Alex, que nasceu e viveu na Rússia mas é ucraniano e está em Portugal há 20 anos, vai resgatar a filha e a neta que estavam em Kiev

15 mar 2022, 19:52
Oleksandr Zharikov

REPORTAGEM Chama-se Oleksandr Zharikov, é o seu nome ucraniano, mas nasceu Aleksandr Zharikov, é o nome russo com que nasceu. O fim da União Soviética mudou-lhe a nacionalidade e o nome mas não a maneira como vê a sua gente: cresceu a achar que russos e ucranianos eram iguais, envelhece a achar o mesmo - "russos e ucranianos são misturados", diz ele, que foi contra o fim da União Soviética e que é contra a guerra em curso. Tem duas filhas que também nasceram na Rússia mas que são ucranianas: a mais nova delas - que é mãe de uma criança de 13 - está em fuga com a criança. Oleksandr já não as vê há cinco anos e o plano é acabar com isso esta quarta-feira

"Como é que se escreve o seu nome?", ele pega numa caneta e num caderno e mostra como é, "O L E K S A N D R", tudo em capitulares, é o inconsciente dele a lembrar-lhe que esta quarta-feira vai ser um dia maiúsculo, depois a caneta desenha "Z H A R I K O V",  é o apelido, ele escreve o Z com um traço horizontal a meio, é o inconsciente dele a dizer-lhe para não usar os símbolos de guerra das tropas russas, que pintaram um Z nos veículos e na artilharia que estão a ser usados na invasão da Ucrânia - o que fez desse Z um símbolo nacionalista. Oleksandr anuncia a seguir que tem 61 anos mas escreve 60 e diz "em abril é que é 61, agora é 60, é 60", repete o 60 e já não tem dúvidas, sorri e encolhe os ombros, os ombros não escreveram "ESTOU A FICAR VELHO" mas é o que estão a gritar, estão enganados: Oleksandr é um homem elegante que se senta e caminha com as costas direitas e que posa para a fotografia de pernas e braços abertos, é a pose de um homem confiante pronto para tudo - que foi como ele chegou a Portugal, pronto para tudo, tinha então 40 anos, foi em 2001, 10 anos depois do fim da União Soviética, a União Soviética que ele não queria que tivesse acabado.

"Eu ainda sou soviético" não é uma frase muito popular para se dizer em 2022, mas ser-se soviético pode significar muitos factos, o facto dele é o facto com que cresceu, "nasci na Rússia em 1961, no Norte da Rússia, perto da fronteira com a Noruega, em Murmansk, nasci lá, estudei 17 anos lá, acabei a escola lá, e depois saí para a Ucrânia... bem, saí para a Ucrânia...", repare-se bem no "bem" dele e nas reticências, ele faz pausas a dizer aquilo porquei aquilo quer dizer que sair da Rússia para a Ucrânia era sair de lado nenhum, era estar no mesmo lado, "eu não divido Ucrânia e Rússia porque eram a mesma coisa na União Soviética e eu ainda sou soviético, estava tudo junto antes e podia continuar junto - ucraniano, russo, bielorrusso, cazaque, são todos iguais, habituei-me a estar tudo junto sem dividir ninguém, a minha língua é o russo", Oleksandr nem sequer é hábil no idioma ucraniano.

"Quando destruíram a União Soviética", como ele diz, Oleksandr - que nessa altura era Aleksandr - estava em Mykolaiv, cidade no sul da Ucrânia junto ao Mar Negro: a cidade tinha três estaleiros, "eu trabalhava num deles e estávamos a produzir porta-aviões, barcos para apanhar peixe e navios militares", o maior estaleiro empregava 15 mil pessoas, "eram três estaleiros e agora não tem nada, passaram 30 anos de independência da Ucrânia e destruíram as empresas todas", Oleksandr usa muito o verbo destruir para se referir àquele 1991, "estava tudo muito misturado e muitas pessoas não queriam destruir a União Soviética, os políticos pensaram outra coisa, dividiram - e os russos que estavam na Ucrânia nessa altura receberam documentos ucranianos, os ucranianos que estavam na Rússia receberam documentos russos, por isso eu tenho nacionalidade ucraniana mas naturalidade russa", e foi assim que no novo passaporte que lhe deram em 1991 o "Aleksandr" da tradição onomástica russa passou ao "Oleksandr" da preferência ucraniana e foi também assim que ele se tornou administrativamente cidadão da Ucrânia - tal como as duas filhas, que nasceram na cidade russa de Perm, para onde Oleksandr foi depois de ter chegado aos 17 anos à Ucrânia, à qual regressou antes de 1991. Hoje, Oleksandr pede que lhe chamem Alex, a simplificação portuguesa do Aleksandr que foi o nome dele durante os primeiros 30 anos de vida.

Portanto: Alex tem naturalidade russa, nacionalidade ucraniana, 20 anos de vida portuguesa, "Portugal é o melhor país da Europa, estou sempre a dizer isso", fala bem russo, ucraniano nem tanto, move-se bem no Português, "Alex, como é que alguém com esta vida lida com esta guerra?", "não apoio ninguém, é desculpar os dois lados, a guerra é um desastre: a Rússia quer que a Ucrânia acabe com o conflito na região do Donbass - onde os russos são a maioria da população -, só que os separatistas também respondem com violência, por isso esta invasão da Ucrânia não pode acontecer, é um desastre para russos e ucranianos", Alex usa muito o substantivo "desastre" para descrever 2022, "os políticos são sempre brutos, tinham é de falar, as pessoas têm de falar, assinaram os acordos de Minsk mas ninguém fez nada a seguir, por isso não sei, é muito complicado, é um desastre" e então Alex só tem mesmo um lado nesta guerra, o da família - mãe, irmã e filha mais velha, que estão em Mykolaiv, filha mais nova e neta de 13 anos, que fugiram de Kiev, "nesta guerra as minhas filhas apoiam a Ucrânia, viveram quase vida toda lá".

Alex chegou a Portugal dez anos depois do fim da União Soviética, um amigo em Lisboa chamou-o, Alex queria um emprego melhor num país diferente mas as duas filhas e a mulher dele de então queriam as vidas no país de sempre: uma das meninas tinha 16 e a outra 18 à época, hoje são mulheres de 36 e 38, fizeram a vida toda na Ucrânia e a mãe delas também, a mãe divorciou-se do pai porque o amor não resiste a tanta distância, a filha mais nova de Alex também se divorciou entretanto e estava sozinha em Kiev com a filha de 13 anos quando as bombas apareceram. Não conseguiram sair logo mas a 3 de março entraram num comboio, 12 horas de Kiev até Lviv, onde ficaram uma noite, no dia a seguir prosseguiram  viagem num autocarro e quando saíram dele estiveram nove horas numa fila de 1,5 quilómetros de pessoas, a zona de Lviv tornou-se das mais seguras para se fugir da guerra e por isso cada quilómetro daqueles passou a demorar cada vez mais horas a caminhar, mas mãe e filha estão agora na Polónia, "tenho lá uma amiga ucraniana que está a acolher ucranianas que fugiram da guerra, neste momento tem sete pessoas, vêm todas para Portugal: a minha filha, a minha neta, uma amiga com duas filhas e uma amiga com uma filha, portanto três mulheres e quatro crianças", explica Alex, que se juntou a uma missão humanitária que saiu domingo de Lisboa com cinco autocarros, 25 carrinhas e dois carros de apoio que levam médicos, enfermeiros, psicólogos, motoristas e outros elementos que vão cuidar de 350 ucranianos e depois trazê-los para Portugal. 

Alex não vai ter a família toda de volta, a filha mais velha fica na Ucrânia, a mãe também, a irmã de Alex idem: Mykolaiv, a cidade dele e delas , não está ocupada pelos russos mas eles estão nos arredores. Alex ainda acredita que a filha mais velha reconsidere, "já a minha mãe, que tem 86 anos, e a minha irmã e o marido dizem 'ficamos, não vamos deixar as nossas casas e começar uma vida nova, aprender uma língua nova', naquele idade é complicado, eu compreendo, eu tinha 40 anos quando cheguei a Portugal e já foi complicado, é sempre mais fácil para quem é mais novo", e é assim que Alex chegou a uma terça-feira que é a primeira em cinco anos em que na quarta-feira imediatamente a seguir vai poder ver a filha mais nova e a neta, foram 1825 dias sem estarem juntos, "não preciso de dizer como vai ser o reencontro, pois não?".

Relacionados

Europa

Mais Europa

Mais Lidas

Patrocinados