“Será que quero ter filhos?” Quando adiar pode ser tarde demais

22 dez 2021, 10:25

Há cada vez mais mulheres a adiar a maternidade em Portugal. Em 2020, 5,3% do total dos primeiros filhos gerados no país nasceram de mulheres com 40 ou mais anos. Para muitas, é preciso conseguir estabilidade no trabalho, para outras é preciso encontrar o parceiro certo. Há ainda quem só deseje ser mãe mais tarde. Seja qual for a razão, os médicos avisam: quem adia a decisão, pode vir a enfrentar problemas

Carla Mateus sempre quis ter filhos mas nunca foi “muito sortuda na parte dos amores”. Conheceu o companheiro aos 37 anos e decidiram ter uma família. Procurou ajuda médica e depois de alguns exames de rotina receberam luz verde para começar a tentar.   

“Eu esperei até perto dos meus 39 anos mas, como a idade era muita avançada, voltei à  mesma médica que me disse: ‘você já tem 39 anos, tem de se ir inscrever na lista’”.
 
A médica refere-se à lista de espera para a Procriação Medicamente Assistida do Serviço Nacional de Saúde e Carla já não foi a tempo de ser incluída devido à idade limite. “Fiquei sem esperança”, conta.
 
Hoje tem 43 anos e ainda não conseguiu engravidar. A última esperança seria a doação de óvulo, um tratamento caro no privado. “O meu mundo acabou porque não tenho dinheiro. Foi a última voz a dizer acabou.” 

Primeiro a carreira

O problema não é novo, mas afeta cada vez mais casais em Portugal. Vão adiando a decisão de ter filhos e, quando reúnem as condições para começar a construir uma família, pode ser tarde de mais.   
 
“É preciso segurança profissional, financeira, conjugal, uma série de fatores e temos de os arrumar. E esse arrumar dessas esferas não é fácil”, explica Maria João Valente Rosa.
 
A demógrafa e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa acrescenta que é particularmente difícil para mulheres que apostaram na educação e no trabalho, uma vez que entendem que ter um filho “pode comprometer em muito o que querem ser do ponto de vista profissional”. 
 

“Estamos longe de dominar a natureza”

Para os médicos, nem sempre é fácil gerir as expetativas de quem procura o consultório. “Dominamos alguns aspetos da técnica mas estamos longe de dominar a natureza”, sublinha Carlos Calhaz Jorge, especialista na área da fertilidade. 
 
O médico foi diretor do Serviço de Ginecologia do Hospital de Santa Maria em Lisboa até se reformar em novembro de 2021. Acompanhou, por isso, centenas de casais com dificuldade em engravidar. Confessou nem sempre existir um equilíbrio entre os desejos de realização social e de realização reprodutiva e a medicina reprodutiva nem sempre consegue dar resposta. “Há tecnologias – fertilizações, microinjeções – que têm os seus méritos mas têm as limitações decorrentes da qualidade das células envolvidas”. 
 
Para Daniela Ignazzitto, pianista dedicada à carreira, ter filhos nem sempre fez parte dos planos de vida.
 
“Eu tinha uma professora, que era uma pianista muito importante, que decidiu não ser mãe, e ela dizia que ainda é antagónico carreira e maternidade”, conta a italiana a viver em Portugal desde 1999.
 
Para Daniela, a vontade de ter filhos só surgiu por volta dos 37 anos. “Comecei a questionar-me. Será que não é importante para mim? Comecei a sentir o desejo de ser mãe.” 
 
As primeiras tentativas de Daniela começaram aos 39 anos mas a pianista queixa-se da receção quando foi ao médico. “A ginecologista disse-me que era demasiado tarde para ser mãe e eu ainda tinha 39 anos. É forte, não é nada agradável. Sentimo-nos um pouco fora do prazo. É horrível dizer isso”, conta. 

Mães depois do 40 aumentam

Em cerca de cinco décadas, o número de nascimentos em Portugal caiu para menos de metade. No início dos anos sessenta, havia mais de 200 mil nascimentos por ano no país.
 
Em 2020, nasceram em Portugal mais de 84 mil bebés. Cerca de metade – 45 600 - são filhos de mulheres que são mães pela primeira vez. Destas mães de primeira viagem, 2 416 têm 40 ou mais anos, o que equivale a 5,3% do total dos primeiros filhos gerados no país. No ano passado, vinte bebés nasceram de mães que tinham pelo menos 50 anos. 
 
Se recuarmos até 2011, 1065 mulheres tiveram o primeiro filho depois dos 40 anos. Em 2018, este número subiu para 2054. Já em 2019, foram 2259.  
 
Hoje, as mulheres têm, em média, o primeiro filho aos 31 anos, quase cinco anos mais tarde do que acontecia há apenas duas décadas.
 

“Não são assuntos de mulheres”

Para Maria João Valente Rosa é preciso encarar a maternidade adiada como uma questão de todos. “Não são assuntos de mulheres, são assuntos da nossa sociedade.”
 
A especialista em demografia sublinha que apesar de a mulher estar cada vez mais ativa no espaço público, “os valores dominantes continuam a ser de um passado em que as mulheres ficavam remetidas ao seu espaço doméstico e só se esperava delas, em termos de projeto, que fossem mães – e boas mães”.
 
E não se trata de egoísmo, como há quem goste de apontar. “Tem a ver com a noção de que é uma responsabilidade e é mais para uns do que para outros, sobretudo para as mulheres.”
 

Médicos pedem às família que tomem decisões informadas

Calhaz Jorge tem muitas histórias de sucesso ao longo da vida profissional mas outras tantas que não correram bem.
 
O médico explica que os tratamentos são importantes mas a probabilidade de sucesso pode não ir além dos 35%. “Mas há casais que vêm com a esperança de que a técnica tenha 80% de probabilidade de os ajudar”, explica.
 
Uma das técnicas que tem tido mais procura é a criopreservação dos ovócitos. Muitas mulheres recorrem a esta técnica para garantir que, no futuro, têm um caminho, caso se esgotem as opções naturais. Calhaz Jorge lembra que a “literatura mostra que nem 10% das senhoras que criopreservaram ovócitos depois os usam. Ou porque não querem. Ou porque engravidaram e não precisaram. Ou porque desistiram”.  
 

“É preciso esperar até tão tarde?”

 

Carla Mateus confessa que já começou a consciencializar-se de que não vai ter filhos. “Já fiz o meu luto. Chorei muito. No dia em que soube que não tinha óvulos, chorei sozinha no carro”, conta.
 
Sente, por isso, o dever de aconselhar quem possa estar a pensar avançar para uma família. “Consultem os vossos médicos. Se querem ter uma família, é preciso esperar até tão tarde? Não estejam até ao limite porque pode correr mal”. 
 
Mas pode também correr bem. Daniela Ignazzitto é hoje mãe de Júlia e Artur. A primeira gravidez foi aos 41 anos, a segunda aos 45. “A idade já era um bocadinho avançada. Dizem. Para mim não era. Para mim era a idade certa.”

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