"Não estamos a proteger apenas a Ucrânia”. Estrangeiros e expatriados pegam em armas para lutar contra a Rússia

CNN , Tara John, AnneClaire Stapleton e Joseph Ataman
5 mar 2022, 14:00
Soldados norte-americanos. Foto: AP Photo/Nathan Posner

Nem todos apoiam a ida de combatentes estrangeiros para Ucrânia, mas há casos de resistência que contrariam essa ideia, como Vasyk Didyk, de Nova Iorque, Jake Dale e Peter Hurst, do Reino Unido. Histórias que a CNN relata neste artigo

A estrada cinzenta de asfalto que leva à fronteira ucraniana de Shehyni com a Polónia assistiu a engarrafamentos de quase 50 quilómetros, à medida que as pessoas tentavam fugir do país, muitas vezes com despedidas emocionantes de familiares e amigos que ficaram para trás a combater a invasão russa.

A partir desta quarta-feira, trouxe uma visão diferente: grupos de jovens, carregados com sacos pesados e equipamentos militar, entraram na Ucrânia vindos da Polónia, em resposta ao apelo do presidente Volodymyr Zelensky para que os “cidadãos do mundo” combatam os “criminosos de guerra russos”.

Entre eles, o residente em Nova Iorque, Vasyk Didyk, um carpinteiro de 26 anos com um gorro Carhartt fluorescente, que nasceu na Ucrânia.

“Esta é a nossa pátria”, disse à CNN, em Shehyni. “Não poderíamos continuar as nossas vidas confortáveis ​​nos EUA a ver o que está a acontecer aqui", acrescentou.

Didyk, acompanhado pelo amigo Igor Harmaii, passou 24 horas a viajar de Nova Iorque para a Polónia, antes de entrar na sua terra natal a carregar uma mochila de lona e uma mala com rodas.

Vasyk Didyk não tem qualquer treino militar e rumou para a guerra, apesar de os pais, que não vivem na Ucrânia, terem chorado ao telefone quando souberam que ele se ia juntar à luta.

“Não regressava à Ucrânia há quatro anos, mas nem foi uma opção. Tinha de vir ajudar o meu país", assinalou.

O mundo tem estado a seguir, horrorizado, desde o momento em que a Rússia invadiu a Ucrânia, desencadeando o que pode ser a maior guerra terrestre na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. E a qualidade desafiadora de Zelensky não só uniu a oposição ocidental à Rússia, como também inspirou voluntários estrangeiros e ucranianos a lutar pela causa.

“Isto não é apenas a invasão da Ucrânia pela Rússia”, disse Zelensky no domingo passado, acrescentando: “Isto é o começo de uma guerra contra a Europa, contra as estruturas europeias, contra a democracia, contra os Direitos Humanos básicos, contra uma ordem global de leis, regras e coexistência pacífica.”

As embaixadas ucranianas têm ajudado a recrutar combatentes estrangeiros, enquanto pelo menos um político de elevado escalão de um governo ocidental, que já processou aqueles que se juntaram a guerras estrangeiras, mostrou o seu apoio aos cidadãos que pegam em armas na Ucrânia.

“Se as pessoas quiserem apoiar essa luta, eu vou apoiar essa decisão”, disse Liz Truss, ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, à BBC, no domingo passado.

A CNN questionou o governo francês sobre se apoiava os franceses que se quisessem juntar à guerra na Ucrânia, ao que o executivo respondeu: “A Ucrânia é uma zona de guerra, classificada como zona vermelha no que diz respeito a viagens, uma informação atualizada permanentemente e disponível online. Em resultado disso, desaconselhamos formalmente qualquer viagem para a Ucrânia.”

A CNN fez a mesma pergunta ao Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, durante uma conferência de imprensa na quarta-feira. Quando questionado sobre os combatentes americanos, Blinken disse que os EUA têm sido “claros há algum tempo” ao dizer que “os norte-americanos que estejam a pensar em viajar para lá, não devem fazê-lo”.

Vasyk Didyk (à esquerda) e Igor Shehyni (à direita) chegam à Ucrânia, depois de mais de 24 horas de viagem desde Nova Iorque (CNN)

Se os americanos querem ajudar a Ucrânia, “há muitas formas de fazê-lo, incluindo apoiar e ajudar as muitas ONG que estão a trabalhar para fornecer ajuda humanitária.Também podem fornecer recursos próprios a grupos que estão a tentar ajudar a Ucrânia, falando em defesa do país”, acrescentou Blinken.

Na quinta-feira, Zelensky disse que os primeiros 16.000 combatentes estrangeiros estavam a caminho da Ucrânia “para proteger a liberdade e a vida, a nossa e a de todos”, disse ele. A CNN não conseguiu confirmar estes números.

“Um ataque à Europa”

Na cidade inglesa de Milton Keynes, mais de 2.000 quilómetros a oeste de Shehyni, o construtor britânico Jake Dale afirmou que o apelo aos combatentes estrangeiros para se juntarem à Legião Internacional da Ucrânia inspirou-o a agendar um voo para a Polónia na sexta-feira. Dale pretende entrar na Ucrânia rapidamente.

“Assim que ouvi o apelo [de Zelensky] - isso fez-me pensar que ele precisa de ajuda”, disse o jovem de 29 anos a partir da casa que divide com a namorada e os dois filhos.

“Acho que é uma causa que merece que eu arrisque a minha vida, e a minha namorada sente o mesmo. Obviamente, ela fica preocupada, como qualquer um ficaria, mas dá-me todo o apoio porque vê que eu quero ajudar", acrescentou.

Em 2015, Dale quis juntar-se a um grupo da milícia curda, as Unidades de Proteção do Povo, ou YPG, que liderava a luta contra o Daesh na Síria, mas recuou na sua decisão devido a advertências por parte do governo britânico.

Desta vez, o jovem não está preocupado com os possíveis problemas legais que pode enfrentar ao regressar da Ucrânia. “Estou disposto a lidar com isso”, disse, depois de o governo britânico se distanciar das declarações de Truss.

Durante uma viagem à Polónia, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson disse que o Reino Unido não estava a apoiar “ativamente” os voluntários que vão lutar.

“Entendo as razões que levam as pessoas a sentirem-se assim, mas temos leis no nosso país sobre conflitos internacionais e sobre como devem ser conduzidos”, disse Boris Johnsson aos jornalistas.

Aos 36 anos, Dale está a caminho da Ucrânia com Peter Hurst, um antigo soldado de infantaria do Exército britânico, que fez parte de uma comissão no Afeganistão antes de deixar o exército em 2011.

Pai de cinco filhos, Hurst, que mora na cidade de Pontefract, no norte de Inglaterra, conversou com a CNN por videochamada, enquanto escolhia o equipamento numa loja de equipamento militar de uma cidade vizinha. O antigo combatente disse que queria lutar para proteger os valores democráticos e as liberdades.

O cidadão britânico Jake Dale (à esquerda) aqui numa foto com a sua família. Peter Hurst (à direita) com a esposa no dia do casamento. Ambos  planeiam chegar à Ucrânia este sábado.

“Parece um ataque à Europa. Se não ajudarmos a travar a guerra ali [na Ucrânia], o mais certo é ela espalhar-se”, disse ele.

Tanto Hurst como Dale conheceram-se esta semana num grupo do Facebook criado para ajudar a fornecer ajuda médica e militar à Ucrânia. Eles estão a trabalhar com uma pessoa que serve de ligação – cujo nome está listado num pacote de informações enviado pela embaixada ucraniana – e que lhes fornecerá equipamento de proteção e coletes à prova de balas, na Polónia.

Dale gastou 300 libras a comprar equipamento e bilhetes de avião, e preocupa-se com o impacto financeiro de ele não estar a trabalhar. “Vai ser uma pressão acrescida para a minha família, quando eu me for embora”, reconheceu. “Mas tenho a certeza de que ficaremos bem", acrescentou.

Nem todos apoiam a ida de combatentes estrangeiros para a Ucrânia.

A organização de rastreio extremista SITE Intelligence Group, com sede nos EUA, alertou sobre o envolvimento de grupos como o Azov, um grupo paramilitar cujo logótipo é o Wolfsangel, um símbolo utilizado pela Alemanha nazi.

“Após a recente invasão da Ucrânia pela Rússia, as comunidades online de extrema direita uniram-se a grupos como o Azov, tanto em termos de angariação de fundos quanto nas suas intenções de lutar ao lado deles”, diz um relatório do SITE.

O governo britânico assinalou que quem não tem treino militar deve evitar os combates.

No grupo do Facebook em que Hurst e Dale se conheceram, um utilizador adverte: “Não é um lugar para alguém que não sabe manusear armas e que não fale a língua. Além de ser um perigo para os outros, não é justo para com eles mesmos.”

Dale diz estar consciente desses avisos, mas insiste que as suas capacidades como mecânico qualificado podem ser úteis.

"As pessoas podem dizer que é errado entrar sem formação militar, mas acredito que, ao lutar ao lado dos ucranianos, estou a responder ao pedido de ajuda deles”, disse. “O regime de Putin é implacável - não é apenas a Ucrânia que estamos a proteger", assinalou.

“O tempo que for preciso”

Valery, um cidadão ucraniano que pediu que não revelássemos o seu apelido, reside na região leste de França, mas sentiu-se compelido a regressar à Ucrânia para visitar os pais idosos enquanto a Rússia concentrava tropas na fronteira com a Ucrânia.

A invasão de 24 de fevereiro começou logo depois de ele chegar a Kiev, e foi anunciada com sirenes de alerta antes do amanhecer.

“Acordei por volta das cinco da manhã com um som muito estranho”, recordou. “Pensei que ainda estava a sonhar. Nem queria acreditar no que estava a ouvir. Mas o som era tão persistente que eu já não consegui dormir mais", acrescentou.

Valery disse que teve logo o seguinte pensamento: “Quão útil posso ser para o meu país? A minha primeira ideia foi alistar-me no exército e verificar quão útil posso ser.”

Depois de se alistar num centro de recrutamento, o homem de 45 anos disse que “teve uma sensação de náuseas” quando recebeu a arma e percebeu que a normalidade tinha sido quebrada. “Kiev tem sido uma cidade muito pacífica desde 1943”, assinalou.

Valery está com outros cinco homens numa unidade militar. “Muitos deles têm família, filhos. No entanto, alistaram-se”, disse, acrescentando que as tropas estão moralizadas: “Há muita determinação em derrotar o inimigo.”

De volta à fronteira em Shehyni, os nova-iorquinos Didyk e Harmaii debatem-se com as suas mochilas de lona e malas com rodinhas.

Quando questionados sobre quanto tempo pretendem ficar na Ucrânia, ambos fazem uma pausa e dizem quase ao mesmo tempo: “O tempo que for preciso.”

Tara John, da CNN, reportou e escreveu de Londres, enquanto AnneClaire Stapleton, da CNN, reportou de Shehyni, na Ucrânia, e Joseph Ataman e Camille Knight reportaram de Paris, em França.

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