"Os anos passam e nada mudou na nossa sociedade patriarcal": chega a Portugal a "banalidade da violação" que nos põe no banco dos réus

11 out, 10:06
Gisèle Pelicot (EPA)

A partir das centenas de páginas do processo e dos testemunhos de quem acompanhou o julgamento dos 51 homens que violaram Gisèle Pelicot, Milo Rau e Servane Dècle criaram uma performance-julgamento. Apresentação única, este sábado, no Panteão Nacional, em Lisboa. A entrada é livre

O encenador suíço Milo Rau estava em Paris a ensaiar o espetáculo "La Lettre", que iria apresentar no Festival de Avignon, quando soube que o caso Pelicot estava a ser julgado, precisamente, em Avignon: sedada pelo seu marido, uma mulher tinha sido violada, enquanto estava totalmente inconsciente, por mais de 50 homens ao logo de dez anos. "No início pensei que era um fait-divers, que era um caso como tantos outros", recorda o encenador. "À medida que fui conhecendo os contornos do caso percebi que isto era quase como o julgamento de Adolf Eichman, é um caso que está estruturalmente ligado àquilo que somos, enquanto sociedade, e a maneira como vivemos. E que mostra como os anos passam e nada mudou na nossa sociedade patriarcal, pelo contrário, parece que está cada vez pior. Eu não tinha noção, achava mesmo que já estávamos noutro ponto da nossa humanidade. Fiquei muito desiludido com a nossa sociedade."

"Pareceu-me que seria estranho, quase absurdo, ir a Avignon com uma comédia quando este era o tema de que toda a gente falava lá. Ir a Avignon, estar lá como artista e não falar sobre isto seria impossível", explica Milo Rau em entrevista à CNN Portugal.

Foi assim que nasceu o espetáculo "O Julgamento Pelicot" que, depois de se ter apresentado em Viena (Áustria) e Avignon (França), estará este sábado em Lisboa para uma apresentação integrada na Bienal Boca. No Panteão Nacional, o julgamento dos 51 homens que violaram Gisèle Pelicot será reconstruído num espetáculo que dura cerca de 4 horas e será evocado por atores portugueses. Entre as 18:00 e as 22:30, a entrada é livre e o público pode entrar e sair da sala quando quiser, tal como se estivesse no tribunal.

"Este caso deixou-me muito desiludido porque penso que diz muito sobre a nossa civilização"

Quando decidiu fazer o espetáculo, Milo Rau contactou imediatamente a dramaturga francesa Servane Dècle, para que o ajudasse a reunir, organizar e tratar toda a informação que havia sobre o caso. 

"Todas as pessoas foram super-prestáveis e estavam disponíveis para partilhar, seguindo, obviamente, o exemplo de Gisèle Pelicot que quis abrir o tribunal, quis que o julgamento fosse público e que todos soubessem o que tinha acontecido", conta Milo Rau.

Os materiais mais importantes foram as notas fornecidas por três jornalistas que assistiram ao julgamento e o dossier da investigação, recorda Servane Dècle à CNN Portugal: "São centenas de páginas com as descrições de tudo o que aconteceu, as descrições dos vídeos, o relatório do perito psiquiátrico e todo o tipo de informações. Além disso, encontrámos muitas pessoas que assistiram ao julgamento e partilharam a sua experiência e outros peritos, psicólogos, antropólogos e outros que estudaram o caso. Criou-se uma grande comunidade de pessoas à nossa volta e, a partir desse material, construímos a dramaturgia".

Gisèle não falou com eles, mas não se opôs ao espetáculo e, através do advogado, disse que autorizava que a sua história fosse contada. "Sabemos que ela assistiu ao espetáculo de Avignon, que estava a ser transmitido online, e que ficou muito comovida", diz Servane.

Espetáculo "O julgamento Pelicot" no Festival de Avignon (DR/ Monika Huber)

Milo Rau tentou perceber porque é que este caso o tinha chocado tanto: "Já estive no Congo, fui ao Médio Oriente, fui a todo o lado, vi violência, vi traumas, vi mortes em massa, vi tudo, mas este caso, de facto, deixou-me muito desiludido, porque penso que diz muito sobre a nossa civilização. Talvez as mulheres soubessem, mas eu não sabia. Perdi muitas das minhas ilusões de homem de esquerda".

"Talvez porque sou mulher, estava um pouco mais consciente do poder do patriarcado e sabia que este tipo tipo de coisas acontecem", contrapõe Servane Dècle. "Algo que foi muito marcante é que, quando comecei a trabalhar no caso, todas as minhas amigas faziam muitas perguntas e diziam que tinham seguido o julgamento, que se sentiam muito preocupadas e tinham muitas coisas para dizer. E todos os meus amigos homens diziam: coitadinha de ti, espero que despaches isso depressa. Os homens percebiam que era horrível mas sentiam-se embaraçados, não queriam falar sobre isto", recorda.

Na sua opinião, o caso Pelicot é ao mesmo tempo um caso "extraordinário", no sentido em que isto não acontece com toda a gente em todo o lado, mas, por outro lado, "é simultaneamente uma prova da banalidade da violação", porque todos os seus envolvidos são pessoas comuns, não são monstros, e tudo aconteceu em casa da mulher, com o seu marido, durante muito tempo, enquanto continuavam com a sua vida pacata. "E isto também diz muito sobre o nosso tempo e a forma como estes homens se encontraram, fizeram o que fizeram e escolheram violar em vez de denunciar Dominique Pelicot. E tentar perceber como chegam todos a este quarto? E porque é que vieram? Porque é que quiseram violar alguém? É uma loucura tentar entrar na mente destas pessoas."

"Se isto fosse uma experiência sociológica, uma experiência paradoxal e louca, Dominique Pellicot tê-la-ia feito muito bem porque abrange todos os níveis sociais, de educação, idade, todo o tipo de pessoas, até de homossexual", acrescenta Milo Rau. "Não se pode dizer que alguém foi traumatizado na sua juventude e por isso se tornou um violador. Ou tque oda a gente que vê pornografia torna-se violador. Em alguns caso isso será verdade, em muitos outros não. Mas percebemos que vivemos num mundo em que se se é um homem é mais fácil e mais comum violar do que não violar. Foi isso que eu aprendi."

Quatro horas de espetáculo: a duração certa para contar e processar tanta brutalidade

Como transformar um caso tão chocante num espetáculo de teatro? Milo Rau já tinha experiência de fazer outro espetáculos-julgamento, neste caso a maior dificuldade era trabalhar com um caso que tinha acabado de acontecer (na verdade, estava ainda a acontecer - o último de julgamento de recurso aconteceu esta semana). Se era uma vantagem ter toda a gente disponível para colaborar, também era uma responsabilidade maior porque estavam a falar das vidas de pessoas que estavam ali ao seu lado. 

"O que dizer?, o que mostrar?, o que deixar de fora?", pergunta a dramaturga. E ainda: "Não tínhamos gravações, só tinhamos o que foi escrito, por isso havia vazios que tínhamos de preencher. Até onde poderíamos inventar?"

Milo Rau tinha outras perguntas: "Por onde começar? Porque isto não começou aqui. A história de Dominique Pelicot é a história do homem. E onde acabar? Porque isto não acabou", diz, citando o sociólogo francês Pierre Bourdieu que dizia que "quanto mais concreto, mais universal" - ou seja, sabiam que contando esta história, deste caso, estariam a contar uma história muito maior e com que todos os espectadores se poderiam relacionar em algum momento.

É verdade que o espetáculo demora um pouco mais de quatro horas, mas Milo Rau e Servane Dècle acreditam que o público nem vai dar pelo tempo passar. Além disso, temos de nos lembrar que o julgamento teve 400 horas e foram ali ditas coisas muito violentas - era preciso tempo, tempo para contar e tempo para absorver. O tempo certo, dizem.

Sem querer desvendar muito do que se vai passar, podemos dizer que não será apenas uma reconstrução do julgamento. "São muitos protagonistas, com muitas histórias que queríamos contar", diz Servane. "É um caso muito complexo. E depois queríamos ter um pouco de teoria para compreender melhor. Queríamos ter um pouco de poder feminista para que no final nos sentimos um pouco mais fortes. Portanto, o mais difícil foi fazer este equilíbrio entreo horror, a compreensão, a inteligência e encontrar um pouco de beleza e talvez de esperança nisto."

A audiência poderá sentir-se como o juiz ou como um advogado ou o procurador ou um jornalista. Uma testemunha. Não se trata de um espetáculo ativista, porque não apela à ação, dizem. Embora pensem que, necessariamente, as pessoas levarão algo para a sua vida. Uma ideia. Uma decisão. Um desejo. Muitas perguntas. Uma recusa. Nem que seja só a dúvida sobre se diriam que não. Ou a certeza de que "eu nunca farei nada assim". Como diz Servane Dècle: "É tão brutal, mas podemos fazê-lo porque é teatro e podemos estar todos juntos, enfrentar isto. juntos, o que é completamente diferente de o enfrentarmos no Twitter sozinhos. Por isso, sinto que o teatro é, de facto, o sítio certo para lidar com esta brutalidade."

Lista dos intérpretes em Lisboa:

  • Cláudia Semedo e Cristina Carvalhal (atrizes) conduzem o espectáculo.

Leitores de várias passagens:

  • Gaya de Medeiros (bailarina e coreógrafa)
  • Maria João Luís (atriz)
  • Leonor Caldeira (advogada)
  • Mariana Monteiro (acriz)
  • Raquel André (artista e colecionadora)
  • Ana Bustorff (atriz)
  • Alice Neto de Sousa (autora)
  • Isabel Ruth (atriz)
  • Gisela Casimiro (escritora, artista e ativista)
  • Sandra Rosado (bailarina)
  • Teresa Gafeira (atriz e encenadora)
  • Maria Fera (ativista)
  • Rui Maria Pêgo (ator e apresentador)
  • André Tecedeiro (poeta e dramaturgo)
  • Albano Jerónimo (ator)
  • Pedro Marques Lopes (comentador, colunista e gestor)
  • Joãozinho da Costa (ator, encenador e artista)
  • Luca Argel (músico)
  • Bernardo Mendonça (jornalista)
  • João Mota (encenador)
  • Paulo Pires do Vale (coordenador do Plano Nacional das Artes)
  • Valdemar Brito (ator)

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