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Gouveia e Melo apresentou-se. É caso para preocupação 

21 fev, 21:08

Quando, a X meses das eleições presidenciais, um candidato anunciado que é claramente favorito nas sondagens, sobre o qual não se conhece qualquer pensamento político, se apresenta ao País num artigo desenvolvido, devemos parar para ler. 

Eu fi-lo, e fiquei preocupada.  

Para lá das generalidades, “lapalissadas” e disparos em direção aos concorrentes, o artigo tem vários pontos dignos de nota.  

Desde logo, percebe-se que Gouveia e Melo está em modo “catch all”. Não é o primeiro nem será o último que quer estar em todo o lado e ser tudo e o seu contrário. Isso tem riscos, claro, porque mostra, além de ambição, falta de convicções e / ou impreparação. Diz-se “entre o socialismo e a social-democracia”, o que, talvez ele não saiba (mas os assessores que já estão com ele deviam saber), o coloca bastante à esquerda, quando se olha para os termos no âmbito da ciência política. O que ele queria dizer, mas não conseguiu (e isso é grave), é que está ali no meio entre o PS e o PSD (que tem, desde a fundação, a excentricidade lusitana de usar um nome na linha da esquerda moderada, quando se posiciona ao centro-direita). Mas Gouveia e Melo coloca-se ali no meio sempre a distância segura, com aquele orgulhoso desdém de quem se acha acima dos políticos profissionais.  

Outro ponto altamente questionável, e que mostra laivos autoritários, é quando diz que as “liberdades de informação, expressão e contestação devem estar devidamente salvaguardadas”, mas que "sendo a democracia tolerante por natureza, não deverá, em defesa própria, permitir ideias e práticas intolerantes, sob o risco de estas comprometerem a própria tolerância e, consequentemente, a democracia". Cita o célebre paradoxo da democracia de Karl Popper, uma daquelas tiradas que todos conhecem. Qual é então o problema? É que Popper o apresentou como um paradoxo, exatamente porque é complexo e não tem solução fácil, como gostam os populistas. Não se pode não permitir ideias intolerantes, sob pena de nos transformarmos, também nós, nos intolerantes. Gouveia e Melo abre um alçapão ao admitir limitar a liberdade de imprensa e de expressão, sem concretizar o que são "ideias e práticas intolerantes". Percebe-se onde quer chegar: a um “liberdade não é libertinagem”, como se ouve nas redes e às mesas dos cafés. Mas é fácil de ver que aqui cabe quase tudo – uma perigosa rampa inclinada.   

Mas o mais problemático é quando o militar na reserva fala das competências próprias da função para a qual se vai candidatar. Nomeadamente, quando admite convocar eleições antecipadas se não forem cumpridas promessas. Acha possível dissolver a Assembleia da República e convocar novas eleições em caso de “desfasamento grave entre os objetivos-prática do Governo e a vontade previamente sufragada pelo povo”. Talvez fosse bom ler o texto constitucional antes de se aventurar com estes dislates. A Constituição da República Portuguesa só permite demitir o Governo para assegurar o "regular funcionamento das instituições", não há lugar para falta de confiança política. Muitos Presidentes tiveram de lidar com primeiros-ministros dos quais não gostavam nem um bocadinho, e que entendiam que falhavam compromissos e promessas, mas tiveram de os aguentar. É esta a beleza dos freios e contrapesos do sistema semi-presidencial que temos. Semi, sublinho.     

Em suma, Gouveia e Melo ainda não está eleito e já começou com perigosas interpretações extensivas da Constituição.  

Diz quem o conheceu de perto na Marinha, e quem trabalhou com ele também de perto noutras instituições nacionais de segurança, que o seu pendor é claramente autoritário. Que para sobressair, levar a água ao seu moinho ou alcançar um objetivo traçado, Gouveia e Melo é capaz de ir muito longe – porventura, longe demais. Este artigo, lido com cuidado nas entrelinhas, não só não afasta estes temores, como infelizmente os confirma.    

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