo meio, sob o arcebispo greco-católico Shevchuk, apenas 10% da população crente ucraniana é católica e reconhece o Papa – a Igrejas ortodoxa oriental deixou a comunhão com Roma no grande cisma de 1054, recusando assim, e desde então, a figura do Papa como líder jurisdicional ao qual devem submeter-se.

Isto não significa que os ortodoxos frequentadores das igrejas leais ao Patriarcado de Moscovo estejam a favor da guerra ou das pretensões russas. Pelo contrário, são evidentes os incómodos sinais de um impulso patriótico entre os cristãos, independentemente da lealdade institucional. Padres leais ao metropolita Onofre, ligado ao Patriarcado de Moscovo, estão na linha de apoio à população que se defende.  O próprio metropolita pediu a Putin que pare a agressão.

2. Há agora uma certa desorientação nas Igrejas cristãs ortodoxas. De um lado, as leais a Cirilo, incluindo algumas comunidades autocéfalas que se mantém como “satélites” do Patriarcado de Moscovo. Do outro, as comunidades mais próximas do patriarca ecuménico ortodoxo de Constantinopla ou da Igreja ortodoxa grega.

Esta crise institucional no mundo ortodoxo, que tem a Ucrânia como pomo de discórdia, cria um vazio. As lideranças nas Igrejas orientais não têm condições para intervir, perderam legitimidade de mediação sob suspeita de serem parciais.

Tal como as consequências da guerra, as consequências desta na vivência religiosa são também imprevisíveis. O mais certo é a invasão desencadear um distanciamento dos cristãos ucranianos em relação a Moscovo, saindo reforçada a reivindicação de uma Igreja autocéfala e mais patriótica. Resta saber o que sobra da Ucrânia, para se saber qual é a  estrutura eclesial possível.

Depois de alguma hesitação, o próprio patriarca de Moscovo ergueu a voz contra as armas, mas não ousou falar das razões do conflito, reafirmando que é pastor de um “rebanho” que está na Rússia, na Ucrânia e noutros países. Recordando a afinidade religiosa entre russos e ucranianos, Cirilo disse acreditar que “Deus ajudará a superar as divisões e desacordos” e pediu às partes envolvidas no conflito que “façam todo o possível para evitar baixas entre a população pacífica”.

O primaz da Igreja autocéfala ucraniana, Epifânio, respondeu a estas palavras, que soaram a um “nim”, alegando que o Patriarca de Moscovo está mais preocupado em manter compromissos com Putin do que em salvaguardar a Ucrânia e os ucranianos.

3. Com este cenário, as atenções voltam-se para o líder da Igreja católica apostólica romana. O Papa está consciente da complexidade por detrás do conflito. Disponível para ajudar a construir pontes, a Igreja católica não pode fazê-lo de forma precipitada, sob risco de fragilizar as Igrejas ortodoxas, com quem os últimos papas têm feito caminhos de aproximação. Por esta razão e por muitas outras que nada têm a ver com a religião, também não é de crer que Putin aceite, sequer, uma mediação formal do Papa. Mas a Igreja católica está ativa em duas frentes: a diplomacia formal e a diplomacia pastoral.

No terreno, a Igreja católica mantém vias comunicantes onde o resto falha. Mesmo e situação minoritária, as lideranças católicas locais têm a legitimidade das relações concretas, capazes, como se regista na história, de atuar entre beligerantes para salvaguardar vidas humanas, sem que isso comprometa tomadas de posição.

O Papa decidiu enviar dois emissários à Ucrânia, que o representam diretamente. Os cardeais Konrad Krajewski e Michael Czerny. O polaco Krajewski é o responsável pela ação caritativa da cidade do Vaticano. Czerny, jesuíta canadiano, do dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano, é o homem do Papa para as migrações e refugiados. O Papa entra assim na diplomacia dos corredores humanitários e da ação pragmática para salvar vidas.

A contenção de Francisco nas palavras ditas sobre o conflito vai, entretanto, caindo diante das evidências. Até agora, denunciava a guerra, pedia o silêncio das armas, mas evitava acusar diretamente Putin. Este domingo fê-lo sem equívocos. Lamentou os “rios de sangue e lágrimas” e clarificou que “esta não é apenas uma operação militar”, como insinua o presidente russo, “mas uma guerra que semeia morte, destruição e miséria''.

Entre as intenções do pontificado, Francisco tinha inscrita uma visita ao patriarca de Moscovo. Esta crise terá comprometido definitivamente essa hipótese, a menos que o Papa consiga garantir que uma ida a Moscovo contribuirá para calar as armas durante muito tempo. Neste caso, Bergoglio sujeitar-se-ia até às críticas internacionais, como aconteceu noutros casos – Myanmar, por exemplo.

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