"Psicologia em tempo de guerra", uma rubrica para ler no site da CNN Portugal
Ao refletir sobre a presente guerra na Ucrânia, ocorre-me um tópico abrangente do ponto de vista da psicologia comunitária que se relaciona com a própria definição de comunidade.
As comunidades assumem formas e dimensões muito diversas, interpenetradas, cruzadas e incluídas umas nas outras, sendo que, quando nos referimos a comunidade por referência a um país, é no seu sentido ecológico mais alargado, designado macrossistema (que inclui uma identidade nacional, leis gerais, etc).
O conceito de comunidade não é unânime. Existe, contudo, uma componente geralmente consensual – o Sentido Psicológico de Comunidade (Searson), definido como “a perceção da semelhança relativamente aos outros, o reconhecimento de interdependência com os outros, a predisposição para a manutenção dessa interdependência através da realização do que os outros esperam e o sentimento de que se faz parte de uma estrutura superior estável e da qual se pode depender”.
O Sentido Psicológico de Comunidade pode ser sistematizado em quatro dimensões: pertença; influência, ligação emocional partilhada e integração e satisfação de necessidades. Estas dimensões promovem uma (auto)identificação das pessoas da comunidade e diferenciam a existência de um “nós” relativamente a um “outros”. As intervenções psicológicas em contexto comunitário que demonstram ser mais eficazes tendem a apoiar-se neste sentido de comunidade, promovendo o desenvolvimento a partir das potencialidades existentes.
Vem isto a propósito de um dos principais argumentos explicitamente comunicados para justificar esta guerra ser a ausência de uma nação ucraniana, o que, traduzido em termos da Psicologia Comunitária, significa que os ucranianos não partilham um Sentido Psicológico de Comunidade. Mais ainda, é argumentado que a Ucrânia fará parte de uma outra comunidade que não a ucraniana (no caso, a da “Mãe Rússia”).
A consequência direta é que, por exemplo, o sentimento de pertença e a ligação emocional partilhada que os ucranianos sentirão entre si serão … inexistentes ou falsos. Não por acaso, a comunicação e ação da liderança ucraniana tem insistido na afirmação da independência e da diferença de valores nacionais face ao opositor, isto é: no sentimento de pertença e na ligação emocional partilhada.
O argumento evocado pode até ser verdadeiro para parte da população ou parte do território. No final do conflito, poderá até haver uma clarificação das “Comunidades” existentes, dando lugar a diferentes grupos em territórios distintos: Se assim for, certamente haveria formas de atingir o mesmo objetivo com menor custo, medido em sofrimento, sangue e vidas.
Um cenário mais plausível, ao qual aquela parte do mundo está infelizmente habituada, será a imposição por via da força de um regime (conjunto de valores políticos, ideológicos, culturais) que não corresponda ao Sentido Psicológico de Comunidade existente. Este cenário será uma vitória formal militar, no entanto será provavelmente rejeitado pelos sujeitos da comunidade. Estará assim nos antípodas do que é uma boa prática de promoção do desenvolvimento e da paz, levando a uma situação que não será sustentada a não ser pela força e enquanto houver força.
As causas desta guerra serão inúmeras e muito diferentes daquelas que são publicamente afirmadas. Obedecem a interesses e agendas que só por mero acaso serão coincidentes com os das comunidades implicadas. No entanto, a vida terá de continuar a decorrer nestes territórios, e tarde ou cedo irá depender do Sentido Psicológico de Comunidade que vier a existir.
Alguns historiadores argumentam que os grandes impérios da história foram aqueles que souberam respeitar a cultura e costumes de povos conquistados. Citando Cherterton: “O verdadeiro soldado luta não porque odeia quem está à sua frente, mas porque ama quem está atrás de si”.
A estratégia militar também passa pela psicologia.
