Este artigo é um relato de seis mulheres sobre o real cenário da ginecologia e obstetrícia em Portugal: dificuldade de acesso às urgências, quilómetros atrás de quilómetros para ter uma consulta, chamadas e pesquisas online para saber onde parir e seguros de saúde (pagos pelas empresas) que permitem saber como está o desenvolvimento do bebé. Cinco grávidas e uma recém-mãe dão voz por um direito que dizem estar “condicionado”. Há um caso em que tudo está a correr bem, mas a ansiedade que é já transversal até entre quem ainda não abraçou a maternidade. “Tenho amigas que dizem que não querem engravidar tão cedo por causa desta situação toda”
“Liguei sempre para a linha Saúde 24 quando tive perdas de sangue, tinha essa indicação dos médicos. Numa das vezes mandaram para o Amadora-Sintra, mas estava fechado para grávidas com menos de 22 semanas, eu estava de 14. Voltei a ligar e disseram-me que estava encaminhada para o Amadora-Sintra e não me iam encaminhar para outro hospital. Fui para a Maternidade Alfredo da Costa (MAC) por minha conta e risco e fui atendida”.
Filipa Costa está grávida pela terceira vez e não consegue parar de fazer comparações com a sua primeira gravidez, em 2020, ano por si só complexo devido à pandemia, mas aos dias de hoje não tão complexos como o cenário atual. “O atendimento agora é completamente diferente, na altura, podíamos ir a qualquer urgência, neste momento não. Tive perdas de sangue com risco de aborto e sinto que nunca sabem para onde nos mandar”. A assistente administrativa de 31 anos, residente no concelho de Sintra, não hesita e diz não ter dúvidas de que “o acesso está barrado”. “Sentimos que se precisarmos de alguma coisa, alguma urgência, não sabemos se vamos ser atendidos a tempo, se vamos ser socorridas. O meu bebé está previsto para o Natal e isso deixa-me ansiosa. Vou entrar em trabalho de parto e vou para onde?”, questiona. E foi essa a questão que Raquel Ferreira, de 31 anos, fez em maio. “Estava constantemente a ver quais as urgências fechadas ao fim de semana”, conta. Mas no stress e na ânsia do momento, não pesquisou, não ligou. Limitou-se a agir.
“Fui diretamente para o [hospital] Beatriz Ângelo. Quando as águas rebentaram nem pensei, cheguei lá e perguntaram se tinha ligado para o SNS24. Disse que não o tinha feito por uma questão de stress, mas disseram-me que não havia vagas nenhumas e só descobri isso quando cheguei lá. Fizeram o CTG e disseram que não tinham vaga naquele hospital, pedi para me encaminharem para o de Cascais, mais perto de minha casa e a minha segunda opção, mas disseram que não havia vagas em Cascais e que para o Amadora-Sintra já tinham encaminhado uma grávida. O São Francisco Xavier estava fechado e a MAC cheia, só havia vagas em Santarém. Desatei a chorar, fiquei aflita com medo para onde me iam mandar”, recorda a técnica de recursos humanos, a residir em São Marcos, também em Sintra. Acabou por dar à luz no Beatriz Ângelo, mas sem acesso a epidural durante horas (pediu às quatro da manhã e só teve depois da mudança de turno, quando “abriram uma exceção”) ou acompanhamento do parceiro. “Entrei por volta das duas da manhã no hospital, fiquei numa enfermaria com outra pessoa e só entrei no bloco às 12:00”.
O encerramento rotativo de serviços de urgência de Ginecologia e Obstetrícia tem sido a estratégia adotada para fazer frente às dificuldades nesta especialidade, mas a chegada do verão e das férias dos profissionais de saúde torna a situação mais complexa, com hospitais a viver sob pressão para dar resposta aos encerramentos, como é o caso da Maternidade Alfredo da Costa, que em três dias fez 60 partos e atendeu o dobro das grávidas. O caos não é de agora, tem-se vindo a repetir nos últimos dois anos, mas é apontado pelos especialistas como dos mais críticos até agora vividos nesta especialidade médica.
Em declarações à antena da CNN Portugal, Sara do Vale, cofundadora da Associação Portuguesa de Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, revela que tem recebido mais queixas e até “vários pedidos de ajuda” por parte de grávidas que não estão a conseguir o devido acompanhamento médico durante a gestação. Sara do Vale lamenta que “as pessoas não tenham noção do que se está a passar nos hospitais” e dá exemplos do atual cenário: “Há hospitais onde as pessoas chegam já de bebé no colo, ou porque ficam muito tempo em casa, ou demora a chegar auxílio, não sabemos se o bebé nasceu em casa ou se nasceu na ambulância”.
As longas viagens de quilómetros para conseguir um atendimento na urgência ou até mesmo para parir - como aconteceu no mês passado com uma grávida de Torres Vedras - é um dos motivos que ajuda a explicar este cenário. Este verão, por exemplo, uma grávida de Leiria vê o seu bebé nascer em Coimbra ou no Porto - e já nasceram 30 nestas duas regiões de mães residentes em Leiria, como noticia o Público. Estamos a falar de viagens em trabalho de parto de 80 e 180 quilómetros, respetivamente.
Inês Freire, de 34 anos, é de Fátima e sabe que terá o seu bebé em Coimbra, onde é acompanhada por ter uma gravidez de risco. Com o parto previsto para uma outra altura crítica do ano - o Natal -, a designer industrial tenta manter-se calma. O facto de estar a ser seguida em Coimbra - algo que diz “não foi fácil” - dá-lhe alguma tranquilidade, uma vez que a alternativa seria Leiria, uma das zonas mais carenciadas em Obstetrícia e Ginecologia e que tem vindo a transferir grávidas para Coimbra e Porto. “Se não tivesse nenhuma doença, que por acaso tenho, apesar de não a querer ter, teria de ir para Leiria e aí, sim, estaria preocupada e iria ser acompanhada no privado”, conta-nos, dizendo que “se vir que as coisas não estão a correr bem" não descarta uma ida para o privado, apesar de admitir que "não seria muito fácil financeiramente, mas teria de fazer um esforço”. Já para Filipa Costa, essa nem é uma opção: “Neste momento não é de todo uma possibilidade para mim ir para o privado, teria mesmo de recorrer ao público”.
Os seguros de saúde acabam por ser uma tábua de salvação para muitas grávidas e muito graças às empresas, que incluem apoios no contrato laboral. O preço reduzido das consultas permite a muitas grávidas fazer o devido acompanhamento da gravidez nos hospitais e clínicas privadas, assim como realizar as ecografias obstétricas, raramente feitas no público por falta de vagas. Inês Freire só fez uma através do Serviço Nacional de Saúde (SNS), vai fazer apenas a do último trimestre. Para as duas primeiras, tal como uma grande parte das grávidas, teve de pagar do próprio bolso. “Não há vagas nos hospitais e não havia vagas [em clínicas] com comparticipação”, explica. Já Filipa, teve de pagar todas. “Ecografias só no privado, só pagando mesmo, é impossível marcar. E pelo privado já se sente alguma dificuldade”, diz a assistente administrativa.
Para Andreia Rocha, de 34 anos, o seguro de saúde que a empresa lhe dá é quase como um tranquilizante. “O público não foi sequer uma opção”, diz-nos. Com o parto previsto para daqui a duas semanas, a técnica de marketing de Vila Nova de Gaia diz-se agradecida por ter um seguro que a ajuda a ter o devido acompanhamento no privado. “Apesar de este ano estar a ser mais falado do que nos anteriores, nos outros anos havia esta polémica relacionada com o fecho das urgências e, também por relato de outras grávidas com experiências não tão boas no público, como tenho seguro de saúde optei logo pelo privado”, revela. Mas, e se Andreia não tivesse o seguro da empresa? “Não conseguiria ter o bebé no privado sem o seguro. Iria sentir-me bastante ansiosa”, lamenta.
“Só tenho esta possibilidade [de ser seguida no privado] porque o seguro é através da empresa, sem isto seria impossível suportar os custos de acompanhamento e do parto, iria estar muito ansiosa. Sendo já ansiosa, iria ser pior, o ter de ligar para alguns sítios só iria complicar a minha situação”, continua Andreia Rocha.
Raquel Ferreira é bastante crítica relativamente “à desorganização e falta de recursos” no SNS e também se socorreu do seguro de saúde durante a gravidez - “nem tentei fazer as ecografias pelo Estado, sabia que não havia vagas e que nunca iria cumprir os timings supostos” - e até ponderou ter o bebé num hospital privado. E só não o fez porque o seguro de saúde que a empresa lhe deu ainda estava em período de carência.
Grávidas sem acompanhamento
Em declarações à CNN Portugal este domingo, a cofundadora da Associação Portuguesa de Direitos da Mulher na Gravidez e Parto alerta que há “muitas situações durante a gravidez que estão a ser esquecidas”, dando o exemplo de duas mulheres, uma que “não teve consultas de gravidez no segundo trimestre”, pois não foram marcadas nem no centro de saúde, nem no hospital e outra “com uma gravidez já de risco” a precisar de ferro em que “foi-lhe cancelada a consulta e marcada para perto do parto”. O acompanhamento é, na verdade, a crítica mais comum apontada pelas grávidas e Raquel Ferreira conta, agora com ironia, a mensagem que recebeu no seu telemóvel dois dias depois de ter dado à luz. “O hospital onde pari é o que me manda mensagem para ir lá passados dois dias fazer o CTG”. A cardiotocografia (CTG) é um exame de diagnóstico complementar que faz o registo gráfico da frequência cardíaca fetal e das contrações do útero e que costuma ser feito a partir das 37 semanas, salvo casos de gravidez de risco, em que é feito mais cedo, a partir das 26 semanas.
As consultas de acompanhamento gestacional são um dos aspetos que o SNS não tem conseguido dar resposta e, na maioria dos casos, feitas também no setor privado, sobretudo quando nem médico de família é atribuído a grávida tem.
Maria (nome fictício), tem 36 anos, é vietnamita e está em Portugal “há quase três anos”. Está agora no segundo trimestre da gravidez e ainda não conseguiu qualquer atendimento no público. “Fui a clínicas privadas duas vezes e irei mais vezes”, diz, lamentando a dificuldade que também já há em fazer marcações no setor privado, que começa a dar sinais de pressão com o caos que se vive no SNS. “Para a próxima consulta tenho de ir para fora de Lisboa porque não há vaga aqui. Para a minha próxima ecografia tenho de marcar na clínica privada porque, mais uma vez, não há vaga disponível”, relata.
Maria planeou “fazer o parto no hospital público” e até tem uma amiga que lhe disse que o Hospital São Francisco Xavier “era bom”, estando a pensar “fazer o parto lá”. Mas, primeiro, não sabe se deve “marcar” pois não teve ainda qualquer orientação de como tudo se procede em Portugal, depois, não consegue deixar de estar inquieta. “No ano passado ouvi uma notícia sobre uma mulher grávida que morreu a caminho de outro hospital porque o primeiro hospital, público, fechou para serviços obstétricos e ela teve de ir para tão longe que não conseguiu [resistir]. Sei que há mais hospitais públicos aqui em Lisboa, mas... quem sabe…”, escreve-nos, admitindo que “está muito preocupada”. E não é a única: “Fico ansiosa. Uma coisa é o que planeamos e outra é o que acontece”, admite Andreia Rocha, que se apressa a confessar: “Tenho amigas que dizem que não querem engravidar tão cedo por causa desta situação toda”.
“É muito importante perceber o drama que se está a viver nas nossas maternidades”, vinca Sara do Vale, da Associação Portuguesa de Direitos da Mulher na Gravidez e Parto, lembrando que “o parto não tem tempo, as pessoas não têm tempo, este é um momento inadiável na vida das famílias, não é repetível e pode correr muito mal, ficam de facto com memórias muito graves”.
Filipa Costa sente que as grávidas estão a ser “deixadas para trás” e que o Governo “falha um pouco, nem todos têm disponibilidade financeira para pagar um parto no privado”. “Estamos a ser esquecidas”, vinca, dizendo que a atual situação dos hospitais e das especialidades de Ginecologia e Obstetrícia acabam por ser um travão para os casais. “Só de ver as notícias, quem não está grávida pensa que não é uma boa altura [para ficar], mas não podemos adiar a nossa vida. Não posso adiar a minha vida”.
“O momento da gravidez é muito ansiogénico, gera muitos medos e uma necessidade de acesso rápido e facilitado [aos cuidados de saúde]. Quando não se tem seguro de saúde e a única opção é o SNS, ainda torna tudo mais difícil, até porque não se sabe se temos alguém para nos atender no hospital”, reconhece Raquel Ferreira, que foi mãe há três meses. “Estes casos aumentam ainda mais o medo de os casais quererem engravidar”, lamenta.
Grávidas do Norte mais (ou menos) descansadas
Luísa Azeredo é o exemplo de como, quando quer, o SNS funciona. Pelo menos, a Norte. A engenheira de automação de 33 anos está grávida pela segunda vez e não tem qualquer queixa a apontar ao hospital onde é seguida, em Vila Nova de Gaia. “Até ao momento nunca houve qualquer tipo de constrangimento ou necessidade de fechar maternidade, neste hospital isso não se aplica, daí nem sequer ser uma opção ir para o privado”, conta-nos, dizendo que os cuidados recebidos na primeira gravidez foram o mote para se manter fiel ao setor público da saúde.
“Tenho uma bebé que nasceu com 25 semanas, na altura, dei entrada na antiga maternidade de Gaia. Pensava ter [a bebé] no privado, era eu ‘toda privado’, mas fui recebida no público numa situação debilitada e fui muito bem atendida, desde profissionais a todo o cuidado que tiveram em plena pandemia, o pai não podia estar lá mas esteve sempre comigo. Por isso, nem sequer ponho a questão de ir para o privado, escolhi este hospital”, diz-nos Luísa, que mantém um acompanhamento no hospital público nesta segunda gravidez, conseguindo até fazer as ecografias obstétricas nessa unidade.
A região Norte há muito que tem sido vista como um exemplo a seguir. Tanto o Hospital de Vila Nova de Gaia/Espinho como o Centro Hospitalar Universitário de São João e o Centro Materno Infantil não têm apresentado problemas no acesso e prestação de cuidados. O São João é um dos que recebe grávidas de Leiria e não só. Parte do ‘sucesso’, explica à CNN Portugal Maria João Baptista, diretora clínica da unidade, está na organização e planeamento, algo que as grávidas agradecem.
Apesar de estar a conseguir o atendimento devido por ter uma gravidez de risco, Luísa não está imune a todo o caos que se vive na Ginecologia e Obstetrícia fora da região Norte. E isso tem impacto na sua rotina. “No meu caso, [esta situação] não me causa ansiedade, mas acabei por não fazer férias no sul do país por termos receio de estarmos numa situação débil, de ter de entrar numa urgência e não ter assistência. Acabamos por não sair do Norte, estamos mais confortáveis cá”, admite.
Também Andreia Rocha, a duas semanas de dar à luz, prefere manter-se na sua ‘zona de conforto’, que é como quem diz, o distrito do Porto. “Tentei fazer a minha vida normal durante a gravidez, mas desde os seis meses que evitei afastar-me desta zona com medo de haver complicações e não haver qualquer hospital para ser vista”, lamenta.