Folhetim de voto | Não é novo, foi só reaquecido

5 jun, 08:08
Luís Montenegro no debate da moção de confiança ao Governo (LUSA)

Montenegro pegou no Governo que tinha, meteu-lhe duas novidades reluzentes para lhe dar aquele calorzinho e não parecer recesso. As entradas e saídas são poucas, mas dizem bastante. Um troll reformado será ministro plenipotenciário para as relações com o Chega, e uma ministra multiusos ficará com a tutela da técnica da força e da força da técnica

O Governo é novo mas é antigo. Luís Montenegro fez como os donos de cafés espertalhões: deu-lhe um calorzinho para não parecer recesso. Sendo quase tudo mais do mesmo, as atenções centram-se, naturalmente, nas poucas novidades apresentadas ontem pelo primeiro-ministro ao Presidente da República. Eram 17 ministros, serão 16, treze já lá estavam, um já estava no Governo, dois são estreantes. Quatro despedem-se hoje de funções ministeriais. Comecemos por estes, os que se despedem ou foram despedidos.

A saída de Pedro Duarte estava anunciada desde o momento em que o ministro dos Assuntos Parlamentares foi anunciado como candidato do PSD à Câmara do Porto. Aí, nada de novo. A questão são os outros três que estão de saída. O que têm em comum Pedro Reis, Margarida Blasco e Dalila Rodrigues? A saída das duas ministras era garantida como o destino, a do ministro nem por isso.

Tenho uma tese que é tão boa como qualquer outra: Luís Montenegro despediu os ministros de cujos nomes não se conseguia lembrar sem ir ao Google. Pedro Reis, Margarida Blasco e Dalila Rodrigues não existiam. Ponto final. Passaram meses desaparecidos em combate. Não têm obra para apresentar, não têm peso político, não deixarão saudades. Montenegro, naturalmente, abateu-os à lista de existências.

A dois – Margarida Blasco e Pedro Reis – uma “fonte oficial” fez a caridade de invocar vagas “razões pessoais” para o despedimento, dando a entender que teriam saído a seu pedido. Dalila Rodrigues nem essa misericórdia mereceu: foi mesmo despedimento por incompetência.

Nas horas de comentários nos vários canais a que me submeti voluntariamente ao longo da tarde e noite de ontem, notei alguma perplexidade com a saída de Pedro Reis, que manifestamente tem boa imprensa. Como é óbvio, a perplexidade demonstra que ninguém deu crédito às piedosas “razões pessoais”. Alguém acredita que Pedro Reis, que foi cabeça de lista da AD nas eleições, à semelhança de todos os ministros que foram reconduzidos, aceitou esse protagonismo apesar de, por “razões pessoais”, não poder continuar a ser ministro, cargo que foi a concretização de um sonho? Talvez a queda de Reis tenha mais a ver com outras quedas: a da economia portuguesa no primeiro trimestre, que contraiu 0,5% em comparação com o trimestre anterior; a do investimento estrangeiro, também nos primeiros três meses do ano, e uma queda para a verdade que protagonizou recentemente.

Na semana passada, com o atordoamento que se seguiu aos resultados eleitorais, passou quase despercebida a notícia: o investimento direto estrangeiro (IDE) em Portugal caiu no primeiro trimestre deste ano, pela primeira vez desde 2020, quando o país e o mundo pararam por causa da pandemia. Desde então, e mesmo em pandemia, o IDE cresceu sempre. Até que caiu no período de janeiro a março deste ano.

A culpa será do ministro? Não será exclusivamente – ter a AICEP paralisada, com um presidente em regime de part-time, provavelmente não ajuda. Mas quem está de turno quando se registam resultados desta estirpe não pode continuar em funções num Governo que não se cansa de falar em crescimento económico.

Uma verdade inconveniente. Ou talvez a queda de Pedro Reis tenha sido precipitada por uma queda para a verdade. O caso conta-se rapidamente: num evento recente do Governo, Reis admitiu uma evidência: com a “volatilidade” económica em que o mundo vive, não podia garantir que não teremos défice orçamental – aliás, tanto o Banco de Portugal como a Comissão Europeia apostam que, por este andar, vamos mesmo voltar aos défices. Mas não é esse o discurso oficial do Governo e Montenegro, que estava na sessão, puxou as orelhas ao ministro prevaricador. Reis voltou ao microfone e contradisse-se, debitando a cassete oficial de monco murcho: “Não vai haver défice em Portugal, isso é claríssimo.” Mas nem engolir o chapéu em público o salvou.

As razões para a saída de Margarida Blasco e Dalila Rodrigues parecem bastante mais transparentes: nunca souberam o que faziam ali. Não é que não percebam da poda, e até tinham currículo nas respectivas áreas – simplesmente nunca perceberam o que estavam a fazer no Governo.

O Super-Ministério das Sobras. O problema de ter ministros inexistentes é que nalguns casos passa a ideia de que a respetiva área é, também, inexistente. Tal nunca seria o caso da Administração Interna, que mexe com questões demasiado importantes para serem ignoradas, como segurança pública, proteção civil ou combate aos fogos. Mas foi claramente o caso da Cultura. Como Dalila Rodrigues nunca existiu, Luís Montenegro terá caído na armadilha da sinédoque, julgando que a Cultura não existe. Por isso juntou a cultura a outras miudezas, como a juventude e o desporto, e com este alegre pot pourri compôs um Super-Ministério das Sobras, que entregou à sua amiga Margarida Balseiro Lopes.

Por muito polivalente que seja a ministra mais jovem do Governo, não se percebe a lógica deste ministério, a não ser numa daquelas situações de aflição em vale tudo e se varre tudo para debaixo do tapete. Neste caso, para dentro de um ministério.

A força da técnica. Pergunta, e bem, o leitor: mas o que fez Margarida Balseiro Lopes ao longo do último ano, para além de existir como ministra mais jovem do Governo? Resposta: manteve-se politicamente relevante pela sua proximidade com Luís Montenegro, de quem sempre foi uma fiel apoiante dentro do PSD. De resto, não há memória do que tenha feito nas duas áreas que governou até agora. Aliás, perdeu a mais importante – a Modernização (coisa vaga, isto de “modernização”, sem complemento direto…) passou para o novato Gonçalo Matias, com uma ambição acrescida que se revela na nova designação: Reforma do Estado. Sobrava a Juventude, que seria coisa pouca, mas Montenegro juntou-lhe o Desporto, que sobrou do antigo ministério de Pedro Duarte, e a Cultura, que coiso... Balseiro Lopes terá achado bem (oxalá não tome posse contrariada, que é o tipo de toma que pode ficar atravessada na garganta duma pessoa).

Tutelando Juventude, Cultura e Desporto, irá a jovem Margarida elaborar culturas táticas? Promover a nova geração da arte equestre portuguesa? Discorrer sobre a força da técnica e a técnica da força nas obras de Domingos Sequeira e Domingos Paciência? Para isso, mais valia ir buscar o Gabriel Alves, que continua em excelente forma. Mas entende-se: Montenegro jogou com o pé que estava mais à mão. Quem nunca? Em todo o caso, se era para fazer rearrumações disruptivas, talvez fizesse mais sentido pôr o Desporto no Ministério da Justiça ou da Administração Interna, tantas são as vezes em que os casos de desporto são casos de polícia.

A Provedoira. Por falar em Administração Interna, pela primeira vez uma Provedora de Justiça transita diretamente para membro do Governo. E para tutelar uma das áreas em que mais vezes os cidadãos se queixam de abusos do Estado: as forças de Segurança. Por outro lado, os agentes das forças de segurança também se queixaram à Provedora de não serem devidamente pagos pelo Estado. Como ironizou o deputado do Livre Paulo Muacho, “há a expectativa de que possamos ter as recomendações [sobre segurança pública] da Provedoria de Justiça finalmente implementadas.”

Laudada por todos os lados, professora de Direito respeitadíssima, antiga vice-presidente do Tribunal Constitucional, à beira de terminar o segundo mandato como Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral é uma estrela e parece ter tudo para dar certo. Só falta saber se sabe ser ministra. E logo da Segurança Interna, a área em que o Governo sentirá maior pressão do Chega para mostrar músculo e rosnar aos meliantes que causam uma permanente “sensação de insegurança”. Face à recente deriva securitária do próprio Governo, e do discurso de Montenegro, ninguém apostaria em alguém com o perfil humanista de Maria Lúcia Amaral. Por azar, entra com a expectativa em alta. É bom no imediato, poderá ser uma cruz que carrega no futuro.

Um perfil tão reluzente que encadeia. A outra novidade no elenco ministerial consegue concitar expectativas ainda mais altas do que Maria Lúcia Amaral. Gonçalo Matias (ou Gonçalo Saraiva Matias, para quem insista nos três nomes) tem um perfil tão reluzente que encadeia os simples mortais. É ministro de Estado, o que dá estatuto de estalo, e da Reforma do Estado, o que o obrigará a fazer o que nunca nenhum congénere antes dele conseguiu. Não é tarefa pouca, tendo em conta que a última vez que a AD se dedicou à Reforma do Estado entregou a tarefa a ninguém menos do que Paulo-Portas-himself, e a coisa não passou de tinta e papel. E, como muitos se lembrarão, nem era assim tanta tinta nem papel: 120 páginas, com letra corpo 16, e um espaçamento exagerado entrelinhas, para parecer mais.

Gonçalo Matias é gestor de profissão, orbita na política por gosto (é consultor de Marcelo e também foi de Cavaco), e foi um dos raros portugueses que fez parte do Governo mais curto da nossa democracia, o segundo Governo de Pedro Passos Coelho (durou 28 dias).

Já nessa altura Gonçalo Matias tinha um cabelo impecável e uma missão impossível. Era Secretário de Estado Adjunto e para a Modernização Administrativa. Agora, de secretário de Estado subiu a ministro, sempre Adjunto, e a modernização passou a reforma, o que parecendo semântica é na verdade ambição política. Modernizar a máquina administrativa custa, mas faz-se; reformá-la é uma quimera. A não ser que Gonçalo Matias peça emprestada aquela motosserra que Musk ofereceu ao Milei, e que faz os sonhos molhados dos liberais. Mas, a julgar pelo contraste de estilo capilar, talvez não vá por aí.

A boa notícia é que Gonçalo Matias passou os últimos anos à frente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que tem números sobre tudo e publicou livros sobre todas as reformas de que o país precisa, e como concretizá-las. Na verdade, é um caso de DIY: os livros de instruções estão escritos, é só seguir os bonecos.

Para sorte de Gonçalo Matias, o programa eleitoral da AD sobre esta matéria é tão vago e cheio de lugares comuns, que o novo ministro pode fazer o que lhe apeteça. “As reformas do Estado devem ser orientadas pelos princípios gerais de Descentralização, Autonomia, Responsabilização, Capacitação, e Comparação Internacional. A concretização de uma reforma profunda deve ser caracterizada por medidas incrementais e por um pacto de médio-longo prazo”, lê-se no documento. Se a comparação internacional for com o DOGE, de Elon Musk, Gonçalo Matias já ganhou.

Uma meia-novidade. Embora seja um político de peso, Carlos Abreu Amorim só vale como meia-novidade porque já estava no Governo e já tinha as funções que terá; mas sobe de secretário de Estado para Ministro dos Assuntos Parlamentares. É uma escolha que causa várias perplexidades. Primeira: para quê um ministro dos Assuntos Parlamentares, se Luís Montenegro já tem no Parlamento o verdadeiro ministro dos Assuntos Parlamentares que é Hugo Soares, o seu conselheiro mais próximo e líder da bancada do PSD? Talvez Gonçalo Matias possa começar por dar atenção a esta redundância e cortar logo uma gordura do Estado.

Mas admitamos que, num governo de maioria relativa, com necessidade de negociação permanente no Parlamento, Hugo Soares possa não dar sozinho conta do recado, e precise de um ministro-sombra. Abreu Amorim é um político habilidoso, um jurista experiente e um parlamentar calejado. Também é um elefante numa loja de porcelana. Pôr como pivô parlamentar do Governo um incendiário político será a melhor escolha para alcançar acordos com a oposição?

Note-se que o perfil de Abreu Amorim é o perfeito oposto do perfil do seu antecessor, Pedro Duarte (e, neste caso, perfil é no sentido figurado, longe de nós fazer body shaming), o que indicia que o Governo não sabe exatamente o que quer na frente parlamentar. Pedro Duarte era civilidade, moderação, conciliação, falinhas mansas; Abreu Amorim é estardalhaço, truculência, rasteira política e volta de consagração. À semelhança de um ministro dos Assuntos Parlamentares de outros tempos, Abreu Amorim gosta é de malhar nos adversários (neste caso, na esquerda) – a vantagem desse outro ministro, é que tinha maioria absoluta, não precisava de negociar nada com ninguém…

Embora tenha desaparecido da política depois da derrota de Passos Coelho, Abreu Amorim já cá anda há muitos anos. Tantos, que treinou o seu estilo venenoso e por vezes boçal numa coisa chamada blogues e, depois, nas redes sociais, onde se comportava como um troll. E talvez seja esse passado, não necessariamente motivo de orgulho, a grande mais-valia de Abreu Amorim: ele fala a língua do Chega e conhece o submundo onde o partido de Ventura germina. Mais do que ministro-sombra de Hugo Soares, talvez o grande papel de CAA neste governo seja o de embaixador permanente junto do Chega.

A ministra pára-raios. Deixo de propósito para o fim a ministra que todos esperavam que saísse, mas que ficou. Ana Paula Martins, a ministra da Saúde. Um governo reaquecido, como este, não terá direito a estado de graça – já se sabe do que a casa gasta, e o que tem para dar. No caso de Ana Paula Martins, era, destacada, a ministra que os portugueses mais queriam ver pelas costas. Isto, a julgar pelas sondagens. Ao contrário de Margarida Blasco, Dalila Rodrigues ou Pedro Reis, de quem raramente alguém se lembrava, Ana Paula Martins esteve sempre na berlinda, e nunca por boas razões. Despediu o diretor-executivo do SNS antes de este apresentar resultados, e garantindo que a direção-executiva nunca terá resultados para apresentar; conseguiu ter mais urgências fechadas – sobretudo maternidades e serviços de obstetrícia – do que alguma vez no passado; e está há meses a tentar esconder as responsabilidades do Estado na morte de várias pessoas durante uma greve do INEM de que o Ministério decidiu fazer descaso. Junte-se, ainda, o facto de Ana Paula Martins ser cúmplice no escândalo dos pagamentos milionários a cirurgiões que trabalharam horas extraordinárias no Hospital de Santa Maria, quando a atual ministra era a diretora do centro hospitalar.

Resumindo: é uma ministra com demasiado passado para ter futuro. A sua saída do Governo é uma questão de tempo. E só isso pode explicar a insistência de Montenegro em mantê-la em funções. O verão vai ser muito difícil, com urgências fechadas por todo o país, o INEM continua em situação caótica, o escândalo dos pagamentos milionários ainda agora vai no adro. Ana Paula Martins servirá de pára-raios para o Governo, concentrando as atenções da comunicação social, a indignação das oposições e má língua do povo. Passado o verão, e passadas as eleições autárquicas, pode ser preciso fazer umas mexidas no Governo. Por essa altura Ana Paula Martins poderá ser dispensada. Tendo desviado a atenção da derrapagem das finanças públicas e da baixa execução do PRR (se Castro Almeida já estava com dificuldades tendo a seu cargo apenas os fundos europeus, imagine-se passando a tutelar também a Economia…), terá cumprido a sua missão patriótica.

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