Este soldado morreu na Ucrânia. Agora o rosto dele está numa escrivaninha para inspirar os alunos russos

CNN , Sebastian Shukla e Clare Sebastian, CNN
22 jul, 22:00

Chamam-lhes "escrivaninhas dos heróis" - é como o Kremlin tenta doutrinar os seus jovens (ou, dito de outra maneira: é uma espécie de apólice de seguro contra quaisquer sementes precoces de dissidência)

Agarrada a um ramo de rosas, com um lenço preto apertado na cabeça e um vestido de bolinhas, uma mulher de meia-idade chega a um salão de paredes cor-de-rosa na região russa de Chuvashia.

Num vídeo tremido, com música sombria de balalaica, adolescentes de sapatilhas brancas, dignitários de fato escuro e homens de uniforme militar reúnem-se ao longo das paredes, de mãos dadas. 

Esta cena parece uma reunião para um funeral - mas não é. É assim que a escola Komsomolskaya Número 1 assinala a inauguração de uma nova escrivaninha escolar, a chamada "escrivaninha do herói", com o rosto e a biografia de um dos mortos de guerra russos, outrora aluno desta mesma escola.

Cerimónias como esta - dezenas documentadas nas páginas das redes sociais das escolas e em notícias locais por toda a Rússia - dão uma ideia de como um país em guerra tenta doutrinar os seus jovens. Faz também parte de um esforço mais alargado na Rússia para dar prioridade ao ensino pró-guerra e patriótico nas instituições de ensino, uma espécie de apólice de seguro contra quaisquer sementes precoces de dissidência.

As escrivaninhas fazem parte de uma iniciativa pan-russa chamada "Projeto Nova Escola" e são financiadas pelo Rússia Unida, um partido fortemente pró-Putin.  No início de maio, o Rússia Unida afirmou que existiam mais de 14.000 escrivaninhas destas em 9.000 escolas em todo o país.

A CNN viu imagens e vídeos de pelo menos 26 regiões da Rússia onde pelo menos uma escrivaninha foi aberta numa escola local. As notícias locais sugerem que algumas escolas utilizam as escrivaninhas para recompensar o bom comportamento ou as boas notas.

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Glória àqueles

As crianças em uniforme militar de cerimónia cantam o hino nacional, transportam bandeiras e batem com os calcanhares no chão quando marcham. As cenas fazem lembrar mais os desfiles da Praça Vermelha do que o pátio da escola.

Num vídeo publicado numa página das redes sociais da Escola n.º 1 de Chuvashia, a voz inabalável de um rapaz diz: "Glória àqueles que viveram na terra preciosa. Glória àqueles que agora vivem nela".

Vestida com uma boina verde, trança branca e luvas a condizer, outra aluna, uma jovem rapariga, diz: "Hoje, na vida da nossa instituição de ensino, há outro acontecimento significativo: a abertura da escrivaninha do herói dedicada ao nosso licenciado Gennady Alexandrovich Pavlov, que morreu durante uma operação militar especial na Ucrânia a 27 de fevereiro de 2022, protegendo os interesses da pátria".  

A mulher de vestido às bolinhas limpa os olhos enquanto se dirige para trás da secretária. A sua mão toca brevemente nas imagens impressas do rosto do filho.

As escrivaninhas de todo o país são padronizadas: verdes, com fotografias militares, uma biografia, medalhas atribuídas (muitas vezes a título póstumo) e a data de morte do soldado. A secretária em Chuvashia descreve como Gennady Pavlov morreu apenas três dias após o início da invasão total da Ucrânia pela Rússia. Foi morto durante uma operação militar para capturar o aeroporto Antonov em Hostomel, no âmbito da tentativa falhada da Rússia de invadir Kiev no início da guerra.

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Daniil Ken, que representa um sindicato antigovernamental de professores chamado Aliança dos Professores, diz à CNN que a iniciativa das escrivaninhas foi lançada há cinco anos. Na altura, "o projeto não era assim tão importante para a sociedade russa, mas, desde que a guerra na Ucrânia começou, o Governo decidiu utilizar este projeto para homenagear os soldados que morreram na Ucrânia".  Isso pode explicar em parte o facto de o número de escrivaninhas, mais de 14.000, ser muito superior ao número de mortes que a Rússia reconheceu oficialmente na Ucrânia.

O Ministério da Defesa russo não divulga actualizações sobre as suas baixas desde setembro passado, quando o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, afirmou que tinham morrido menos de 6.000 soldados russos. A Ucrânia e os Estados Unidos apresentaram estimativas de baixas russas muito mais elevadas, embora os números exactos sejam ilusórios e estejam encobertos pelo segredo de guerra.

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Ken, que vive atualmente no exílio fora da Rússia, afirmou que a colocação de uma secretária na antiga escola de um soldado tem como objetivo tornar a guerra pessoal para as crianças russas. "Vemos a sua fotografia, o seu nome, ele foi nosso aluno há apenas alguns anos", diz, e para os jovens "é difícil não sentir isto dolorosamente e não acreditar no que os oficiais estão a dizer neste momento".

Em janeiro, Alena Arshinova, primeira vice-presidente da comissão da Duma para a educação e membro do partido Rússia Unida, afirmou que tinham decidido "melhorar esta experiência". "As crianças devem ter a oportunidade de aprender História não só nas páginas dos manuais escolares mas também, em geral, todo o ambiente na escola deve contribuir para o desenvolvimento do interesse da criança em estudar a história do seu país".

Reescrever a história

E, no entanto, as páginas dos manuais de História são outra parte do esforço de propaganda educativa do Governo russo. Olga, uma professora de inglês em São Petersburgo, diz que já viu manuais que eliminaram qualquer referência ao facto de Kiev ter sido a primeira capital da Rússia entre os séculos IX e XIII. "Querem dizer que só existia a Rússia, não existia a Ucrânia." A CNN alterou o nome da professora por questões de segurança.

Os manuais escolares também estão a ser atualizados para incluir acontecimentos mais recentes. Em abril, o ministro da Educação russo, Sergey Kravtsov, revelou um novo manual escolar do 11º ano que, segundo ele, inclui uma secção sobre "as razões por trás da operação militar especial", o termo eufemístico que a Rússia utiliza para designar a sua guerra na Ucrânia.

Olga diz que também já viu manuais escolares de História que contêm citações do presidente Vladimir Putin e do antigo presidente Dmitry Medvedev, atualmente vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia. São retratados como "os maiores líderes da História moderna da Rússia, que são os heróis". "Os alunos têm de aprender as palavras deles de cor e citá-las em qualquer sítio... É muito ridículo."

Não se trata apenas de teoria - há também um elemento prático na abordagem do Governo nas escolas. O Ministério promete reintroduzir no currículo o treino militar básico, um regresso aos tempos soviéticos, e algumas escolas já começaram a fazê-lo.

Num vídeo publicado pela agência noticiosa estatal russa RIA Novosti de uma escola em Simferopol, na Crimeia ocupada pelos russos, uma rapariga que aparenta ter cerca de 10 anos de idade faz uma corrida com os seus colegas para desmontar e voltar a montar uma espingarda Kalashnikov. Completa o exercício em 45 segundos. Na região russa de Sakahalin, no extremo leste do país, um noticiário local mostra alunos do 8º ano a fazer o mesmo exercício. "É útil para um homem aprender temas militares", diz um aluno. "Seria difícil entrar para o exército sem formação."

E o Governo está a intensificar os esforços para garantir que o patriotismo comece desde cedo. Em setembro do ano passado, lançou uma nova iniciativa para todas as idades escolares - uma série de lições intitulada "Conversas sobre coisas importantes".

Os tópicos incluem "Símbolos da Rússia", o "Bloqueio de Leninegrado" e "Valores Tradicionais da Família", todos proporcionando oportunidades para discutir os méritos da pátria e, em alguns casos, sentimentos diretamente pró-guerra. Um SITE especial oferece vídeos e material didático para escolas, adaptados a diferentes faixas etárias, dos seis aos 18 anos.

"O nosso objetivo é libertar a Ucrânia e alcançaremos a vitória", proclama um veterano da Segunda Guerra Mundial num vídeo recente para assinalar o Dia da Vitória na Rússia.

Percebi que não ia ficar muito tempo

Estas lições foram a gota de água para Tatyana Chervenko, então professora de matemática de alunos do 7º e 8º anos num subúrbio de Moscovo. A primeira coisa que pensou quando ouviu falar delas foi que provavelmente teria de deixar o seu emprego. "Percebi que não ia ficar muito mais tempo."

Inicialmente perseverou, para bem dos seus alunos. Consultou um advogado, que lhe garantiu que as aulas eram, segundo a lei russa, voluntárias e, por isso, em vez das "Conversas" deu aulas-extra de matemática aos seus alunos. Mas diz que estava a ser pressionada pela escola. Recebeu várias repreensões e, a certa altura, em outubro, a polícia foi chamada e ela foi detida, embora tenha sido libertada no mesmo dia sem qualquer acusação. Finalmente, em dezembro de 2022, foi despedida.

Chervenko acredita que o nível de propaganda nas escolas é a forma de o Estado russo garantir o seu poder "para sempre". "Os vossos filhos também a aprenderão e tornar-se-ão adultos, lutarão, apoiarão a pátria e assim por diante", diz. O seu próprio filho de 8 anos vai para a escola um pouco mais tarde nos dias em que estão programadas as "Conversas sobre coisas importantes".

Os professores dizem que a guerra criou um clima de medo em que não se pode dizer o que se pensa, nem mesmo a colegas amigos. Olga, a professora de São Petersburgo, diz à CNN que foi chamada ao gabinete da directora da sua escola no primeiro mês da guerra, depois de ter manifestado aos colegas a sua oposição à chamada "operação militar especial". "Ela avisou-me que, se eu continuasse, teria de recorrer a um órgão especial do Estado. Referia-se ao FSB", diz, referindo-se à agência de segurança russa.

Ken, da Aliança dos Professores, conta que o sindicato está agora a angariar fundos para pagar multas aos professores que foram sancionados ao abrigo das novas leis russas contra o "descrédito do exército russo".

O Ministério da Educação da Rússia não respondeu ao pedido de comentário da CNN sobre as escrivaninhas e outras mudanças nas escolas russas desde o início da guerra. 

Uma janela para a guerra

As "escrivaninhas dos heróis" não são apenas um instrumento de propaganda. Oferecem uma visão rara do verdadeiro custo desta guerra, algo que a Rússia tem tentado esconder.

Mikhail Stepanov, um exilado russo que vive na Virgínia, dedicou o seu tempo a descobrir a verdadeira escala das perdas russas através do seu site Poteru.net. Passa os dias a vasculhar a Internet à procura de sinais de baixas russas publicadas em fóruns de discussão, redes sociais e canais oficiais - e muito rapidamente as escrivaninhas tornaram-se uma das suas fontes mais importantes.

"Quando estamos à procura de fotografias dos mortos e usamos o Google, ou as imagens Yandex ou o Vkontakte, introduzimos o nome do indivíduo e a palavra 'morto' e, muitas vezes, obtemos a sua 'escrivaninha de herói'", conta Stepanov.

"Assusta-me e aterroriza-me o facto de, dentro de alguns anos, estas crianças saírem da escola com este nível de propaganda, tendo-lhes sido incutido o único pensamento de que ir para a guerra sem se queixar é o único contributo que podem dar e morrer pelo país."

Entre as cerca de 500 escrivaninhas que descobriu, Stepanov diz que um pequeno número era destinado aos combatentes da Wagner, o que reforça as provas recentes de que o grupo não era uma empresa militar tão "privada" como afirmava. Uma das escrivaninhas, de um jovem de 21 anos de Khabarovsk, no extremo leste da Rússia, diz que ele morreu em agosto de 2022 em "Artyomovsk" (o nome preferido da Rússia para a cidade de Bakhmut, no leste da Ucrânia). Entre as suas honras militares consta uma medalha "por bravura e coragem" de Wagner.

Ken preocupa-se com o impacto a longo prazo desta ação de propaganda. "Trata-se de milhões de estudantes, cidadãos do país, que podem ser reunidos num só lugar para lhes ser dito qualquer coisa e eles acreditarão", afirma.

"É algo muito perigoso para os alunos e terá um impacto na sociedade russa durante décadas."

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