"Gosta de correr riscos, não é previsível": invasão ucraniana em Kursk revela problema de gestão de Putin

CNN , Clare Sebastian
23 ago, 21:00
Vladimir Putin (AP)

O presidente russo, Vladimir Putin, gosta de se projetar como um homem forte. Mas o seu histórico de gestão de crises recentes na Rússia revela um lado diferente da sua ‘persona’ presidencial, num estado de paralisia e indecisão.

Putin só falou sobre a incursão em Kursk um dia e meio depois de as tropas ucranianas terem atravessado a fronteira russa, quase sem impedimentos. O presidente russo qualificou a incursão ucraniana como “uma provocação em larga escala”, acusou Kiev de disparar indiscriminadamente contra civis e passou logo para outros assuntos do governo, assinalando o “Dia do Trabalhador da Construção” da Rússia.

Só passado cinco dias, já depois da perda de quase 30 povoações na região de Kursk, é que Vladimir Putin prometeu uma resposta militar. Não fez uma visita à região para acompanhar as dezenas de milhares de pessoas retiradas de Kursk, nem sequer declarou lei marcial.

Em março, após o ataque terrorista na sala de concertos Crocus City, em Moscovo - o ataque mais mortal da Rússia em décadas - Putin demorou mais de 24 horas para fazer um discurso à nação. Apesar de o ataque ter sido reivindicado pelo ISIS-K, o presidente russo insistiu que a Ucrânia e o Ocidente estiveram envolvidos no atentado. Os EUA alertaram a Rússia para um ataque iminente. Putin nunca visitou o local do atentado nem visitou os sobreviventes no hospital.

Quando Evgeny Prigozhin, então líder do grupo mercenário Wagner, lançou um motim em junho do ano passado, a resposta do presidente russo foi inconsistente. Inicialmente, descreveu o incidente como “traição” e só voltou a abordar o tema dois dias depois, num discurso para agradecer às tropas do Wagner por recuarem no protesto e oferecer-lhes contratos militares. Na altura, convidou Prigozhin para uma reunião no Kremlin. Dois meses depois, Prigozhin foi morto num misterioso acidente de avião, na Rússia.

Um blindado russo destruído, no lado de fora de Sudzha, cidade russa controlada pela Ucrânia, na região de Kursk, em 16 de agosto de 2024,10 dias após Kiev lançar uma grande contraofensiva (Yan Dobronosov/AFP/Getty Images)

Há outros episódios semelhantes, e Putin decidiu destacar ele próprio um desses momentos. Pela primeira vez em 16 anos, o presidente russo visitou a Escola N.º 1 em Beslan, mais de uma semana antes do dia em que se assinalaram 20 anos desde o ataque terrorista naquela escola, que fez mais de 300 mortos, muitos deles crianças. Em 2017, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos concluiu que não só as autoridades russas falharam na atuação, como também a operação de segurança foi “desorganizada e foi prejudicada pela falta de liderança”.

“Ele [Putin] não é bom na gestão de crises”, afirmou à CNN Boris Bondarev, ex-diplomata russo que renunciou ao cargo há dois anos, em protesto contra a invasão da Ucrânia e que ainda vive fora da Rússia. “Gosta de correr riscos,  não é previsível. Putin gosta de conforto, gosta quando está a criar a crise para os outros, de controlar a situação.”

Ofensiva de choque deixou o Kremlin a 'cambalear'

Especialistas dizem que a resposta militar da Rússia em Kursk refletiu, de certa forma, as reações desajeitadas do seu presidente.

“A resposta inicial, quando recuperaram do choque do que estava a acontecer, teria sido perceber ‘quem é que nós temos de reserva para nos defender’”, indicou à CNN o major-general australiano reformado Mick Ryan, autor do novo livro ‘The War for Ukraine: Strategy and Adaptation Under Fire’ [ainda por traduzir em Portugal]. “Sejam recrutas, sejam batalhões com falta de efetivos no teatro ucraniano, ou reservas estratégicas”, acrescentou.

Relatos do campo de batalha confirmam a sensação de que foi feita à pressa uma seleção heterogénea de tropas russas, enquanto Moscovo lutava com o dilema de como equilibrar a defesa do seu próprio território com a manutenção dos avanços, ainda que lentos, no leste da Ucrânia. Autoridades ucranianas disseram que algumas tropas foram realocadas da região de Kharkiv e da frente a sul da Ucrânia. O líder checheno Ramzan Kadyrov disse logo no início que a sua unidade de forças especiais, a brigada Akhmat, tinha sido mobilizada. Oficiais de infantaria naval da frota do Mar Negro na Crimeia também foram destacados.

Dados de 22 de agosto de 2024

Notas: “Avaliado” significa que o Instituto para o Estudo da Guerra recebeu informações fiáveis ​​e verificáveis ​​de forma independente para demonstrar o controlo ou os avanços russos nestas áreas. Os avanços russos são áreas onde as forças russas operaram ou lançaram ataques, mas não as controlam. As áreas “reivindicadas” são aquelas em que as fontes indicaram que estão a ocorrer controlos, incursões ou contra-ofensivas, mas que o Instituto para o Estudo da Guerra não pode corroborar.

Fonte: Instituto para o Estudo da Guerra

Gráfico: Henrik Pettersson e Lou Robinson, CNN

Estes vários batalhões dificultaram os esforços russos para coordenar a sua resistência, e até um autor de um blogue militar pró-Rússia observou, em 14 de agosto, que a Ucrânia estava a criar danos deliberadamente e  recuar logo de seguida, aproveitando o facto de as forças russas, “que nem sempre têm boas comunicações entre si, terem sido ativadas para repelir essa invasão".

A resposta burocrática da Rússia à incursão tem sido igualmente difícil de pôr em prática. O ministro da Defesa russo, Andrei Belousov, criou um conselho de coordenação para garantir a segurança nas regiões de fronteira e anunciou esta semana que estava a dividir as responsabilidades entre cinco oficiais diferentes.

Isso, de acordo com o Instituto para o Estudo da Guerra, "provavelmente vai criar ainda mais confusão e atrito dentro do Ministério da Defesa, o FSB e a Rosgvardia [guarda nacional da Rússia], que estão todos a tentar operar na região de Kursk", o que pode comprometer a capacidade da Rússia de avançar com um contra-ataque eficaz.

Ainda assim, mais de duas semanas depois, há sinais de uma resistência mais coordenada. Dmytro Kholod, comandante do batalhão ucraniano Nightingale, e que está atualmente em Kursk, disse à CNN na quarta-feira que notou uma mudança no comportamento das tropas russas. “Agora, as forças que eles trouxeram para esta área estão a tentar atacar-nos de alguma forma. Eles já não se rendem às centenas. Estão a tentar atirar e contra-atacar, mas ainda se rendem quando os atacamos”, indicou.

O major-general Mick Ryan concorda que a Rússia está a ir além da fase inicial de resposta impulsiva e deverá tornar-se mais organizada nos próximos dias e semanas. Mas acredita que as últimas duas semanas também revelaram as prioridades de Putin e que o seu próprio povo não está no topo da lista atualmente.

“A decisão será de Putin: o que é mais perigoso para ele? Ucranianos em Kursk ou não ter sucesso no Donbass? Acho que, para já, ele decidiu que é mais perigoso não fazer esse progresso no Donbass do que lançar todas as cartas em Kursk”, considerou Mick Ryan.

Volodymyr Zelensky sugeriu que as linhas vermelhas dos aliados na guerra contra a Rússia "desmoronaram ultimamente em algum lugar perto de Sudzha", referindo-se a uma cidade russa ocupada por tropas ucranianas (Efrem Lukatsky/AP)

Especialistas concordam que a incursão em Kursk não mudou essencialmente a estratégia de Putin – desgastar a Ucrânia e tentar sobreviver aos seus aliados. E, ainda assim, a incursão surpresa da Ucrânia encorajou aqueles que anteriormente questionavam a política do Ocidente de limitar certos tipos de ajuda militar e o seu uso dentro da Rússia.

E isso pode muito bem ter sido parte da estratégia da Ucrânia. Em 19 de agosto, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, permitiu que o seu véu de gratidão bem guardado para com seus aliados ocidentais se levantasse momentaneamente.

“Todo o conceito ingénuo e ilusório das chamadas linhas vermelhas em relação à Rússia, que dominou a avaliação da guerra por alguns dos nossos aliados, desmoronou agora, em algum lugar perto de Sudzha”, disse Zelensky a um grupo de diplomatas ucranianos, referindo-se a uma cidade russa entretanto ocupada pelas tropas ucranianas.

O que ele quer dizer é que os receios do Ocidente de que a Rússia possa interpretar o uso de mísseis de longo alcance norte-americanos ou britânicos no seu território como uma ameaça convencional digna de uma resposta nuclear — a doutrina nuclear russa prevê isso mesmo — estão agora mais preocupantes do que nunca, dada a falta de uma resposta militar coerente à sua primeira ocupação estrangeira desde a Segunda Guerra Mundial.

“A estratégia atual da NATO para ajudar a Ucrânia é uma estratégia para a derrota. É apenas uma estratégia para perpetuar a guerra e permitir que a Rússia espere por todos nós”, criticou Mick Ryan. “Precisamos de uma reavaliação fundamental”, defendeu.

O ex-diplomata russo Bondarev argumenta que a reação do próprio Putin serve como mais uma prova de que o Ocidente precisa de formular uma resposta mais robusta à invasão de Putin.

“Quando alguns ocidentais dizem que não devemos encurralar Putin porque assim ele irá tornar-se um rato encurralado e lutará com todas as suas forças, agora vemos que quando ele realmente se depara com uma crise, ele não é um rato encurralado, ele é apenas um impostor”, disse Bondarev.

“E é por isso que ele não deve ser tão temido”, acrescentou.

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