Gisèle Pélicot, de 72 anos, descreveu o que sentiu quando a polícia lhe mostrou as primeiras imagens dos abusos, que só conseguiu ter coragem de ver em maio deste ano. "O meu mundo desmoronou-se. Para mim, tudo estava a desmoronar-se"
"Violação não é a palavra correta, é tortura", disse Gisèle Pélicot, de 72 anos, no julgamento do seu marido e de dezenas de homens acusados de a violarem ao longo de uma década. A mulher falou no tribunal pela primeira vez e diz ter sido “sacrificado no altar do vício”.
"Viam-me como uma boneca de trapos, como um saco do lixo", afirmou Pélicot. Em julgamento não está apenas o seu marido, Dominique, mas também cerca de 50 homens, todos convidados por Dominique para violar a mulher enquanto esta se encontrava inconsciente após ser drogada.
À volta de 30 homens não foram identificados pela polícia e continuam a monte.
Durante o testemunho, Pélicot descreveu o que sentiu quando a polícia lhe mostrou as primeiras imagens dos abusos, que só conseguiu ter coragem de ver em maio deste ano.
"O meu mundo desmoronou-se. Para mim, tudo estava a desmoronar-se. Tudo o que eu tinha construído ao longo de 50 anos", referiu, citada pelo The Guardian. "Quando se vê aquela mulher drogada, maltratada, uma pessoa morta numa cama - claro que o corpo não está frio, está quente, mas é como se eu estivesse morta".
Pélicot lembrou os 50 anos que esteve com o seu marido. “Não éramos ricos, mas éramos felizes. Até os nossos amigos diziam que éramos o casal ideal”, conta. Dominique e Giséle têm três filhos e sete netos. Aos filhos, Pélicot explicou pelo que tinha passado. O grito da sua filha, quando ouviu a história de horror, "ficou gravado" na sua memória, afirma.
O The Guardian menciona que Gisèle saiu de casa apenas com duas malas, "tudo o que me restava de 50 anos de vida em comum".
"Já não tenho uma identidade. Não sei se alguma vez me vou reerguer", lamentou.
O caso
Segundo a polícia, Dominique Pélicot esmagava comprimidos para dormir e para a ansiedade, misturando-os no jantar ou no vinho da mulher na casa de ambos em Mazan, uma cidade com seis mil habitantes na Provença.
O marido recrutaria depois outros homens para violar e abusar sexualmente da companheira, recorrendo a plataformas digitais cujos membros assumiam a fantasia de levar a cabo atos sexuais não consentidos.
Os homens eram instruídos a não usarem qualquer tipo de fragrância e a não fumarem, para não correrem o risco de a mulher se aperceber da sua presença. Além disso, tinham a indicação para abandonar a casa se ela mexesse sequer um braço, explicaram os investigadores.
O pensionista acabou detido em novembro de 2020, depois de ter sido apanhado por uma câmara de videovigilância a filmar por baixo das saias de mulheres num supermercado.
A polícia encontrou depois uma pasta chamada “abusos” numa pen que estava ligada ao computador do principal arguido. Nela encontravam-se mais de 20 mil imagens e vídeos da sua mulher a ser violada cerca de uma centena de vezes.
Os registos mostram que o francês terá obtido 450 comprimidos para dormir em apenas um ano. Desde que foi detido, declarou-se sempre culpado.
Além de Dominique Pélicot, a lista dos 50 homens que vão a julgamento inclui um conselheiro local, enfermeiros, um jornalista, um antigo polícia, um guarda prisional, um soldado e um bombeiro. Viviam todos perto de Mazan. Estes homens tinham entre 26 e 73 anos na altura em que foram detidos.
Muitos dos acusados rejeitaram as acusações, explicando à polícia que não faziam ideia de que a mulher não autorizava aqueles atos sexuais e acusando Dominique de os ter enganado.
Segundo os investigadores, a mulher era drogada “até quase a um estado de coma”, daí que não tivesse qualquer memória desses atos. Quando soube deles, ficou devastada, explicaram.
A mulher acreditaria ter uma doença sem explicação e chegou a consultar vários médicos, sempre acompanhada pelo marido, que atirava as culpas para o cansaço de ter de tomar conta dos netos. Outros familiares, incluindo os filhos, chegaram a suspeitar tratar-se de Alzheimer.