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Colunista e comentador

Os medos do País-trafulha

28 jan 2022, 17:17

O País está estranho, parece bloqueado, e não é só a pandemia, as pessoas continuam escondidas atrás dos subsídios, das promessas e de um clientelismo atroz, que o abafa no seu respirar verdadeiramente democrático

Agora que atingimos o momento decisivo da campanha eleitoral para as legislativas deste domingo percebemos que o ‘Desporto’ ficou mais uma vez fora do debate político-partidário.

Surpresa? Zero!

Quando aqui se fala de Desporto, fala-se numa perspectiva macro e, antes de se chegar ao terreno da competição, em diversas modalidades, nomeadamente aos contornos do 'apoio olímpico', seria importante enquadrar a actividade desportiva como uma das bases de sustentação no bem-estar de qualquer cidadão, e não apenas do cidadão-eleitor, uma vez que a prática desportiva, entre os mais jovens, pode e deveria servir de suporte para uma cidadania mais completa.

O desporto ao ar livre ou nos pavilhões vem sendo substituído - já há muito tempo - pelos jogos de computador e de uma actividade cada vez mais absorvente e com uma componente cada vez mais tóxica nos dispositivos móveis e ninguém parece preocupado com essa tragédia.

Estamos em plena pandemia, que impôs lógicas e comportamentos bem diferenciados em relação ao passado ainda assim recente, mas se é pacífico que o debate se centre nas questões económicas e de saúde, e também nas implicações dos arranjos político-partidários, com tantas contradições a emanarem de aproximações úteis depois do chumbo do orçamento, a verdade é que o desporto vem sendo desprezado pelos partidos em quase todas as suas dimensões.

Este desprezo histórico decorre do facto de os principais emblemas em Portugal substituírem em grande parte o papel do Estado. Essa superioridade dos clubes dominantes - a parte mais visível do desporto nacional - também concorreu para a classe política olhar para o desporto como uma espécie de recreio do seu quotidiano, marcado por debates muitas vezes pesados sobre matérias que não dão descanso no domínio das querelas partidárias e também com um olhar condescendente sobre as arbitrariedades cada vez mais visíveis no âmbito do chamado 'movimento associativo', cuja autonomia (regulamentada) serve para justificar omissões, demissões várias e, afinal, a não intervenção dos governos, sobretudo em temas que possam suscitar divergências com os barões desse movimento associativo.

Quando falo de 'recreio' isso tem muito a ver com a prática de anos a fio com os políticos a colarem-se aos êxitos desportivos, porque acham que isso lhes vale (sobretudo) protagonismo e votos.

Durante anos em Portugal, com graves consequências ao nível da autoridade política mas também da autoridade judicial, foi um fartar vilanagem de convites para as tribunas, de convites para tudo e mais alguma coisa, de colagens fáceis e babadas aos titulares de cargos relevantes nas estruturas dos clubes de futebol, fossem eles presidentes, vice-presidentes, meros directores ou administradores das SAD.

Algumas modalidades de pavilhão suscitam interesse dos portugueses, mas continua a ser o futebol, agora e sempre, a concitar as maiores atenções.

Erradamente, quando em Portugal se fala de Desporto as pessoas associam ao Futebol, e este no torrão pátrio está a viver um momento particularmente dramático. É essa dramaticidade que deveria concorrer para, em plena campanha eleitoral, se fazer a sinalização da preocupação sobre o tema, porque toda a gente já percebeu há muito tempo que a organização do futebol é capaz de gerar bloqueios, silêncios e uma perturbadora inação, quando estão em causa suspeitas de crimes que prejudicam gravemente o erário público.  

O futebol está a ser investigado de alto a baixo, já houve detenções e fixação de pesadas cauções para poder haver libertações, mas a sensação que se colhe, pelo desenvolvimento dos diversos processos judiciais, é a existência de uma justiça a sul do Mondego e outra a norte do Mondego. Não é apenas a proverbial morosidade. Não são apenas os incidentes processuais e as manobras de dilação também habituais. Percebe-se que é muito mais.

O futebol e o seu mundo poderiam ser o tal recreio e não suscitar nenhum tipo de inquietação e intervenção política se introduzisse nesse seu mundo mecanismos de regulação suficientemente frenadores de uma actividade disruptiva e potencialmente corrupta. A partir do momento em que o escrutínio da organização do futebol não é suficiente para estancar e punir comportamentos marginais, a falta de comparência do poder político - demasiado comprometido com cedências e promiscuidades - é uma desgraça.

Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa, as figuras mais presentes do dirigismo desportivo dos últimos decénios, são suspeitos de se terem aproveitado do Benfica e do FC Porto para proveito próprio. São suspeitos de terem alimentado um esquema complexo de ligações com empresários e gente que passou a ter palco no futebol apenas e só por serem veículos e beneficiários de lucros alegadamente ilícitos.

Pelo que se percebe, os esquemas são similares. Passam pela cobertura a empresários (ex: Pedro Pinho e César Boaventura), de advogados que se fizeram empresários (ex: Bruno Macedo e Paulo Gonçalves)  e do envolvimento dos filhos (Tiago Vieira e Sara Vieira/Alexandre Pinto da Costa).

Luís Filipe Vieira foi apanhado, detido e pagou uma caução. Pinto da Costa continua a ser investigado e todos os seus sequazes colocados em desassossego.

Muito estranho como é que, perante todos os indícios recolhidos pelo Ministério Público, e com a convicção pública da dimensão de um brutal esquema de aproveitamentos criminosos, o comboio continua a viajar sobre as linhas do carril.

Das duas, uma: ou está tudo louco no Ministério Público ou o País está dominado e paralisado pelos seus medos. A ameaça é assim tão grande? As dependências são assim tão avassaladoras?

Um dos raros políticos que se atravessou e não mostrou medo das garras do ‘monstro-do-futebol’ foi Rui Rio, protagonista central desta campanha eleitoral juntamente com António Costa. Com graves consequências para o seu bem-estar. A inoperância das instituições é a pior coisa que se pode sentir quando essa inoperância pode estar tomada pelo medo.

O País está estranho, parece bloqueado, e não é só a pandemia, as pessoas continuam escondidas atrás dos subsídios, das promessas e de um clientelismo atroz, que o abafa no seu respirar verdadeiramente democrático. 

O aparelho do futebol e as suas manhas são um bom (mau) exemplo do impasse em que Portugal parece mergulhado. A partir do mau exemplo do futebol (não confundir a indústria do futebol e as suas imparidades com o jogo, que é maravilhoso), na qual ninguém toca ou ousa colocar em causa, excepto no calor da luta dialética entre os espadachins dos três clubes dominantes em Portugal (descobrindo-se nessa luta tantos podres e tantos comprometimentos), percebe-se tudo o resto: as trafulhices, os encobrimentos, os silêncios e os arranjinhos.

As pessoas estão habituadas a ver o País a preto e branco. Os que são do clube A ou do partido B. E os que são do clube B ou C e do partido C ou D. Nós vemos tantas vezes as ideologias truncadas ou, na ausência delas, interesses concertados. Partidos que chumbam um orçamento e depois estão disponíveis para discutir lugares não são credíveis. Nada disto é credível. Tudo isto é postiço, tudo isto é tão pobre, tudo isto é tão dissimulado e falso. E, em alternativa, os ‘achegamentos’ de uma demagogia que mistura verdades com uma perigosa queda num extremismo que se deve dispensar em absoluto.

As investigações no futebol sugerem tudo o que mina as sociedades: corrupção, branqueamento de capitais, fraude fiscal, abusos de confiança, falsificação e burla qualificada, mas o País político parece conviver bem com isso. Não se quer meter, resguarda-se no argumento da independência do poder judicial — e condições para este fazer o seu trabalho integralmente, não apenas através de meios mas também sem medos de represálias?

O desporto é fazer ginástica e levantar o haltere do chão, como dizia o Vasco Santana, mas é muito mais do que isso. O desporto transformou-se numa indústria pesada, nalguns casos e nalgumas modalidades em concreto potencialmente mafiosas, e é preciso não ignorar que há muito gente a governar-se por falta de Governo, em contraponto com aqueles que apenas querem trabalhar, ganhar o seu dinheiro e pagar impostos para o bem comum e não para tapar os buracos de quem rouba, sejam ex-banqueiros, ex-superempresários, ex ou actuais presidentes de clubes de futebol ou tutti quanti de uma fauna que não quer saber das consequências dos seus actos. 

Nem mesmo ver as dificuldades por que passa hoje João Rendeiro, que passou do luxo para o lixo, parece ser suficiente para pelo menos um rebate de consciência.

Viver em liberdade não é dizer tudo o que vem à cabeça, sem filtro ou educação. A liberdade em democracia é para ser utilizada com responsabilidade. O Futebol está preso nas suas trafulhices e o País tem medo de as desmontar com responsabilidade (não desta maneira de colocar todo o tipo de escutas no espaço público, para alimentar um certo voyeurismo mediático). E assim parece existir uma espécie de pacto entre o Futebol-trafulha e o País-trafulha. E como se consegue isso? Retirar palco aos trafulhas e eleger políticos que nos governem sem se governarem.

É pena que, chegados a este ponto, a comunidade possa achar isto demasiado romântico e tarefa impossível. Está tudo nas lideranças. No Futebol/Desporto e no País. É tempo de acabar com este ‘regime da trafulhice’.

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