O cocó das aves pode ser a chave para travar a próxima pandemia

CNN , Brenda Goodman
9 fev, 16:00
Cocó de pássaro

Primeiro vêm os caranguejos-ferradura. Levantando as suas conchas redondas, semelhantes a tanques, eles saem da Baía de Delaware, sob a primeira lua cheia de maio para acasalar e pôr os seus ovos.

Os pássaros vêm logo a seguir. Centenas de milhares de aves costeiras migratórias, que grasnam, descem a estas praias para se empanturrarem com os ovos ricos em proteínas e gordura. Ao longo de uma semana, algumas aves duplicam o peso, enquanto se preparam para retomar as viagens entre a América do Sul e os locais de reprodução de verão, no Ártico. Até 25 espécies diferentes de aves param aqui a cada primavera.

É uma maravilha ecológica que não se vê em mais lado nenhum do mundo e uma bonança para os cientistas que procuram travar a próxima pandemia.

Este ano, o trabalho destes investigadores adquiriu uma nova urgência, uma vez que um perigoso vírus da gripe, o H5N1, está a devastar o gado leiteiro e os bandos de aves nos Estados Unidos. O mundo está a observar para ver se a ameaça vai aumentar.

O trabalho nesta praia pode ajudar a tornar isso claro.

“Isto aqui é um tesouro”, diz Pamela McKenzie, acenando ao seu parceiro de investigação, Patrick Seiler.

Pamela McKenzie e Patrick Seiler fazem parte de uma equipa de investigadores financiada pelos Institutos Nacionais de Saúde no Hospital de Investigação Infantil St. Jude, que, há quase 40 anos, vem às praias aqui perto para recolher cocó de aves.

O projeto é uma criação de Robert Webster, um virologista neozelandês, que foi o primeiro a perceber que os vírus da gripe provêm das entranhas das aves.

Robert Webster, um virologista neozelandês, foi o primeiro a perceber que os vírus da gripe provêm do trato intestinal das aves. CNN

“Ficámos muito espantados. Em vez de estar no trato respiratório, onde pensávamos que estivesse, estava a replicar-se no trato intestinal e as aves estavam a fazer cocó na água e a espalhar o vírus”, esclarece Robert Webster, que tem agora 92 anos e está reformado, mas continua a participar nas viagens de recolha de material de investigação quando pode.

O cocó ou guano das aves infetadas está repleto de vírus. De todos os subtipos de gripe conhecidos, todos, exceto dois, foram encontrados em aves. Os outros dois subtipos só foram encontrados em morcegos.

Na primeira viagem que fez à Baía de Delaware, em 1985, Robert Webster e a sua equipa descobriram que 20% das amostras de excrementos de aves que traziam consigo continham vírus da gripe e aperceberam-se de que a área era um observatório ideal para seguir os vírus da gripe, à medida que viajavam nas aves ao longo da rota do Atlântico, que vai da América do Sul ao Círculo Polar Ártico, no Norte do Canadá.

A descoberta de um novo vírus da gripe nesta zona pode alertar o mundo para o contágio que se aproxima.

“O projeto tornou-se um dos mais longos projetos de amostra de gripe das mesmas populações de aves em todo o mundo”, diz Richard Webby, que assumiu a direção do projeto iniciado por Robert Webster. Richard Webby dirige o Centro de Colaboração da Organização Mundial de Saúde para Estudos sobre a Ecologia da Gripe em Animais no Hospital St. Jude.

Prever pandemias, explica Richard Webby, é um pouco como tentar prever tornados.

“Para prever as coisas más, quer se trate de um tornado ou de uma pandemia, é preciso compreender o que é normal agora”, revela Richard Webby. “A partir daí, podemos detetar quando as coisas são diferentes, quando mudam os anfitriões e o que impulsiona essas transições.”

Os Estados Unidos estão agora a meio de uma dessas transições. Alguns meses antes de a equipa de St. Jude chegar a Cape May este ano, o H5N1 tinha aparecido pela primeira vez em gado leiteiro no Texas.

A descoberta de que o H5N1 podia infetar vacas pôs os especialistas em gripe, incluindo Richard Webby, em alerta. O vírus da gripe do tipo A, como o H5N1, nunca se tinha propagado em vacas.

Os cientistas seguiram o H5N1 durante mais de duas décadas. Alguns vírus da gripe não causam sintomas ou causam apenas sintomas ligeiros quando infetam aves. Estes vírus são designados por gripes aviárias de baixa patogenicidade, ou GABP. O H5N1, que deixa as aves muito doentes, é designado por GAAP, ou gripe aviária altamente patogénica. Devasta bandos de aves de criação, como galinhas e perus. Nos Estados Unidos, os bandos infetados são submetidos a eutanásia, ou abate, logo que o vírus é identificado, tanto para evitar a propagação da infeção como para mitigar o sofrimento das aves.

Maçaricos na praia de East Point, no município de Maurice River, em New Jersey (Clique na imagem para ver o vídeo). CNN

Não é a primeira vez que os agricultores norte-americanos se veem confrontados com uma gripe aviária altamente patogénica. Em 2014, aves que migravam da Europa trouxeram o vírus H5N8 para a América do Norte. O abate agressivo, que resultou na morte de mais de 50 milhões de aves, travou esse surto e os EUA permaneceram livres de vírus da gripe aviária altamente patogénicos durante anos.

No entanto, a mesma estratégia não impediu o H5N1. Este vírus chegou aos EUA no final de 2021 e, apesar do despovoamento agressivo dos bandos de aves de capoeira infetados, continuou a propagar-se. Nos últimos dois anos, o vírus H5N1 desenvolveu também a capacidade de infetar uma variedade crescente de mamíferos, como gatos, raposas, lontras e leões-marinhos, o que o torna mais próximo de se propagar facilmente nos seres humanos.

Os vírus H5N1 podem infetar os seres humanos, mas estas infeções não se propagam de pessoa para pessoa, porque as células do nosso nariz, garganta e pulmões têm recetores ligeiramente diferentes dos das células que revestem os pulmões das aves.

No entanto, não seria preciso muito para que isso mudasse. Um estudo recente, publicado na revista Science, descobriu que uma única alteração fundamental no ADN do vírus permitiria que este se fixasse nas células dos pulmões humanos.

A equipa de Cape May nunca tinha encontrado o H5N1 nas aves de que aí tinham recolhido amostras. Mas com o vírus a espalhar-se em vacas de vários Estados, perguntaram-se onde mais poderia estar. Teria também chegado a estas aves?

Pamela McKenzie e Patrick Seiler entraram cautelosamente na praia pantanosa na última primavera com botas, luvas e máscaras faciais. Os seus bolsos estavam cheios de dezenas de cotonetes que usaram para retirar guano branco fresco da areia e depositá-lo em frascos de plástico que enfiaram habilmente entre os dedos. Os frascos voltavam a ser colocados em tabuleiros que eram empilhados ordenadamente numa geleira bege que Patrick colocava ao ombro enquanto se deslocava pela praia. Ao longo de uma semana, a equipa recolheria oitocentas a mil amostras.

Todos os vírus da gripe presentes nas amostras seriam sequenciados - as letras exatas do código genético dos vírus seriam lidas - e transferidos para uma base de dados internacional, uma espécie de biblioteca de referência que ajuda os cientistas a localizar as estirpes de gripe à medida que circulam pelo mundo.

Os maiores excrementos brancos pertenciam às gaivotas - gaivotas de cabeça preta e gaivotas de cabeça branca - explica Pamela. A equipa planeia fazer um estudo separado sobre as gaivotas este ano.

“Há alguns vírus que só encontrámos nas gaivotas”, justifica Patrick Seiler.

Alguns salpicos brancos, aqueles que tinham linhas visíveis de pedaços de ovos ainda lá dentro, pertencem a pequenas aves chamadas maçaricos semipalmados.

A alguns metros de distância, um bando de aves castanhas, chamadas pilritos, sondava a areia à procura de ovos de caranguejo com os seus longos bicos pretos e olhava nervosamente para Pamela e Patrick, enquanto a dupla descia a praia.

Algumas amostras que estavam a recolher seriam enviadas por correio expresso, acondicionados em gelo, para Memphis, no Tennessee, onde se situa o Hospital St. Jude, mas outras atravessariam a cidade para um parque de caravanas, onde a Lisa Kercher esperava por elas.

Lisa Kercher, diretora de operações laboratoriais do St. Jude Children’s Research, trabalha no seu laboratório móvel. CNN

Lisa Kercher, diretora de operações laboratoriais do St. Jude, transformou uma caravana normal num laboratório móvel que ficou estacionado entre outros campistas. Este ano, estava a testá-lo no terreno para ver se poderia acelerar o trabalho da equipa.

“Recolhemos amostras no terreno e enviamo-las para o laboratório. Lá, temos um exército de técnicos que trabalham diligentemente nestes milhares de amostras”, explica Lisa. Pode levar meses até que a equipa conheça os subtipos exatos dos vírus que encontrou.

“Se eu estiver aqui em maio, por exemplo, só saberei os subtipos desses vírus em setembro ou outubro”, exemplifica.

O objetivo de Lisa Kercher é analisar rapidamente as amostras no terreno para ver se contêm ou não vírus da gripe. Todos os anos, cerca de 10% das amostras trazidas têm vírus da gripe. Se ela pudesse enviar apenas as amostras positivas para o laboratório, estas poderiam ser processadas mais rapidamente.

Após a sequenciação completa das amostras este ano, não se encontrou H5N1 nem nas amostras de Cape May nem nas amostras de patos do Canadá.

“Não sabemos exatamente porquê”, admitiu Lisa Kercher, numa entrevista concedida no final do ano passado. “Sempre tivemos alguma curiosidade em relação a isso”.

Pamela McKenzie recolhe amostras de fezes de aves na praia de East Point. A equipa recolhe entre oitocentas e mil amostras de fezes de aves nas praias à volta da Baía de Delaware todos os anos (Clique na imagem para ver o vídeo). CNN
Robert Webster e Pamela McKenzie recolhem amostras de fezes de aves na praia de Reeds, em New Jersey. CNN

Depois de terminarem em Cape May, Lisa conduziu o laboratório móvel até ao rio Peace, no norte de Alberta, no Canadá, para testar os patos que aí se reproduziriam durante o verão. Há 45 anos que a equipa faz a viagem para testar patos no Canadá, mas este é o primeiro ano em que utilizam o laboratório móvel nesse país. Depois da viagem a Alberta, Lisa Kercher conduziu a sua caravana até ao Tennessee para testar mais patos, onde hibernam durante o tempo frio.

Entretanto, o vírus estava a circular à sua volta, aparecendo em manadas de vacas no Centro-Oeste dos Estados Unidos e depois na Califórnia. Tinham sido registadas dezenas de infeções humanas em trabalhadores agrícolas, mas as que estavam ligadas ao gado leiteiro tinham sido, na sua maioria, ligeiras. Não foi registada qualquer transmissão entre humanos.

Os surtos no gado parecem ter abrandado um pouco no final do verão. Depois vieram as infeções humanas graves.

Primeiro, foi o adolescente de Vancouver, no Canadá, hospitalizado com problemas respiratórios. Depois, mais recentemente, uma pessoa no Louisiana ficou gravemente doente com o H5N1, após ter sido exposta a um rebanho no quintal. Em ambos os casos, o vírus era de um tipo ligeiramente diferente do que circula nas vacas. O vírus identificado nas vacas é do genótipo B3.13, ao passo que o encontrado em ambas as infeções humanas graves é do genótipo D1.1, que tem circulado em aves selvagens e aves de capoeira, de acordo com os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA. Também houve outros casos de infeções D1.1 em humanos, no estado de Washington, em pessoas que estavam a ajudar no abate de aves. Esses casos não foram tão graves.

Depois de não terem detetado o vírus na primavera e no verão, a equipa do St. Jude deslocou o laboratório móvel para um local que nunca tinham experimentado antes: um enorme refúgio de inverno para patos marrecos e outros patos no Noroeste do Tennessee.

Em novembro e dezembro, fizeram um esfregaço em 534 patos e encontraram o genótipo D1.1 do vírus em cerca de uma dúzia de amostras.

“Obtivemos a mesma estirpe que está a causar todo o caos nas pessoas e nas aves selvagens”, diz Lisa Kercher.

O D1.1 é um grupo de vírus mais recente. Os cientistas ainda não sabem tanto sobre ele como sobre os vírus do gado. Mas as amostras da equipa ajudaram-nos a relacionar o vírus com a rota do Mississipi, que atravessa o centro do Canadá e segue o rio Mississipi até ao Golfo do México.

Os cientistas ainda não sabem quando é que a estirpe surgiu e começou a circular como um tipo distinto. Richard Webby diz que vão analisar os dados de vigilância que acumularam ao longo do último ano para tentar descobrir isso.

O vírus parece ser o produto de uma reordenação, em que dois vírus infetam o mesmo animal ao mesmo tempo e trocam os genes. Os vírus de rearranjo tendem a ter alterações maiores nos seus genomas do que os vírus que mudam gradualmente à medida que são transmitidos de animal para animal.

Os dados de vigilância que a equipa recolheu recentemente contribuíram para um novo estudo pré-impresso, que foi publicado no final de 2024, antes da revisão pelos pares.

O estudo foi liderado por Louise Moncla, uma cientista que estuda a evolução dos vírus na Universidade da Pensilvânia.

Ao analisar dados de vigilância como os recolhidos por Richard Webby e a sua equipa, a equipa da Universidade da Pensilvânia descobriu que o surto de H5N1 que começou em 2021 na América do Norte foi impulsionado por oito introduções separadas do vírus por aves aquáticas selvagens e migratórias e aves marinhas, ao longo das rotas aéreas do Atlântico e do Pacífico.

Louise Moncla e a sua equipa acreditam que o atual surto não foi travado por um abate agressivo, como aconteceu em 2014, porque as aves selvagens continuam a introduzi-lo nas populações de bandos de aves de criação e de quintal.

Gaivotas em Cape May, New Jersey (Clique na imagem para ver o vídeo). CNN

Os cientistas concluem que as aves selvagens são um reservatório emergente do vírus na América do Norte e que a vigilância das aves migratórias é fundamental para travar futuros surtos.

Richard Webby e a sua equipa dizem que tencionam continuar a vigiar. Em maio, quando a primeira lua cheia se erguer sobre a Baía de Delaware, estarão de volta para fazer tudo de novo.

Lisa Kercher diz que o que encontraram este ano na Baía de Delaware foi mais ou menos o que viram nos últimos 40 anos: as aves costeiras estão a transportar os vírus por longas distâncias.

“Param na Baía de Delaware para reabastecer e depois os vírus deslocam-se enquanto estão parados e voltam a transportá-los”, explica Lisa Kercher.

Não há maneira de saber o que está para vir ou se o vírus H5N1 vai finalmente mudar de forma o suficiente para se tornar um perigo para as pessoas. Se isso acontecer, diz a especialista, os investigadores estarão atentos.

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