Pedro mudou de cidade para fugir à homofobia. Cerca de 20 anos depois voltou a temer pela vida: "Quando dei por mim estava no hospital"

14 out 2022, 07:00
Capa Pedro Colaço (não usar)

"Os retrocessos nos direitos em vários países da União Europeia e o crescimento da extrema-direita no nosso país são sinais de alerta e de grande preocupação", diz Ana Aresta, da ILGA Portugal, que prevê um crescimento da intolerância para com a comunidade LGBTQIA+

“Desde criança que levo porrada”. Com os seus olhos azuis bem abertos, Pedro Colaço, 28 anos, fala com uma tranquilidade desconcertante da violência que sofreu mesmo antes de saber que era homossexual. Recorda o dia em que foi encurralado por um grupo de colegas da escola em Paredes. “Estava a fugir deles e implorei a uma funcionária para me abrir a porta de uma sala, onde me pudesse esconder. Um dos três veio atrás, pegou numa cadeira e começou a espancar-me com ela”. Descreve-o como “um autêntico filme de terror” ao qual todos assistiam sem nada fazer. A este episódio somavam-se as constantes rasteiras, os insultos diários, as vezes em que lhe roubavam as chaves de casa e lhe prendiam as mãos, impedindo-o de tocar à campainha para pedir ajuda. “As pessoas acham que estas coisas não acontecem, mas acontecem muito mais frequentemente do que imaginamos”, garante.

Pedro estudou em Penafiel até ao 4.º ano, e ainda antes de pensar sobre a sua orientação sexual já era vítima de agressões apenas por confraternizar com as raparigas. Foi então transferido para a Escola Básica de Paredes, onde ficou até ao 8.º, mas  os episódios de violência continuaram. Outra mudança, para Vila Nova de Gaia, no Porto, onde frequentou o ensino secundário, permitiu-lhe viver tranquilo por uns tempos. Mas o pesadelo voltou quando foi para a faculdade. Pedro levou quase uma década até encontrar um lugar no qual se sentisse minimamente aceite. Mas houve também outra mudança, interior: recusa-se agora a ser outra pessoa que não ele próprio, com o seu estilo irreverente, gender fluid (pessoa que não se identifica com um género em específico), as peças de roupa minuciosamente conjugadas, o habitual lenço na cabeça – raramente abdica deste – e um tom particularmente jocoso.

“Acabei por perceber que sempre senti muita necessidade de aprovação, derivada das minhas inseguranças e baixa autoestima”, explica. “Hoje em dia já é muito diferente. Já me sinto um bocado mais normal.” E as redes sociais tiveram um papel importante, conta, como um lugar onde se pode expressar mais livremente.

Aos 28 anos, Pedro assume-se como gay, mas não se identifica nem com o género masculino nem com o feminino. Considera-se gender fluid. Foto: DR

“Todos fecharam os olhos”

Em casa, o apoio que Pedro sentia “era muito escasso”, tendo sido inclusivamente acusado de ser egoísta. Sem entrar em detalhes, conta apenas que “todos fecharam os olhos” ao seu sofrimento. “Fui castigado por ser assim”. Na escola, no meio dos encontrões e dos olhares sentenciosos, conheceu a sua primeira grande amiga: Marina Cruz.

“Ele tinha acabado de chegar à turma e lembro-me que, desde logo, as pessoas riam-se dele, provavelmente porque já na altura tinha uns gostos e uns gestos que não consideravam muito masculinos”, explica a antiga colega, agora com 27 anos. Marina não o via assim. Descreve-o como uma pessoa “extremamente bondosa e talentosa”. Conheceram-se no 4.º ano, no primeiro dia de Pedro na Escola Básica de Paredes, e rapidamente perceberam que tinham interesses em comum. Eram ambos bastante faladores e apaixonados por banda desenhada. Tornaram-se inseparáveis.

“Eu gostava muito dos desenhos dele, sempre foi muito criativo.” Passavam dias inteiros juntos e sonhavam com uma casa de campo à venda nas redondezas, onde as famílias dos dois pudessem viver em harmonia. Mas, quatro anos mais tarde, Pedro voltou a mudar de escola e os seus caminhos separaram-se.

Quando chegou ao 4.º ano, muitos achavam que Pedro "era diferente", recorda Marina. Foto: DR

Ainda hoje, Marina não consegue compreender as razões que levaram os colegas a tratar mal o seu melhor amigo. Muitas vezes, ela própria punha-se à frente dele para o defender. “Ele não devia ser agredido, não fazia sentido nenhum, só por ser como é.” Ainda que nunca tenha presenciado agressões físicas, encontrava-o transtornado com frequência. Uma vez, um rapaz mais velho da mesma escola ameaçou-o com uma faca num supermercado. Pedro tinha cerca de 11 anos. O medo impedia-o de pedir ajuda.

Ele “defendia-se à maneira dele”, lembra Marina, que lhe elogia a coragem. “Como as agressões eram de pessoas de outras turmas, os nossos professores não faziam nada”. E aqueles que não o agrediam eram coniventes.

“Por vezes, faltam-nos referências

À medida que foi crescendo, o estilo de Pedro começou, gradualmente, a ir ao encontro dos seus gostos. Tornou-se mais autónomo e começou a falar em mudar de cidade. Paredes era um meio “demasiado pequeno” para si. Fez trabalhos como modelo. Foi pouco antes de mudar de cidade que se assumiu a Marina como homossexual. A amiga já suspeitava.

Os projetos na área da moda ajudaram o jovem a tornar-se mais autónomo

Em Gaia, a partir do 9.º ano de escolaridade, Pedro teve uma oportunidade para começar do zero com pessoas com as quais se identificava. Ingressou numa escola de artes e conheceu aqueles que acabaram por conquistar um papel “quase familiar” na sua vida, amizades que mantém até hoje. “Deram-me a mão. Muitas delas tiveram histórias complicadas, outras não”, relata. Através delas, pôde, pela primeira vez, ver o funcionamento de uma família “equilibrada”. “Nós sabemos como é, mas, por vezes, faltam-nos referências”, explica.

O contacto com Marina foi diminuindo, mas a amizade não. Sempre que conversam, “é como se não tivesse passado tempo nenhum”, diz a amiga, que viu Pedro, finalmente, a “sentir-se muito melhor”.

A tríade da discriminação

“Insulto, invisibilidade e isolamento”, são estes os três i’s que dão forma à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+. Quem o diz é Tiago Castro, psicólogo do projeto Centro Gis, da Associação Plano i, no Porto. “Estas pessoas estão sujeitas a um conjunto de agressões” que começam com insultos como “paneleiro”, “bicha”, “fufa”, “traveca”. “Têm um impacto grande porque incidem sobre a questão da identidade pessoal”, explica Tiago. “As vítimas destes insultos crescem a ouvir muitas vezes que aquilo que são é errado, pecado, nojento ou promíscuo”.  Por consequência, escondem-se com medo de represálias, ou chegam a pensar que aquilo que são ou que sentem é algo negativo - a chamada “homofobia ou transfobia internalizada” que acontece quando as próprias pessoas não se aceitam como são. Este estigma pode ter graves repercussões do ponto de vista da saúde mental. Alguns dos problemas recorrentes passam por “quadros depressivos, de ansiedade, tendências suicidas e automutilação”.

O especialista lembra que as pessoas LGBTI crescem numa sociedade que continua a ser “hétero e cisnormativa”, isto é, enquadrada na ideia padronizada de que todas as pessoas se devem identificar como heterossexuais e com o género que lhes foi atribuído à nascença. “Se tivermos na família um rapaz de 14 ou 15 anos, nós temos a tendência natural de perguntar se já tem namorada. E este viés coloca as pessoas LGBTI num quadro de invisibilidade pela falta de referências de modelos positivos”.

Por último, o isolamento, vem com a “falta de apoio que muitas vezes existe” e leva, ele próprio, a que muitas vezes as vítimas se isolem cada vez mais.

De acordo com os relatórios do Observatório da Discriminação da ILGA Portugal, o número de denúncias feitas pelas próprias vítimas tem vindo a aumentar nos últimos anos . Ana Aresta, presidente da direção da ILGA Portugal, esclarece que os dados de 2020 e 2021 ainda estão em tratamento, mas prevê uma nova subida devido ao "avanço e normalização do discurso de ódio e legitimação de visões políticas anti-LGBTI".

A organização registou um número decrescente de denúncias entre 2017, quando receberam 188 queixas, e 2019, ano em que registaram 171. São números que, acredita Ana Aresta, “representam de forma muito parcial a realidade nacional, díspar nas oportunidades de acesso a informação fidedigna, apoio, profissionais com formação adequada, redes de suporte LGBTI+, e muitos outros recursos que frequentemente escasseiam”.

Todas as denúncias correspondem a episódios de preconceito, discriminação e violência em função da orientação sexual, identidade de género, expressão de género ou características sexuais, reais ou presumidas, das vítimas. Agressões verbais, sobretudo presenciais, são as ocorrências mais frequentes, seguidas do bullying, agressões físicas, discriminação no acesso a bens e serviços e violência doméstica.

Não há dados oficiais deste tipo de agressões, o que dificulta o conhecimento da verdadeira dimensão deste fenómeno em Portugal. Apesar de ser possível apresentar queixa de uma situação de homofobia ou transfobia junto das forças de segurança, a motivação subjacente à prática do crime não é registada.

Demasiadas testemunhas

Nos anos seguintes, as coisas pareciam encarreirar-se razoavelmente. Ainda havia olhares e comentários desagradáveis, mas as agressões físicas pareciam ter acabado. Mas, no dia 25 de julho de 2019, os antigos medos voltaram. Pedro estudava na Escola Superior de Artes e Design (ESAD), nas Caldas da Rainha. Eram 15 horas, o dia ainda ia a meio, e estava a caminho, com um amigo, da padaria Forno do Beco quando ouviu uma voz escarnecer: “aqueles ali são dos teus”. As gargalhadas vinham de uma das mesas do restaurante ao lado.

Imediatamente, Pedro pensou: “eu não vou sofrer isto outra vez, a esta hora, em frente a uma esplanada cheia de pessoas”. Não se lembra quantos homens eram, mas diz que aparentavam ter entre os 30 e os 50 anos. Enxotaram-no a si e ao amigo, como se se tratassem de animais. Pedro não resistiu a responder e rapidamente estava metido numa discussão acesa. Ameaçou chamar a polícia e preparava-se para ir embora quando foi agredido.

“Quando dei por mim, estava no chão e acabei no hospital”, relata. “Atiraram-me contra uma esquina de granito, e, do nada, estou a receber pontapés de, pelo menos, três pessoas”. As funcionárias da padaria intervieram mas não conseguiram evitar os ferimentos. O jovem escondeu-se num oculista a poucos metros dali. Só se apercebeu do estado em que se encontrava quando se viu ao espelho. “Isto não acabou de acontecer”, pensou em choque. O corpo estremecia, mas uma dor mais forte recordou-o de traumas anteriores: todos tinham visto o que tinha acontecido, e pouco fizeram.

Fotografia registada alguns dias após a agressão

Teria escapado ileso se não tivesse reagido? "Talvez", admite, mas estaria a alimentar aquilo a que chama de “cultura do calado e do silêncio”, onde “é melhor não falar para não espoletar uma revolução”. Mas, para Pedro, a revolução é necessária. Por isso é que conta a sua história, depois de ter sofrido muitos anos em silêncio, tal como, acredita, acontece com muitas outras pessoas. “Muitos de nós – da comunidade LGBTQIA+ - acabamos por não o fazer mas é preciso vocalizarmos as coisas e dizermos que é real”.

Pedro pediu ajuda ao pai, que insistiu para que apresentasse queixa, e assim o fez. Um dos agressores foi identificado na hora, mas desde então não houve desenvolvimentos. “Recebi uma carta a dizer que não havia provas de como ele me tinha agredido", lamenta. Ficou com uma lesão na perna que levou cerca de três meses a recuperar, mas desistiu de esperar pela justiça. “As pessoas que não querem denunciar estão no direito delas, e eu consigo compreender de onde isso vem.”

“Isto não acaba”, continua em tom de desabafo. “Quanto mais velho fico, mais a sociedade me vê como um predador gay”. Se há anos atrás a sua idade aligeirava os comentários, hoje em dia há quem o chame “pedófilo”. 

“Retrocessos dos direitos e crescimento da extrema-direita são sinais de alerta”

Estará a haver uma regressão em termos de tolerância? Ana Aresta, da ILGA Portugal, afirma que até 2020 havia motivos para otimismo no que concerne à diminuição da discriminação no país. De acordo com o 2.º Inquérito LGBTI da Agência para os Direitos Fundamentais da União Europeia, realizado nesse ano, 68% das pessoas LGBTI inquiridas em Portugal afirmavam que o preconceito e a intolerância tinham diminuído nos últimos cinco anos, e 56% acreditavam que o governo tinha tido um papel positivo neste âmbito. No entanto, apenas 14% das vítimas de ataques físicos ou sexuais afirmaram ter apresentado denúncia à polícia, e apenas 8% denunciaram a discriminação junto da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género ou outro organismo nacional. Dados que ainda estão a ser trabalhados poderão confirmar se esta perceção se mantém ou não, mas Ana Aresta salienta que "os retrocessos nos direitos em vários países da União Europeia e o crescimento da extrema-direita no nosso país são sinais de alerta e de grande preocupação".

Outro ponto que não deixa indiferente a representante da ILGA foram as notícias e artigos de opinião que surgiram a propósito da campanha ABCLGBTQIA+ da Fox Life, em meados de julho e que acusa de desvalorizarem esta comunidade. Perante as discussões sobre a diferença entre "género" e "sexo" lançadas em vários jornais e nas redes sociais, Ana Aresta considera que maioria dos argumentos utilizados foram de "cariz transfóbico, falacioso e altamente atentório à dignidade", acrescentando que acabaram por contribuir para o aumento do medo e do silêncio dos quais estas pessoas se tentam libertar "há séculos".

Pedro Colaço acredita que a representação das pessoas LGBTI é "muito má", e que hoje em dia "funciona tudo por modas". "Claro que é importante que as pessoas queiram saber e falar, mas que saibam dar a voz a quem passa por isto", afirma. Pedro argumenta que os portugueses têm uma cultura "muito católica, inquisidora e homofóbica".

"É muito difícil quando, no mundo inteiro, ou pelo menos à tua volta, não tens uma única pessoa que te diga que sim, és normal", lamenta. Hoje, Pedro mora no Porto junto daqueles que lhe são mais próximos. Frequenta a terapia há vários anos. Depois de tudo por que passou, Pedro já aceitou a sua normalidade. Sente-se "um privilegiado". 

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