Espiões, criptomoedas e uma enorme rede de estafetas. Rússia criou uma organização criminosa na Europa para contornar as sanções

6 dez 2024, 21:30
Moscovo (EPA)

Alimentada por criptomoedas e a operar em plena luz do dia debaixo do radar das autoridades, um empresário e uma influencer russa utilizaram a lavagem de dinheiro do tráfico de cocaína para contornar as sanções e financiar a espionagem do Kremlin

No submundo do crime organizado, onde se encontram assassinos, cartéis de droga, gangues de hackers russos e espiões, uma rede secreta que operava silenciosamente possibilitava movimentar milhares de milhões em dinheiro sujo para qualquer parte do mundo. Este império, construído por uma rede de empresários russos, teve ramificações que iam das ruas de Londres, aos arranha-céus do Dubai e aos corredores do Kremlin. Mas um simples lapso, durante a pandemia, chamou a atenção das autoridades, que começaram por descobrir uma das maiores operações de lavagem de dinheiro alguma vez vistas.

Em 2021, algumas das principais famílias do crime europeias começavam a ter problemas graves. O confinamento da pandemia de covid-19 estava a interferir com as suas operações de lavagem de dinheiro. Com a maior parte dos negócios encerrados, tinha-se tornado praticamente impossível movimentar o dinheiro “sujo” do tráfico de cocaína e “lavá-lo” através de negócios legítimos. O problema estava a tornar-se de tal forma sério que estes grupos organizados começavam a ter dificuldades em comprar mais droga aos seus fornecedores na América Latina.

Ao mesmo tempo, noutras partes do mundo, um fenómeno intensificava-se. Com milhões de pessoas “trancadas” dentro das suas casas e a atividade digital a aumentar a um ritmo sem precedentes, o número de ataques informáticos disparou. As principais vítimas eram as empresas, que viram os seus sistemas “sequestrados” e, em desespero, pagaram milhares de milhões de euros em resgates para voltar a ter acesso aos seus dados. Isto deixou alguns dos principais grupos cibercriminosos com muitas criptomoedas, mas com opções limitadas de aceder ao dinheiro roubado.

Estes dois elementos criaram a tempestade perfeita. Em Moscovo, onde estavam em marcha os preparativos para a maior invasão militar na Europa desde o fim da Segunda Guerra Mundial, duas empresas foram criadas: a Smart e a TGR. Estas sociedades criaram uma rede de estafetas espalhada em mais de 30 países com o propósito de recolher fisicamente as grandes quantidades de dinheiro vivo dos traficantes. Depois, em troca de uma comissão, convertiam este dinheiro num valor equivalente em criptomoedas e disponibilizavam-no noutros países, depois de a sua vasta rede de mulas branquear o dinheiro.

O esquema tornou-se fundamental não só para os principais gangues europeus, que operam a partir de prédios de luxo no Dubai, e para os grupos cibercriminosos russos, mas também para um número cada vez maior de espiões e elites russas que precisavam de aceder a grandes quantidades de dinheiro sem atrair atenções. O esquema aumentou significativamente de escala quando Vladimir Putin lançou a invasão à Ucrânia, criando a necessidade de encontrar novas formas de contornar as sanções ocidentais.

No centro de todo este esquema estava uma influencer russa de 38 anos, chamada Ekaterina Zhdanova, que era, pelo menos no papel, a diretora da Smart. Nas redes sociais, Ekatarina mostrava um estilo de vida luxuoso, em resorts de ski e em alguns dos restaurantes mais caros do mundo, e gabava-se de movimentar “grandes volumes” de criptomoedas. Mas as autoridades acreditavam que ela era bem mais do que uma mera comerciante de criptomoedas e, em 2023, foi sancionada pelos Estados Unidos da América por suspeitas de estar no centro de uma operação de lavagem de dinheiro utilizada por alguns dos principais oligarcas russos. De acordo com a National Crime Agency (NCA) do Reino Unido, a rede de Zhdanova foi uma das principais fontes de financiamento de operações de espionagem russas na Europa.

O esquema só foi descoberto quase por acaso. Durante a pandemia, Fawad Saiedi, um dos homens utilizados como estafeta pela Smart, foi parado pela polícia numa operação de rotina. As autoridades encontraram uma mochila no interior do seu carro com 250 mil libras em dinheiro vivo. Era apenas a ponta do icebergue. Em interrogatório, Saiedi admitiu ter coordenado a distribuição de mais de 15,6 milhões de libras em dinheiro sujo de vários grupos criminosos, no Reino Unido.

Um olhar mais aprofundado das autoridades começava a revelar um padrão em 55 pontos do país, todos ligados a indivíduos próximos do mundo das corretoras de criptomoedas. Assim que os estafetas das empresas russas Smart e TGR recebiam o dinheiro dos grupos criminosos o dinheiro em criptomoeda era transferido para uma conta secreta. A criptomoeda escolhida era, quase sempre, a Tether, que replica o valor do dólar, o que protege os proprietários contra flutuações comuns a outras moedas.

Este esquema permitia aos criminosos continuar a financiar as suas operações sem necessidade de mover dinheiro físico. O esquema, desvendado pelas autoridades na megaoperação batizada como “Operation Destabilise”, levou à detenção de 84 pessoas em 55 localizações em Inglaterra, Escócia, País de Gales e ilhas do Canal da Mancha. Só que a dimensão do serviço prestado pelos criminosos preocupa as autoridades. Durante o verão de 2024, estes serviços de lavagem de dinheiro cobravam 3% de todo o dinheiro branqueado. Com base nestas percentagens, as autoridades calculam que os 20 milhões apreendidos aos criminosos indiquem que os grupos de traficantes branquearam mais de 700 milhões de euros.

“As redes desmanteladas pela Operação Destabilizar estavam escondidas à vista de todos, operando a partir das nossas comunidades, movimentando grandes somas de dinheiro ligadas ao tráfico de droga e à violência grave nas nossas ruas”, insiste Nik Adams, comissário da polícia britânica.

E as quantidades movimentas eram estonteantes. Semen Kuksov, de 24 anos, foi apanhado a lavar mais de 14 milhões de euros aos traficantes do grupo Kinahan, apenas num período de dez semanas. O jovem, com nacionalidade russa e maltesa, foi condenado a seis anos de prisão. Mas as ligações do jovem à elite russa levantam suspeitas. O pai de Semen Kuksov é Vladimir Kuksov, um dos mais importantes executivos da indústria petrolífera russa, que financia os cofres do Kremlin.

Em 2023, a Smart de Ekaterina Zhdanova, ajudou um oligarca russo sancionado, cuja identidade não foi revelada pelas autoridades, a contornar as sanções ocidentais e a comprar mais de 2 milhões de libras para aquisição de várias propriedades no Reino Unido. Ao mesmo tempo, tanto a TGR e a Smart utilizaram a Garantex, uma corretora sancionada por ser frequentemente utilizada por empresas que fornecem tecnologia militar à Rússia, contornando as sanções. Essa rota financeira foi fundamental para o Kremlin adquirir componentes que estavam inacessíveis devido às sanções impostas por países ocidentais.

Só que as autoridades mostram-se cada vez mais preocupadas com o papel dos espiões russos no ocidente, não só para contornar as sanções impostas pelo ocidente, como para promover a desestabilização política do continente. Um dos principais instrumentos de propaganda do Kremlin em território ocidental, a televisão sancionada RT, foi apanhada a utilizar esta rede de mulas para aceder a fundos. No passado, os serviços de inteligência russos utilizaram o RT para minar a confiança nas democracias ocidentais e a promover a visão política do Kremlin. Entre o fim de 2022 até ao verão de 2023, a rede Smart foi utilizada para financiar operações de espionagem russa, de acordo com a NCA.

“Pela primeira vez, conseguimos estabelecer uma ligação entre as elites russas, os cibercriminosos ricos em criptomoedas e os grupos de traficantes de droga nas ruas do Reino Unido. O fator que os unia - a força combinada da Smart e da TGR - era invisível até agora. A NCA e os seus parceiros desmantelaram este serviço criminoso a todos os níveis”, garante Rob Jones, diretor de operações da NCA.

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