Nem quando estamos a tomar um copo devemos responder diretamente a um insulto da team Trump

27 mar, 21:05
JD Vance

ANÁLISE || “Detesto ter de safar a Europa outra vez", escreveu o vice-presidente norte-americano, JD Vance, no grupo de Signal onde, juntamente com outros altos responsáveis norte-americanos, planeava um ataque às estruturas militares Houthis, do Iémen. “Partilho totalmente a tua aversão ao aproveitamento europeu. É PATÉTICO”, respondeu o secretário da Defesa Pete Hegseth. A CNN Portugal foi ver como é que os diplomatas europeus lidam nos bastidores com acontecimentos destes - e há subtilezas deliciosas

O que faz um responsável diplomático europeu perante as palavras de Vance e Hegseth? "Não faz nada, limita-se a tomar nota", responde António Martins da Cruz, antigo embaixador de Portugal na Nato e ex-ministro dos Negócios Estrangeiros (2002-2003). Trata-se de "uma troca de opiniões entre responsáveis políticos norte-americanos, não foi dito diretamente a um político europeu". Como diplomata, não tem dúvidas: "Resposta direta: nunca. Resposta imediata: nunca. A este género de coisas nunca se responde", argumenta. "Nem mesmo de forma não oficial." Quanto muito, "se um dia destes o embaixador em Washington estiver a tomar um copo com algum responsável do Departamento de Estado dos EUA pode dizer-lhe, a título pessoal, que o que foi escrito não terá caído muito bem na opinião pública do seu país", mas nada que se pareça com um reprimenda.

Numa situação destas, "o que é habitual fazer-se é ignorar", diz Augusto Santos Silva, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros (2015-2022). Como o insulto em causa "resulta de uma filtração indevida de uma conversa confidencial, os Estados não podem intervir", sublinha. "Como se diz na Justiça: não conhecem. Ou como se diz na diplomacia: não tomam nota. Tomar nota é quando se é informado e não se toma posição. Quando se quer dizer que se toma uma posição favorável, diz-se que tomámos boa nota." Mas neste caso os Estados e os seus diplomatas não foram oficialmente informados. 

Porém, também é preciso reconhecer que o que foi dito por JD Vance e pelos outros responsáveis norte-americanos "não é nada que surpreenda". "Eles dizem em on praticamente aquilo. A única coisa que surpreende é o nível de amadorismo", sublinha Santos Silva.

Essa é também a opinião do diplomata Francisco Seixas da Costa: "Aquilo que vimos ali não é muito diferente do discurso oficial em relação à Europa. Não é surpreendente o que JD Vance diz. Não é muito diferente do que Trump tem dito. Depois do que o Trump tem dito sobre vários países, já nada surpreende, nem mesmo na utilização de um determinado léxico mais banal." 

Para Francisco Seixas da Costa, "os americanos, sejam republicanos ou democratas, têm, não digo desprezo, mas uma falta de respeito relativamente às instituições europeias". "Estão habituados à relação Estado a Estado e entendem que a União Europeia nunca teve uma cara suficiente que lhe servisse de interlocutor", afirma Seixas da Costa. E recorda a este propósito o que Henry Kissinger, secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977, costumava dizer: "Eu tenho grande dificuldade em falar com a Europa, nunca sei qual é o número de telefone". Os problemas não são de hoje, sublinha Francisco Seixas da Costa.

Kissinger durante um encontro na Casa Branca com Trump, em 2017

Também Martins da Cruz é de opinião que nos EUA "sempre houve, sobretudo no Partido Republicano, tendências isolacionistas". "Trump não é o primeiro", sublinha. Mas independentemente do facto de americanos considerarem que não precisam da Europa, os europeus - e os portugueses - não se podem dar a esse luxo.

"Não nos podemos esquecer que, no século XX, nas duas vezes em que a Europa estava aflita foram os americanos que a vieram salvar", lembra Martins da Cruz. Além disso, nós "somos um país europeu mas somos sobretudo um país atlântico, somos o mais atlântico dos países europeus e precisamos dos EUA para a nossa defesa e para a nossa segurança".

Quando Vance diz que está farto de "safar" a Europa, naquele contexto é porque o ataque no Canal do Suez iria facilitar a vida aos barcos que passam naquela zona, que são maioritariamente europeus. "Esta é administração contabilística, ou seja, faz uma leitura transacional dos atos de natureza política", explica Francisco Seixas da Costa.

Portanto: o que a Europa tem a fazer é aprender a lidar com esta nova realidade. "Precisamos que os europeus e os americanos se entendam", vinca Martins da Cruz - e esse é o papel dos diplomatas. "Não fomos nós que elegemos esta administração, foram os americanos. Mas temos de lidar com ela, temos de encontrar a melhor maneira." 

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