opinião
Psicóloga, Direcção da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Psicologia em tempo de guerra. Transformar a ansiedade em ação

8 mar 2022, 19:03

"Psicologia em tempo de guerra", uma rubrica para ler no site da CNN Portugal

A caminho da escola passava por uma Estação de Serviço e naquele dia encontrei uma fila de carros para abastecer. Que estranho! - pensei. Vivia numa cidade pequena sem filas. Nem no trânsito.

Tinha 16 anos e a guerra até ali para mim significava imagens desfocadas, e muitas vezes repetidas, de misseis lançados, de edifícios destruídos e de pessoas aflitas que eu olhava como muito diferentes e distantes de mim. A guerra, se existia, seria muito longe. Uma realidade de filmes, ou dos livros de história.

Mas, naquele dia de 1990, aquela fila de carros trouxe a guerra para o meu quotidiano porque o receio de cortes de abastecimento levou as pessoas a encher o depósito dos seus automóveis. Lembro-me de sentir uma certa estranheza. Hoje, talvez admita que terá sido medo. 

E terminou ali o impacto para mim. Vi algumas imagens do que foi na altura designada a primeira guerra em direto e pouco mais. Tudo era longínquo, com cenários de deserto e pessoas anónimas.

Agora a guerra aparece mais nítida nas imagens e nas implicações. Também vemos explosões e edifícios destruídos, mas vemos sobretudo as pessoas, iguais a nós nas suas vidas interrompidas com a incerteza do que vem a seguir.

A incerteza, porque limita a possibilidade de nos prepararmos, desencadeia respostas de medo e ansiedade. O organismo entra em estado de alerta, prepara-se para se defender, para se acomodar à adversidade que antecipa. 

Mas, num estado de guerra, essa antecipação caduca rapidamente colocando as pessoas em vigilância permanente conduzindo a situações de stress crónico.

Na década de 1990 um grupo de investigadores nos EUA (Centers for Disease Control and Kaiser Permanente) começou a olhar de uma outra forma para crianças e adolescentes com problemas de comportamento e, num estudo sem precedentes, identificou o que hoje é designado Adverse Childhood Experiences (ACE). Estas experiências adversas na infância incluem três categorias: abuso, negligência e ambiente familiar disfuncional. Os efeitos, defendem, são cumulativos e duradouros. 

Uma criança ou adolescente com três ou mais ACE’s enfrenta um maior risco de problemas de saúde física (ex.: diabetes, doenças cardiovasculares) e psicológica (ex.: depressão) em adulto.

Os trabalhos de investigação que se seguiram em três décadas mostram que esses acontecimentos ficam marcados não apenas no comportamento, mas também na fisiologia dessas crianças e adolescentes. Viver situações de guerra não faz parte daquela lista.

A investigação não se ficou apenas por observar ou constatar relações, e procurou perceber o que pode atenuar esses efeitos, o que pode reforçar a resiliência e o bem-estar. O resultado recorrente aponta para o estabelecimento de relações positivas e seguras que parecem “absorver” o impacto negativo da incerteza de um ambiente inseguro e caótico.   

Hoje perguntava às minhas filhas adolescentes. “Como é que os vossos amigos estão a viver esta guerra?”. “Não estão muito stressados!” - responderam.De início fiquei surpreendida e depois de refletir começou a fazer sentido.

Esta guerra também está em direto, mas saiu dos ecrãs da TV e está nas ruas das nossas cidades. Nas filas de carros, mas sobretudo nas manifestações de apoio, nas ações de voluntariado, nas iniciativas coletivas de recolha de bens. Em muitas escolas encontramos adolescentes a mobilizarem-se para essas campanhas.

Lidar com a incerteza, combater o medo pode passar por transformar a ansiedade em ação, por estabelecer as tais relações positivas. 

Esta guerra também nos está a mostrar como, mesmo a milhares de quilómetros de distância, podemos estabelecer relações pela dádiva, pela atenção, pelo cuidado que colocamos em cada ato de solidariedade. 

E os benefícios serão para quem recebe tanto como para quem oferece.

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