Baixas médicas por tendinose estão a agravar a falta de recursos humanos nas prisões e a custar milhões ao Estado
Nas cadeias portuguesas, há guardas prisionais que estão de baixa médica há meses, alguns há anos, e com o mesmo diagnóstico: tendinose.
Esta doença, que afeta os tendões dos braços e ombros, é considerada profissional e garante ao trabalhador até 75% do salário, mesmo sem estar ao serviço. O médico que assina a maioria dos atestados de incapacidade temporária absoluta para o trabalho é sempre o mesmo: Vítor Coimbra, clínico de medicina Geral e Familiar e também especialista em medicina do Trabalho, com consultório numa clínica na Marinha Grande, distrito de Leiria.
Segundo dados oficiais da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), há atualmente 3.959 guardas em funções, num universo previsto de 5.407. Ou seja, faltam quase 1.500 profissionais para cumprir o mapa de pessoal. A média diária de baixas médicas oscila entre 14% e 17%, o que representa entre 554 e 673 guardas fora do serviço todos os dias. Só estas ausências estão a custar ao Estado, no mínimo, cerca de dois milhões de euros por mês.
A investigação do Exclusivo levou-nos à clínica de Vítor Coimbra, onde centenas de guardas prisionais procuram consulta todas as terças e quintas-feiras. À porta, um dos pacientes abordou-nos sem saber quem éramos: “Tendinites é fácil de arranjar porque a pessoa já tem lesões”, disse, sublinhando que “já só se chega a este médico por cunha” porque não há vaga. Conseguir uma consulta é quase impossível, uma vez que já há lista de espera, segundo explicou uma funcionária da clínica.
Segundo os relatos de vários guardas prisionais, há um padrão que se repete: os exames são feitos sempre no mesmo laboratório em Leiria, os diagnósticos são praticamente semelhantes e o resultado é sempre incapacidade absoluta temporária para o trabalho.
Confrontado com a quantidade de guardas prisionais que tem como pacientes e com tendinoses, o médico Vítor Coimbra justificou-se: “Identificaram-me como especialista da área e vieram expor as suas questões. Não têm serviços estruturados, não têm a quem recorrer”, afirmou.
Além disso, Vítor Coimbra garante que os diagnósticos são legítimos e que nunca foi contactado pela Ordem dos Médicos nem pela Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS). “As tendinoses devem-se às más condições de trabalho. Abrir e fechar portas 200 a 300 vezes por dia, com molhos de chaves pesadas, provoca desgaste físico evidente”, justificou.
O médico garantiu que os guardas estão em tratamento, alguns” operados ao ombro ou ao túnel do carpo, e que há também casos de burnout”. “Tenho aqui guardas com 66 e 68 anos. Isso não é normal”, sublinhou, acrescentando: “ As condições físicas já não os tornam aptos para este tipo de trabalho. O regime de turnos e a sobrecarga agravam ainda mais a situação.”
Mas há quem questione. Luís Couto, presidente da Associação de Diretores e Adjuntos dos Estabelecimentos Prisionais (ADAEP), alertou, por sua vez, para o impacto das baixas na gestão das cadeias. “Há diligências e serviços que não são feitos por falta de recursos humanos. Temos de pedir aos guardas que venham trabalhar em dias de descanso. É desonesto e vergonhoso as pessoas utilizarem estes esquemas”, afirma.
“A redistribuição de tarefas consome muito tempo e obriga a suspender atividades essenciais, como as formações e ações de reinserção dos reclusos”, acrescenta Luís Couto. “Já temos falta de recursos humanos e, ao acrescentar estas ausências prolongadas, criam-se graves problemas na gestão diária de estabelecimentos que já são pesados.”
A única forma de fiscalização são as juntas médicas, mas estão atrasadas mais de dois anos. Mesmo quando os guardas são chamados a regressar ao serviço, muitos acabam por voltar a colocar nova baixa médica passados 30 dias. “Parece que a doença reaparece em 30 dias”, ironiza Luís Couto.
Já o Sindicato Nacional da Guarda Prisional reconhece o aumento das baixas, mas aponta o dedo às condições de trabalho. “Os estabelecimentos prisionais são do século passado. Trabalhamos com fechaduras que nem ao pontapé funcionam. As chaves são enormes, parecemos o São Pedro com um molho de chaves”, descreveu. “Se tivéssemos cadeias modernas, com sistemas eletrónicos, este tipo de esforço físico seria evitado”, afirma Frederico Morais, presidente do sindicato. Sobre eventuais abusos, garante: “Se houver, estamos cá para apoiar a DGRSP nas medidas que tiver de tomar.”
A Ordem dos Médicos (OM) também confirmou que tem recebido alertas sobre práticas fraudulentas na atribuição de baixas médicas. Só na região Norte há 11 processos disciplinares em curso, embora nenhum envolva guardas prisionais. Porém, em 2024, houve processos que envolveram, tendo sido analisados oito casos, com advertência para dois médicos. O bastonário da OM, Carlos Cortes, admite que um número tão elevado de diagnósticos iguais por parte de um único médico “pode levantar dúvidas”, mas defendeu que cada situação deve ser avaliada com rigor. “À partida, podemos achar estranho, mas não podemos condenar sem perceber o que está por trás”, afirmou.
A DGRSP reconhece o impacto das baixas e garante que está a apurar as causas das mesmas, sublinhando que todas as irregularidades serão “comunicadas às entidades competentes”. No entanto, recusa comentar casos concretos. “As baixas médicas são autorizadas por médicos cuja deontologia esta Direção-Geral não tem competência para questionar”, lê-se na resposta oficial.
Enquanto decorrem averiguações e se aguardam conclusões das entidades competentes, o número de baixas continua a crescer. O impacto é visível na gestão dos estabelecimentos prisionais, na sobrecarga dos profissionais em funções e nas contas públicas. A repetição dos diagnósticos e a concentração de casos num único médico levantam questões que continuam por esclarecer.