opinião
Psicólogo e Presidente do Conselho de Especialidade de Psicologia Clínica e da Saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses

O Psicólogo Responde: O medo da Covid-19 tornou-se patológico?

19 fev 2022, 09:00
Covid-19: uma pandemia que parou o mundo

Esta questão encerra, em sim mesma, três dimensões diversas que merecem ser refletidas. Em primeiro lugar o significado de patológico neste contexto. Em segundo lugar, se o medo será uma boa resposta perante uma pandemia como aquela que atravessamos? Finalmente, caso o medo possa ser adequado, quando e porquê se tornaria patológico.

Começando pela primeira ideia o significado de patologia encaminha para o estudo e compreensão das doenças. Mas que doenças? Que o medo pode provocar doença, independentemente da sua causa, não existem dúvidas. Se as perturbações de ansiedade ou do stress parecem as patologias mais óbvias, acrescentaria que o medo pode provocar, ou pelo menos contribuir, para o aparecimento de muitas outras doenças. O medo, como emoção, é eminentemente uma reação fisiológica de preparação do corpo para reagir a uma situação perigosa. Alguém que viva exposto ao medo de uma forma sistemática terá, necessariamente, consequências.

Mas, sendo esta uma questão colocada a um psicólogo e não a um médico, suspeito que o termo patológico assuma aqui um significado distinto, provavelmente mais relacionado com o mau estar e a perturbação, e não necessariamente com o aparecimento de esta ou aquela doença. O que estará em causa, e o que vou tentar responder, é se o medo da COVID-19, sendo natural e compreensível, pode com o tempo levar a perturbar ou a causar mau estar às pessoas.

Comece-se então por tentar responder à segunda dimensão: será que o medo seria, à partida, a melhor resposta a uma situação pandémica? Claramente não, ainda que, como já referido, seja natural e compreensível ter medo nestas circunstâncias. Desde o início desta pandemia que se disse, vezes sem conta, que o grande objetivo de todos e de cada um seria evitar a infeção para proteger a sociedade como um todo. Deste modo, procurou-se evitar que a COVID-19 assumisse uma tal dimensão que implicasse o não funcionamento dos cuidados de saúde e levasse ao caos social. O medo, não poucas vezes, sobretudo se intenso, leva a pessoa a desencadear atitudes mais extremas e por isso menos equilibradas, com as consequências pessoais e, neste caso sociais, decorrentes. Neste ponto, será importante distinguir medo, como emoção, de perceção de risco, que terá uma dimensão bem mais cognitiva, baseada no conhecimento (que admitamos no início era insipiente) que se pode adquirir sobre o vírus e sobre a doença que provoca.

Na verdade, quanto menos conhecimento se tem sobre alguma ameaça, maior será o medo que a pessoa sente, o que não ajuda a pessoa a decidir de uma forma consciente e responsável. Foi notório que o medo foi elevado no início da pandemia e que isso levou as pessoas a reagir. Nessa altura, o medo parece ter ajudado. Se a maioria, felizmente, se protegeu, uma minoria criou teorias, conhecidas como da “conspiração”, como forma de procurar proteção para esse mesmo medo. A vida das pessoas mudou muito, de uma forma brusca, e assim se manteve durante demasiado tempo, com consequências óbvias ao nível do bem-estar, facto que também contribui para ao aumento da patologia. Contudo, e porque a resiliência das pessoas é de facto notável, a maioria foi conseguindo reagir e ajustar-se à desadaptação do dia a dia. Para tal, foi importante, em primeiro lugar, compreender o medo como uma reação normal nestas circunstâncias. Deste modo, o medo pôde funcionar como um motivador para a procura de informação, ainda que de uma forma não obsessiva. Terá sido igualmente importante manter o foco nas dimensões possíveis de controlar (desinfeção das mãos, uso da máscara, distanciamento físico, etc.) e que dependem do próprio. Não deixar de fazer planos dentro das limitações existentes e manter-se ligado aos outros terão sido outros fatores protetores relevantes. Deste modo, mais facilmente o medo se normaliza e deixa de ter um impacto tão negativo.

Por fim, não sendo o medo a melhor resposta, mas sendo natural e difícil de evitar, quando se tornará patológico? Na verdade, o medo poderá não ter consequências negativas, leia-se patológicas, exceto em duas circunstâncias mais extremas: (1) se a pessoa combater o medo adotando uma postura de negação, através da adoção de teorias “certas e absolutas”. Estas implicam, normalmente, uma resposta de salvação, colocando a pessoa acima dos outros e por isso mais segura; (2) se a pessoa se focar no medo e adotar comportamentos exagerados que visam não a proteção sobre a infeção pelo vírus, mas sim a proteção sobre a sensação de medo. Dito de outro modo, a pessoa começa a agir na procura da sensação de segurança que nunca vai ser total, o que implicará a entrada num ciclo negativo em que o medo se torna o motivador e não a pandemia. A pessoa já não se está a proteger da pandemia, mas vive focada no medo e na adoção de comportamentos que o permitam controlar, pelo que o medo se torna no seu principal motivador.

Se a negação poderá resultar como proteção em relação ao medo, ainda que à custa de comportamentos que podem chegar a ser anti-sociais, já o foco no medo da COVID-19 pode assumir características patológicas. O desgaste físico, a excessiva limitação de relacionamentos sociais e a perda de rotinas positivas abrem portas a problemas de saúde mental, nomeadamente relacionados com as perturbações emocionais. Mas podem também construir-se modificações mais estruturais na pessoa, como uma maior cristalização dos comportamentos, com julgamentos morais e atitudes sociais menos inclusivas e com menor tolerância às diferenças e aos “diferentes”, como forma intuitiva de proteção em relação à infeção. A ameaça está deste modo ligada à rejeição dos outros, pelo menos dos “mais diferentes”, a partir da crença de que o mundo é perigoso.

Mais do que pensar na patologia do medo, importa por isso pensar nas consequências do medo da patologia e promover uma compreensão do ser-humano mais integradora de toda a sua enorme complexidade e particularidade. Depois de resolver esta catástrofe global, a preocupação do mundo deverá focar-se no individual e na enorme diversidade de consequências e reações associadas, diminuindo a probabilidade de que o “medo da pandemia” se transforme em um “medo do outro”.

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