Futuro presidente dos EUA considera a compra da Gronelândia, região autonómica dinamarquesa, "uma necessidade absoluta". E, ao ameaçar a região, está a ameaçar toda a União Europeia e até a NATO
É uma "mina a céu aberto", ultrapassa os dois milhões de km2 de território e tem uma população "muito pequena": esta é a Gronelândia, o mais recente - mas não novo - interesse dos EUA, ou melhor, de Donald Trump. O presidente eleito norte-americano quer comprar esta que é a maior ilha do mundo. O problema: pertence à Dinamarca (ainda que seja uma região autónoma), que é membro tanto da União Europeia (UE) como da NATO.
"Um ataque à Gronelândia seria considerado um ataque à Dinamarca e temos obrigações de defender a Dinamarca ao abrigo dos tratados europeus e dos tratados da NATO", avisa o especialista em direito internacional Francisco Pereira Coutinho, em declarações à CNN Portugal nesta quarta-feira. Não defender a Dinamarca seria, diz, "uma situação anómala".
Em dezembro, Trump reiterou os apelos feitos durante a sua primeira presidência para que os EUA se apropriassem da Gronelândia, chamando-lhe “uma necessidade absoluta”. Questionado numa conferência de imprensa na terça-feira sobre se excluiria a possibilidade de utilizar “coerção militar ou económica” para conquistar a Gronelândia - ou o Panamá, que Trump também manifestou o desejo de conquistar - o presidente eleito respondeu: “Não, não posso assegurar-vos sobre nenhum dos dois, mas posso dizer isto: precisamos deles para a nossa segurança económica.”
E é precisamente por isto que Trump está tão interessado na ilha dinamarquesa. "A Gronelândia tem interesses de natureza estratégica e geopolítica para os EUA, devido ao posicionamento como ilha, que é a maior do mundo, com mais de dois milhões de km2 e uma população muito pequena", explica o tenente-general Marco Serronha. Para além disso, sublinha o especialista militar da CNN Portugal, a Gronelândia é "um dos sítios do mundo com mais terras raras, é uma mina a céu aberto quando o gelo derreter".
Mas qualquer "coerção militar ou económica" sobre a Gronelândia é uma ameaça direta à União Europeia, insiste Francisco Pereira Coutinho. "Quando Trump diz que vai ameaçar a Dinamarca com sanções económicas, é preciso perceber muito claramente que a Dinamarca tem a mesma política comercial que a UE. Sanções à Dinamarca são sanções a Portugal", sublinha.
Depois de a primeira-ministra da Dinamarca ter avisado Donald Trump na terça-feira de que território "não está à venda", hoje foi a vez do ministro dos Negócios Estrangeiros de França afirmar publicamente que a UE vai defender a Gronelândia, não permitindo que países "ataquem fronteiras soberanas" do bloco europeu. A Gronelândia é, lembrou, "um território da União Europeia".
Tiago André Lopes, especialista em relações internacionais, duvida no entanto do posicionamento do bloco como um todo no que respeita à Gronelândia. "Adorava dizer que a UE vai ter uma resposta conjunta, mas tenho muitas dúvidas", diz à CNN Portugal, admitindo que a reação europeia vai estar entre as poucas palavras e o "silêncio". "Kaja Kallas [vice-presidente da Comissão Europeia] consegue ser muito vocal na Ucrânia, mas noutros assuntos é muito silenciosa, estranhamente. Devia ser a primeira a traçar linha no chão", critica.
No próprio seio da NATO, a situação seria extremamente complicada, considera Francisco Pereira Coutinho: "A Dinamarca faz parte da NATO, que é uma aliança militar, da qual também fazem parte os EUA. Se os EUA atacassem a Dinamarca, nós teríamos de atacar os EUA , defendendo a Dinamarca." Tratando-se de uma "agressão sem qualquer tipo de justificação", classifica, os membros da Aliança Atlântica teriam de responder.
Na análise de Tiago André Lopes uma resposta da NATO à tomada da Gronelândia pelos Estados Unidos seria "muito difícil", já que provocaria "uma fissura muito grande" dentro da Aliança. "Para a China e o Irão uma tensão entre os EUA e a Dinamarca seria ouro sobre azul", considera ainda.
Na terça-feira, Donald Trump Jr. desembarcou na Gronelândia. O filho do presidente eleito considerou a viagem como “um pouco de diversão”: “Como homem da natureza, estou entusiasmado por passar esta semana na Gronelândia", disse à CNN Internacional.
A viagem aconteceu no mesmo dia em que a primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, declarou que "a Gronelândia pertence aos gronelandeses", defendendo a soberania da ilha perante as ameaças de anexação. Também o primeiro-ministro do território autónomo dinamarquês, Mute Egede, recorreu às redes sociais para esclarecer: “A Gronelândia é nossa” e “não estamos à venda e nunca estaremos à venda”.
Está Trump a falar a sério?
A aquisição da Gronelândia é "uma questão antiga". "Um presidente americano em 1860 já quis comprar a Gronelândia, quando comprou o Alasca. O presidente Truman fez, a seguir à Segunda Guerra Mundial, uma oferta de 100 milhões de euros à Dinamarca pela posse da Gronelândia", lembra o tenente-general Marco Serronha.
Para o comentador, o recente interesse dos EUA pode indicar que "Trump, sob o ponto de vista da segurança da sua área próxima, poderá não confiar na NATO". Mas a verdade é que as ameaças do presidente eleito dos EUA não se limitam à região autónoma dinamarquesa: "É muito pior - está a ameaçar os aliados, está a ameaçar o Panamá, está a ameaçar a Dinamarca, está a ameaçar o Canadá - o seu principal aliado no continente americano", aponta o comentador Francisco Pereira Coutinho.
Para o especialista em direito internacional, voltar a falar sobre isto é como "entrar numa máquina do tempo e voltar ao século XIX". "É muito impressionante ouvir este tipo de declarações", admite, sublinhando o "absurdo" da situação.
Mas está ou não Donald Trump a falar a sério? "Temos de perceber se está aqui alguém de facto empenhado em expandir o território norte-americano ou se, pelo contrário, isto é uma aplicação daquilo que em Relações Internacionais chamamos a Teoria do Louco para ter uma posição negocial mais forte", aponta. Segundo esta teoria, Trump estará a ameaçar tomar "medidas drásticas", como "usar a força para conseguir conquistar um território", caso os outros países não façam o que ele quer.
Francisco Pereira Coutinho explica que "não se pode usar a força para este tipo de ganhos", sendo a consequência o isolamento dos EUA: "Em relação à Federação Russa, é o apaziguamento total. Veio dizer que compreende perfeitamente as razões que levaram Putin a atacar a Ucrânia - são muito semelhantes a este tipo de retórica imperialista que expressou - é muito preocupante e uma violação flagrante do direito internacional."
Trump "disse várias vezes que não estava a brincar", lembra o especialista em direito internacional, porém, acrescenta Tiago André Lopes, a Gronelândia não pode ser comprada nesta fase porque "faz parte da Dinamarca formalmente". "Se a Dinamarca quisesse vender era diferente. Já aconteceu com o Alasca, que foi vendido aos EUA, mas era um mundo diferente, onde não havia direito internacional", lembra.
Além disso, sublinha Tiago André Lopes, "Trump precisa do apoio do capitólio". "Não tenho a certeza se contará com o apoio de todos os membros tanto republicanos como democratas, que sejam favoráveis a esta ideia."
O presidente eleito norte-americano, que toma posse a 20 de janeiro, "tem maiorias, mas são maiorias muito frágeis, muito sensíveis", aponta o especialista em relações internacionais, considerando que as intenções de Trump vão ser travadas pelo Senado e pela Câmara dos Representantes. E mesmo que o presidente dos Estados Unidos recorresse a uma diretiva presidencial, Tiago André Lopes lembra que estas têm "limitações no que toca ao espoletar de uma guerra".
A única hipótese para Trump, antevê o especialista, é a eventualidade de a Gronelândia "acelerar o movimento independente para se tornar um Estado independente", sendo que é dependente financeiramente da Dinamarca.