Gripe das aves já matou nos EUA mas em Portugal "não podemos fazer rigorosamente nada" - e isso é bom sinal

6 jan, 22:19
Gripe das aves (Costfoto/NurPhoto via Getty Images)

Apesar do foco de gripe aviária em Sintra ter causado a morte de 279 aves, especialistas descartam uma ameaça iminente para a população geral, mas pedem "cuidado" face ao agravamento noutros países. O risco de transmissão entre humanos em Portugal ainda é considerado baixo, mas os impactos económicos e a necessidade de proteger trabalhadores do setor da exploração de aves são destacadas como prioridade

Há alarme nos Estados Unidos, mas em Portugal, para já, não é caso para isso. Bernardo Gomes, médico especialista em Saúde Pública, analisa com alguma “tranquilidade” o foco de infeção por gripe das aves detetado numa exploração de galinhas poedeiras, em Sintra, no início deste ano, esclarecendo que não se trata de “uma ameaça imediata”, em comparação com “outras circunstâncias que nos afetaram no passado”. Ainda assim, reitera: “Não deixa de ser uma ameaça”, primeiramente pelos impactos económicos e a “possibilidade mais elevada” de infeção de indivíduos em contexto de exploração de aves para consumo, uma vez que há um contacto direto com estas espécies.

Neste contexto, defende que a grande prioridade é garantir “o uso de equipamentos de proteção individual” e a “melhoria das condições de trabalho” àqueles que exercem este tipo de funções. “É preciso tomar a conta devida dos trabalhadores das explorações aviárias”.  

As considerações do especialista à CNN Portugal surgem na sequência de um alerta da Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA), sediada em Paris, para o surto detetado a 3 de janeiro em São João das Lampas, que afetou um aviário com 55.427, causando a morte de 279 aves. Num comunicado emitido esta segunda-feira, a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) confirma tratar-se de um caso de Gripe Aviária de Alta Patogenicidade (GAAP) e destaca que foram imediatamente implementadas medidas de controlo e erradicação.

O médico relativiza, “felizmente, o H5N1, como está, não tem demonstrado capacidade de se transmitir de pessoa a pessoa”, ou seja, os processos de recombinação do vírus não têm dado aso a alterações que permitam esse tipo de transmissões. Mas “a probabilidade está em cima da mesa” e a situação deve ser, por isso, acompanhada com proximidade. “Se começam a aumentar muito o número de infeções e de passagem de aves para seres humanos é óbvio que essa probabilidade acaba por aumentar, mas a acontecer, de forma episódica ou limitada, não quer dizer que a ameaça se torne imediatamente pandémica. A coisa pode morrer rapidamente em termos de cadeia de transmissão”.

Telmo Nunes, especialista em Saúde Pública Veterinária e professor na Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa explica que, apesar de se tratar de um “serótipo (vírus) específico” importa perceber que mutações é que tem e que riscos é que acarreta para as pessoas. Questionado pela CNN Portugal sobre a possibilidade de transmissão inter-humana, diz que “não é impossível”, servindo-se do exemplo dos Estados Unidos e Canadá: “Houve casos esporádicos, até bastante graves, em indivíduos que não têm contacto direto com animais de produção”.

“Os vírus para entrarem nas células têm de se agarrar a qualquer coisa – são os chamados ‘recetores’ – e o tradicional H5N1 normalmente tem uma maior afinidade com os recetores das aves, comparativamente aos dos humanos”, explica. Contudo, observa que nos anos mais recentes têm surgido variantes com mais capacidade de se ligarem a estes últimos. “É uma razão para preocupação, obviamente”.

Paulo Paixão, virologista e professor na NOVA Medical School, mostra-se mais convicto de que a probabilidade de o vírus ser transmitido entre humanos “é quase inevitável”. “Não sei dizer se é uma questão de um ano, poucos anos, mas mais cedo ou mais tarde vão começar a surgir casos nos humanos, e provavelmente com mais gravidade”.

Em análise às notícias recentes sobre os casos que já afetam alguns pontos do mundo, entende que estas sejam “preocupantes” e confirmam que o “o vírus está mais perto de nós”, situação que se tem verificado “nos últimos tempos”. “Antes, na Europa, não tínhamos os surtos que estamos a ter agora”, observa, responsabilizando “uma ligeira diferença genética” pelos casos mais graves que têm vindo a surgir, especialmente no continente americano.

Comer ou não comer frango? Eis a questão

Mas entre a população que não trabalha no setor aviário levantam-se algumas dúvidas. Por exemplo, devemos excluir estas espécies da nossa alimentação? Bernardo Gomes responde sem qualquer hesitação: “Não, o risco não é significativo”. “Portugal é provavelmente dos países do mundo nos quais podemos ter maior segurança naquilo que comemos e bebemos, a segurança alimentar é de facto extraordinária”, afirma com convicção, destacando ainda o trabalho da DGAV, INIAV e, neste tema departamento específico, da ASAE.

Telmo Nunes concorda, mas vai mais longe na sua análise. “Numa unidade infetada os animais são abatidos e não vão para consumo, e os ovos dessa unidade, ou são destruídos, ou vão para indústria, onde são tratados”, esclarece. Outro fator é o habitual modo de confeção da carne e dos ovos, que inativa o vírus, mesmo que haja um foco de doença na respetiva exploração do animal para consumo. O trabalho de vigilância da DGAV também é, segundo o professor, fundamental e eficaz, assim como as medidas implementadas, que “minimizam os riscos para a população”.

Finalmente, aponta diferenças significativas entre os mecanismos utilizados na Europa e nos Estados Unidos, que refletem do lado europeu “uma maior facilidade” na implementação de restrições para o controlo de doenças no setor animal. Uma delas diz respeito à pasteurização: “Nos EUA é possível comercializar leite cru, ou seja, leite não pasteurizado. Em Portugal este não é permitido para consumo direto, tem de ser pasteurizado ou ultrapasteurizado, e sabemos que a pasteurização funciona muito bem”.

O especialista dá conta de que nos Estados Unidos foi detetada “uma grande quantidade de vírus” no leito de um bovino afetado, lançando a suspeita de que a infeção em humanos tenha ocorrido por via do leite cru.

Vírus já chegou aos mamíferos

Nos EUA o cenário manifesta-se, até ao momento, mais preocupante, com uma morte já confirmada esta segunda-feira, no Louisiana, pelo Departamento de Saúde daquele estado. O homem de 65 anos foi hospitalizado em dezembro e é o primeiro caso de doença grave resultante da infeção por H5N1 no país.

Embora esta vítima tenha sido registada pelo Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) como o primeiro caso da doença associado à exposição “a aves de quintal mortas e doentes”, Telmo Nunes salienta que alguns casos também já se estendem aos mamíferos, particularmente bovinos leiteiros. Mas não fica por aqui: “Estas novas variantes do vírus que circulam nos bovinos, nos EUA, também causam doença noutros tipos de animais que até estão mais próximos de nós, nomeadamente os gatos”. Como? Consumindo o leite dos bovinos infetados ou ingerindo ração com carne crua.

“Aí a preocupação é dupla – é um risco para a saúde dos animais, mas também são espécies com as quais um diferente grupo de pessoas tem contacto mais próximo”, alerta.

"Não podemos fazer rigorosamente nada"

Bernardo Gomes considera que, neste momento, a população geral – nomeadamente externa à exploração animal – não tem grandes indicações para tomar medidas quanto ao foco de infeção noticiado esta segunda-feira no país. Por outro lado, sugere que sejam tidos em conta “os ensinamentos” adquiridos durante a pandemia da covid-19, especificamente aqueles que dizem respeito à etiqueta respiratória. “Evitar exposição a outras pessoas, como espirrar e tossir perto delas, ou frequentar espaços cheios e com pouca ventilação, em certas alturas do ano”, enumera. “O problema pode começar em nós e acabar em alguém muito vulnerável, é preciso tentar ficar infetado para não infetar terceiros”.  

Já Paulo Paixão discorda: “Nós humanos, neste momento, não podemos fazer rigorosamente nada”, mas "isso é uma boa notícia". “A transmissão ainda não é inter-humana, por isso aquilo que fazemos quando estamos mais constipados não adianta”, esclarece. Há, ainda assim, que ter especial cuidado com utentes que se apresentem em hospitais com infeções respiratórias, e que tenham tido contacto direto com aves. Em relação às vacinas já existentes, afirma que “para já não tem qualquer justificação”.

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