Tal como Trump, Putin também tem interesse no Ártico. E a menos que "entre em guerra direta", a Rússia nada pode fazer

9 jan, 18:00
Gronelândia. AP Photo/Felipe Dana

O Kremlin sublinhou esta quarta-feira que também tem interesses estratégicos no Ártico, depois de Donald Trump ter ameaçado comprar a Gronelândia. Para os especialistas da CNN Portugal, esta manifestação de interesse visa proteger tanto a própria Rússia como o seu grande aliado, a China

Há um novo jogador na dinâmica que se instalou entre os EUA e a Gronelândia: a Rússia. Depois das ameaças de Donald Trump, que afirmou com todas as letras querer comprar a maior ilha do mundo, Moscovo fez questão de manifestar-se: não só tem "interesses estratégicos" na região, como está a acompanhar os "desenvolvimentos dramáticos" à volta da Gronelândia.

"Tem interesse sim - tem há muito tempo e cada vez mais. A Rússia é o país que tem mais interesse no Ártico", sublinha o major-general Isidro de Morais Pereira, lembrando que este é "um dos países ribeirinhos" do Ártico. "O país que no Ártico tem a maior prevalência ou que é o mais relevante é a Rússia, basta olhar para o mapa", acrescenta o major-general Agostinho Costa.

Esta quarta-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, fez questão de lembrar que o Ártico faz parte dos interesses nacionais estratégicos da Rússia e que está de olho nas movimentações à volta da Gronelândia. “Estamos a acompanhar de perto estes desenvolvimentos dramáticos - graças a Deus, ainda não foram além das declarações”, disse aos jornalistas.

O vincar da posição russa nesta fase deve-se, como explicam os especialistas ouvidos pela CNN Portugal, a motivos estratégicos e económicos, depois de o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, ter manifestado vontade de comprar a Gronelândia. "A principal rota marítima no Ártico ainda é controlada pela Rússia", lembra o major-general Agostinho Costa. "A quantidade de gelo é cada vez menos, o que torna possível usar o Ártico para a navegação comercial durante o ano, o que significa encurtar o trânsito dos navios que vêm por exemplo da China e do Japão para a Europa, Canadá e EUA", aponta o major-general Isidro de Morais Pereira.

Mais próximo, mais rápido e mais barato. São estas as vantagens do uso das águas do Ártico para o comércio internacional à medida que o gelo vai desaparecendo. "Os russos e os chineses preparam-se para tirar partido desta rota marítima do Ártico, que não só permite uma redução no mínimo em dez dias entre os portos chineses e europeus, como é mais curto e mais rápido, mais barato", esclarece Agostinho Costa.

Os interesses russos crescem sobretudo depois de os norte-americanos terem encerrado as rotas comerciais terrestres para "impedir que os produtos chineses chegassem à Europa", após o início da guerra na Ucrânia. "Agora os americanos estão a tratar da rota marítima, que envolve o Canadá e o Panamá", constata o major-general Agostinho Costa.

E há mais: a Rússia não quer proteger-se só a si e aos seus interesses, mas também ao seu grande aliado, a China. Para Agostinho Costa, as ameaças de Trump não são apenas "uma manobra de diversão", mas "um objetivo estratégico muito bem definido para bloquear ainda mais a China". O comentador lembra que este é "um país enclausurado em termos estratégicos".

A Rússia é um dos países que constitui o Conselho do Ártico, a par de Canadá, Dinamarca, EUA, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. No seio desta organização intergovernamental, foi inicialmente impedida a entrada da China para, logo depois da invasão da Ucrânia, Moscovo e Pequim estreitarem os laços e passarem ambos a ser vistos como alvos pelos restantes países. "Isto são os EUA a tentar forçar a militarização do acesso ao Ártico", garante o especialista em relações internacionais Tiago André Lopes.

Mas Moscovo quer impedir quaisquer avanços dos EUA sobre a Gronelândia, sobretudo porque quer manter o poder que tem na região. "A Rússia tem muito mais interesse na manutenção do status quo do que na transição da Gronelândia para os EUA", observa o major-general Isidro de Morais Pereira, que acredita que as declarações do Kremlin surgem para "marcar posição": "A Rússia está a dar sinal de vida e a dizer que está lá e que tem interesse estratégico no Ártico."

O especialista militar avisa ainda que a compra da região autónoma dinamarquesa daria aos EUA "um maior controlo sobre o Ártico" - os EUA não são banhados pelas águas do mesmo, mas compraram o Alasca, que fica junto ao Ártico. "É fundamental para marcar posição e para que os EUA não aumentem a sua importância em termos do contexto do Ártico", diz Isidro de Morais Pereira.

Para além do encurtar das rotas comerciais, o Ártico tem sido alvo de grande interesses pelas potências mundiais pelas riquezas dos fundos marinhos, como o hidrocarboneto e outros metais para fazer funcionar as indústrias. Só a Gronelândia é uma "mina a céu aberto quando o gelo derreter" por completo e "um dos sítios do mundo com mais terras raras", o que interessa aos EUA, ou melhor a Trump, como explicou o tenente-general Marco Serronha à CNN Portugal na quarta-feira.

Pode de facto a Rússia parar os EUA?

No meio desta polémica, uma coisa é certa para o major-general Isidro de Morais Pereira: "Se a Dinamarca entender vender a Gronelândia, a Rússia não tem nada a opor. Quer dizer, pode ter, mas na prática não consegue fazer nada para evitar o negócio." A menos que "entrasse em guerra direta", acrescenta.

"Vamos supor que Trump não põe de parte o uso do vetor militar para consumar este desejo, como referiu, só há uma maneira: é a Rússia opor-se e haver um combate, uma operação militar levada a cabo pela Rússia para contrariar o desejo americano", explica. Contudo, o especialista militar não acredita que tal possa acontecer. Até porque, conforme complementa o major-general Agostinho Costa, uma intervenção dos EUA na Gronelândia - que faz parte da Dinamarca, que é um país da União Europeia e da Aliança Atlântica - seria "um país da NATO a invadir outro país da NATO e não se pode invocar o art. 5º".

Tiago André Lopes, especialista em relações internacionais, também sublinha que Moscovo "formalmente nada pode fazer". "Não tem nenhuma forma de securitizar a Gronelândia, pode é securitizar as suas rotas se o quiser fazer", aponta, levantando uma possibilidade: a Rússia pode muito provavelmente vir a desenvolver "patrulhas conjuntas" no Ártico com a China, que "estará super interessada, porque lhe dá mais um pé" na região.

Para o major-general Agostinho Costa, a Rússia "fará tudo para que a política não se implemente". "Mas o que é que a Rússia pode fazer? A Rússia só acompanha", constata também.

De qualquer forma, Isidro de Morais Pereira não descarta que os EUA possam tentar fazer "um negócio" com a Dinamarca para ganharem uma "maior presença" na região autónoma dinamarquesa. Mas "daí a conquistarem a ilha é pôr o mundo de pernas para o ar, é voltar a antes da Primeira Guerra Mundial, é o regresso ao direito força para regular as relações entre Estados".

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