Nunca tantas pessoas se quiseram divorciar

31 dez 2021, 22:03
Amor

Os números dos divórcios ainda não subiram, mas vão aumentar. E o confinamento foi “a gota que fez entornar o copo”. Nunca tantas pessoas procuraram ajuda de psicólogos e informações junto de advogados sobre os seus direitos. E porque ainda não se separaram? Falta de meios económicos. A pandemia desgastou relações e muitas não sobreviveram

Nos últimos meses, nunca tantas pessoas procuraram ajuda de psicólogos e informações junto de advogados sobre os seus direitos em caso de divórcio. Esta será uma das muitas consequências dos confinamentos, mas os problemas já existiam. A vida entre quatro paredes, 24 sobre 24 horas apenas terá precipitado fins anunciados. Os números oficiais sobre divórcios, do Ministério da Justiça, a que a CNN Portugal teve acesso, ainda não espelham esta realidade e a explicação, segundo os especialistas na área, é simples: falta de dinheiro. Falámos também com alguém que, não sendo casada, se separou durante a pandemia e nos fez um retrato de uma relação que se desmoronou.

“Em termos de informação, de consulta de aconselhamento, isso aumentou exponencialmente, sem dúvida nenhuma”, afirma à CNN Portugal a advogada Eduarda Proença de Carvalho. “Eu tenho tido pedidos diários de consulta. Antes não era assim. Antes havia um pedido de consulta de tantos em tantos tempos”, acrescenta.

Rute Agulhas, psicóloga na área da terapia familiar há mais de 20 anos assume que se vivem dias de rutura entre muitos casais:

“O que é que eu sinto e sei que não sou a única porque converso com outros colegas da área… temos muitos casais que já tomaram esta decisão, muitos deles já no primeiro confinamento. É uma decisão que está clara, que está assumida, mas depois não têm condições materiais, económicas, logísticas de operacionalizar a separação.”

Eduarda Proença de Carvalho admite como provável que os números oficiais de divórcio não expressem a efetiva vontade dos casais e explica que os pedidos que lhe chegam ao escritório de advogados procuram “no fundo, explicar os direitos, os deveres, o que é que pode acontecer, o que é que não pode acontecer, a demora, a situação final das pessoas no caso de dar esse passo” e, acrescenta que se há dez anos o maior problema dos casais eram os filhos, “a decisão final, hoje em dia, está muito dependente da parte financeira das pessoas”.

Além disso, os números não englobam outra realidade: um divórcio implica a existência de um casamento e há cada vez mais casais a viver em União de Facto. Ou seja, oficialmente não existem dados sobre estas separações.

Segundo números avançados à CNN Portugal pelo Ministério da Justiça, em 2021, até ao mês de setembro, concretizaram-se 9633 divórcios. Comparando este valor com os anos de 2019 e 2020, sem esquecer que em 2020 tivemos três meses confinados e o mesmo se repetiu já em 2021, os números não são muito diferentes. Na verdade, com base nos números do Ministério da Justiça, o ano de 2019, parece se destacar no número de separações com 15947. Em 2020 foram 13428.

DADOS IRN

mês 2019 2020 2021
janeiro 1651 1524 875 **
fevereiro 1328 1299 546 **
março 1368 744 * 934 **
abril 1132 181 * 1269
maio 1518 912 * 1342
junho 1164 1335 1236
julho 1502 1502 1186
agosto 908 1007 901
setembro 1217 1353 1344
outubro 1626 1389 ----
novembro 1409 1232 ----
dezembro 1124 950 ----
total 15947 13428 9633

* primeiro confinamento

** segundo confinamento

Separados mas juntos

A pressão das quatro paredes, a distância das redes de apoio, fossem amigos ou família. O nenhum momento a sós. “Tive alguns casais que durante o confinamento me diziam que, por exemplo, às vezes, iam para o carro. Um deles ia para o carro. Sozinho, sossegado e o carro não ia para lado nenhum”, conta Rute Agulhas que assume também ter tido muitas sessões dessa forma, porque era a única maneira das pessoas estarem sozinhas.

Apesar dos divórcios não estarem oficializados em papel, muitos já o assumem no dia-a-dia, mesmo que de forma impensável para alguns:

“Dividem as rotinas com os filhos, todos na mesma casa, mas este fim de semana é teu, este fim de semana é meu. Ou, tu tratas do almoço e eu trato do jantar. Dormem em quartos separados, etc. Há aqui uma divisão das rotinas e, na medida do possível, do espaço. Mas estão todos juntos. Claro que isto é uma situação de um stress inimaginável, para os pais, para as crianças”, explica a psicóloga.

Nos últimos meses, Rute Agulhas também encontrou casos de um membro do casal ir para casa dos pais e o outro ficar na casa da família, sem avançarem de forma oficial: “Não o avançam com o processo judicial, por causa dos custos económicos inerentes”.

Um aparente contrassenso de viver juntos e estar separado ao mesmo tempo. “Se há 1% da população portuguesa que tem capacidade financeira para poder arrendar ou adquirir uma casa, por exemplo, porque a separação leva a essa situação, os outros 99% não têm. (…) Portanto, as pessoas acabam por se acomodar à situação, gerindo-a com danos emocionais gigantescos para todos”, considera Eduarda Proença de Carvalho.

Mas a CNN Portugal teve ainda acesso, em exclusivo, ao número de processos de "divórcio por mútuo consentimento", "divórcio sem o consentimento do outro cônjuge" e a "conversão de separação em divórcio" que deram entrada nos tribunais nacionais no primeiro trimestre de 2021. E o valor segue a mesma linha de anos anteriores, com 1588 processos.

Ao todo, em 2020 deram entrada nos tribunais 6846 processos de divórcio e, em 2019, 8159 processos.

QUADRO - PROCESSOS EM TRIBUNAL

    2021 (1º Trimestre)     2020     2019     2018  
  Entrados Findos Pendentes Entrados Findos Pendentes Entrados Findos Pendentes Entrados Findos Pendentes
Divórcios 1 588 1 421 3 709 6 846 6 707 3 542 8 159 8 280 3 403 7 997 8 307 3 524

Culpa do confinamento?

Rute Agulhas não considera que a culpa das separações seja dos confinamentos:

“A pandemia não é a causa destas separações ou destes divórcios, a pandemia parece ter precipitado. É a gota que fez entornar o copo, mas o copo não estava vazio. Estamos a falar de casais que quando olhamos para trás e fazemos o historial, e às vezes os próprios casais nos conseguem reconhecer isso, já não estavam bem”, diz a psicóloga.

E esta ideia é partilha por Eduarda Proença de Carvalho: “Eu não acho que nenhuma destas situações que eu tenho visto não tinha ‘um para trás’. Quando não há um ‘para trás’, estas situações, às vezes até unem, mas é preciso haver um passado limpo entre as pessoas, em que não haja já algum conflito latente”. 

Sobre uma possível subida dos números do divórcio, a advogada escusa fazer conjeturas, mas admite que devido à experiência dos seus “25 ou 26 anos nesta área” deixou de ter “aquela visão bonita da relação que, depois que passa um mau bocado, melhora muito” porque “são casos raros”.

Ainda durante o segundo confinamento, Rute Agulhas quis perceber o impacto da pandemia na vida dos casais e fez um questionário online que contou com cerca de 600 participantes. A psicóloga ressalva que encontrou casais que lidaram bem com a situação:

“De uma maneira geral quem faz um balanço mais positivo do confinamento são casais mais velhos, com mais tempo de relação e com filhos mais velhos.”

Mas depois havia o outro extremo. Os que tinham encarado o confinamento e a situação pandémica, “como uma ameaça, uma perda”. E foi nestes casos que Rute Agulhas encontrou os problemas. Os casais que estavam “muito centrados na ameaça e na perda, referem muito o peso das rotinas diárias. Cuidar dos filhos, nomeadamente os filhos mais novos que são mais dependentes, a monotonia” e depois associavam isso “à ansiedade, ao stress, frustração, tensão, impaciência, a muita irritabilidade”.

E os filhos?

Enquanto os pais procuram caminhos ou escolhem caminhos sinuosos, os filhos sentem-se perdidos. A experiência de décadas na área do direito da família permite a Eduarda Proença de Carvalho deixar um alerta aos pais:

“Os miúdos sofrem, têm as dores normais de uma separação dos pais, têm a sua tristeza. Mas se não virem guerras, se não virem insultos, se não virem um contra o outro, não sofrem aquilo que muitas vezes as pessoas pensam. O grande sofrimento que traz aos miúdos é o litigio, a guerra dos pais e colocarem-nos dentro dessa guerra.”

E este é um alerta ainda mais reforçado pela psicóloga Rute Agulhas: “Temos também muitas crianças e jovens com muitas dificuldades, neste momento, de ajustamento. Foi não só o confinamento, a telescola, a ausência dos amigos, a ausência das rotinas, das atividades. É depois pensar que estes miúdos ficaram em casa, num contexto de conflito, durante meses e meses”.

E o aumento de pedidos de ajuda aos mais novos já se faz notar:

“Temos também aqui muitos pedidos de ajuda para crianças e jovens, que começam, de facto, a exibir um quadro de muitas alterações ao nível da psicopatologia, sintomatologia também ansiosa, depressiva. Alterações de rendimento escolar, adolescentes com comportamentos mais desafiantes, até auto lesivos. Tudo isto, neste contexto de conflito que tem vindo a escalar, com algumas situações de violência física emocional.”


Considerando que existe um elevado número de Uniões de Facto, a CNN Portugal quis também saber o número de “processos autónomos de regulação das responsabilidades parentais por mútuo acordo (interpostos sem conexão com um processo de divórcio), requeridos junto das conservatórias. Ou seja, não passaram pelos tribunais. E os dados são do Ministério da Justiça.

QUADRO IRN

  2019 2020 2021
Regulação das responsabilidades parentais por mútuo acordo 3473 3295 3189 *

* até setembro de 2021

Em 2019 o número foi de 3473; em 2020 o valor foi de 3295 e, por fim, até setembro de 2021, o número chegou aos 3189.
Quanto aos processos de responsabilidades parentais/poder paternal que deram entrada nos tribunais, no primeiro trimestre de 2021, e que incluem a regulação, o incumprimento, a alteração e a inibição das responsabilidades parentais/poder paternal, foram abertos 8177 processos.

Mesmo que os números ainda escondam a realidade que os profissionais veem todos os dias. Mesmo que o lado burocrático ainda não exista, “a intenção está lá”, lembra Eduarda Proença de Carvalho.

“Se um dia tiverem essa possibilidade vão, porque já desistiram daquilo. Mesmo que se mantenham, já desistiram daquela relação”, conclui.
 

"Empurrou-nos" para uma situação de muitas mudanças , muitas adaptações pessoais

Joana tem 37 anos e não faz parte das estatísticas. Não era casada, mas vivia com o ex-companheiro. A relação de ano e meio não sobreviveu à pandemia e às suas consequências. Aceitou contar à CNN Portugal o que viveu nos últimos tempos.

"Nós vivíamos juntos e, devido à situação da crise que se instalou derivada da pandemia, o meu ex-companheiro foi despedido. Vivíamos num apartamento alugado. Eu era freelancer, pelo que podia trabalhar em qualquer lugar. Ele contraiu Covid e chegamos a ficar um mês completamente confinados."

Escapou ao vírus, mas não conseguiu escapar à necessidade de deixar o apartamento. Só um estava a trabalhar: "Empurrou-nos para uma situação de muitas mudanças, muitas adaptações pessoais", explica.

"Depois do despedimento, tivemos de regressar a casa dos pais. Basicamente vivíamos períodos em casa dos pais um do outro. Isso desgastou completamente a relação, que já tinha os seus problemas", assume. Mesmo assim reconhece que "as relações familiares começaram a interferir de uma forma muito intensa" entre os dois. 

O mundo como o conheciam enquanto casal mudou de forma drástica: "Tivemos de nos adaptar a dinâmicas muito diferentes, em que não era o nosso 'meio'". Já não havia um espaço dos dois, um tempo só a dois.

As dificuldades foram muitas e o ex-companheiro "não soube lidar com o facto de ter de voltar a casa". Na verdade, Joana também teve problemas em gerir a pandemia. Apesar de estar habituada a estar em casa, como freelancer, arranjou um trabalho fora e continuou a viver com os pais.

O afastamento físico colocou a relação em "rutura iminente". Joana estava mais ocupada com o novo trabalho e, por isso, mais "distante". Talvez sentindo-se mais sozinho, o ex-companheiro "procurou ou refugiou-se em relações virtuais". No passado, esse problema já tinha existido, mas tinha sido superado. Pensava Joana: "Foi a gota final".

Depois de terminar a relação, Joana conseguiu arranjar um espaço só para ela. Apesar de não querer "culpar" a pandemia, porque já haveriam problemas entre os dois, não tem dúvidas que "foi determinante para que as coisas tivessem terminado da forma como terminaram".

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