Folhetim de voto: De que serve limpar o chão com Ventura, se tudo é lama?

13 jan 2022, 07:03

Foi preciso alguém descer à tasca onde Ventura faz política para o desfazer num debate. Pelo meio de insultos, “Chicão” desmontou a retórica odiosa de Ventura e tentou resgatar a tradição democrata-cristã do CDS. Mas do embate sobrou pouco mais do que lama, escreve o jornalista de política Filipe Santos Costa na coluna diária de análise e opinião à campanha. Faltam 18 dias para as eleições

Sondagem. Em dia de frente-a-frente decisivo entre António Costa e Rui Rio, a sondagem CNN/TVI dá o tom. Há um mês havia empate técnico no estudo realizado pela Pitagórica, embora com vantagem para o PS, mas a situação evoluiu ainda mais a favor dos socialistas. Com 39,6% das intenções de voto, o PS quase duplica o avanço em relação ao PSD e fica acima do resultado de 2019. O PSD também melhora em relação às últimas legislativas, mas os 30% deixam o partido de Rui Rio bem longe da vitória. 

Apesar do desgaste da governação e do psicodrama do chumbo do OE, a esquerda aguenta posições e reune, no total, 52,9% das intenções de voto (contando com o PAN). A direita fica-se pelos 42,3%, apesar do forte crescimento da IL e do Chega em comparação com 2019. O Chega multiplica por cinco o resultado de há 3 anos, mas fica longe da fasquia prometida por Ventura; quanto à IL, com menos alarido e menos atenção mediática, quadriplica o resultado anterior.

 

Duelo. Costa chega ao frente-a-frente desta noite, organizado por TVI, SIC e RTP, com o conforto de manter-se à frente das intenções de voto e, segundo este estudo, ter invertido a progressiva aproximação do PSD. E Rio com uma sondagem que trava a fundo a tendência de crescimento, embora moderado, dos sociais-democratas. Como o trabalho de campo foi feito até dia 9, apanhando a primeira semana de debates, é possível que estes dados já reflitam as prestações televisivas dos vários líderes, o que pode justificar a perda de balanço por parte de Rui Rio.

Mas há, nestes resultados, um problema a que Costa não poderá fugir esta noite: não há nem cheiro de maioria absoluta. Ou seja, o líder socialista estará cada vez mais pressionado a explicar como conseguirá a “estabilidade” que pôs no centro do seu discurso se não conseguir governar sozinho e se não quer voltar a procurar entendimentos com BE e PCP.

 

Lama. Registe-se a data: 12 de janeiro de 2022 foi o dia em que André Ventura foi desfeito, em direto e a cores, num debate televisivo. Corrijo: numa luta na lama. Do género vale-tudo-menos-arrancar-olhos, numa tasca soturna e fétida. É claro que, para que isso acontecesse, alguém teve de descer à tasca onde André Ventura faz política, no meio de lama e porcaria. Francisco Rodrigues dos Santos foi o voluntário. Talvez voluntário à força, impelido pela ameaça de desaparecimento do seu partido. Mas não pareceu nada contrariado na tarefa, note-se. 

Não é possível enfrentar André Ventura numa luta corpo a corpo sem se sujar. É como dizia o velho George Bernard Shaw numa das suas metáforas mais famosas: “Nunca lutes com um porco. Ficas sujo e, ainda por cima, o porco gosta.” Chicão sujou-se, mas ontem duvido que o oponente tenha gostado. Rodrigues dos Santos acabou ao frente-a-frente a limpar o chão com André Ventura. Isso só não se notou porque havia lama por todo o lado. 

Ventura. No debate entre o novo partido de extrema-direita que as sondagens dão a crescer e o velho partido da direita tradicional que as sondagens dão a encolher, ninguém escondeu ao que ia. À segunda frase, já André Ventura estava a atacar o oponente, por não ser “a verdadeira direita”. Demorou pouco a chegar ao soundbite que tinha preparado para este embate, acusando o CDS de ser a “direita mariquinhas”. Ventura vive numa fantasia marialva e homofóbica em que “mariquinhas” é o cúmulo do insulto e da degradação do adversário. Talvez por isso repetiu-o nove vezes (que eu tenha contado), com o mesmo ar de satisfação de um pré-adolescente a usar o mesmo epíteto. Sempre que lhe faltaram argumentos, voltava a esse insulto que lhe parecia dar conforto. 

A Isabel Moreira, aqui na CNN Portugal, explicou bem quão inaceitável é o recurso a essa expressão - mas Ventura quer isso mesmo: lançar alarvidades, acicatar instintos javardos, e provocar indignação.

Francisco Rodrigues dos Santos

Chicão. Rodrigues dos Santos também recorreu a artilharia pesada desde a primeira intervenção. Levava a lição preparada e sabia onde queria chegar: não apenas a denúncia da vacuidade e perigo das posições do Chega mas, também - e não menos importante - a demarcação do CDS, afirmando-se como o partido representante da democracia-cristã. Foi bastante clarificador, não só das fronteiras entre os dois partidos mais à direita, mas também como confirmação do terreno que Chicão escolheu para se posicionar. O CDS, que ao longo de toda a sua história foi espaço de convívio de democratas-cristãos, liberais, populares e conservadores clássicos na tradição inglesa, é hoje apenas a casa dos primeiros. Apesar da atuação pouco católica de Rodrigues dos Santos ontem.

“André Ventura não é de todo da minha direita. Eu hoje venho aqui marcar um espaço de integridade de uma direita democrata-cristã, que se funda nos valores da doutrina social da Igreja”, declarou o líder do CDS, desfiando, depois, um longo rosário de acusações a Ventura:

  • “Preside a uma interjeição, Chega!, que pode tanto defender posições de extrema-esquerda como posições de extrema-direita.”
  • “Votou favoravelmente 1 em cada 3 propostas da extrema-esquerda no Parlamento.”
  • “É um cata-vento do nosso sistema político, que está sempre do lado que lhe permite fazer mais barulho, através da berraria, da escandaleira, e da exploração do protesto de forma absolutamente incoerente.”
  • “É a caricatura da direita que interessa à esquerda, e um voto em André Ventura inviabiliza qualquer solução para termos uma nova maioria de direita no Parlamento.”
  • “O seu partido é uma interjeição, sem doutrina nem substância.”
  • “Só é contra a corrupção quando não é com os amigos dele [lembrando a proximidade a Luís Filipe Vieira].”
  • “Anda de braço dado com líder do Vox em Espanha, que apresenta cartazes a agregar Portugal a Espanha. Você é o líder da direita do ‘adeus pátria e família’.”
  • “Diz-se católico, critica constantemente a Igreja e o Papa Francisco.”
  • “Fala dos refugiados, mas Portugal nem preencheu as quotas de imigração para refugiados. André Ventura vive num mundo paralelo, exorciza os medos.”
  • “Nem sequer se preocupa, enquanto católico, a seguir a mensagem da própria igreja de que se diz fiel.”
  • “O homem da direita, o grande paladino que vem ensinar-nos todos a verdadeira direita, mete um cabeça de lista em Coimbra que vem das listas do BE, que apoiou Marisa Matias e que defende o aborto e a eutanásia.”

A lista de citações podia continuar, quase todas com o mérito de caraterizar Ventura com rigor e factualidade.

 

Vergonha alheia. Não foi um debate agradável de seguir. 

“Catavento!”

“Mariquinhas!”

“Anedótico!”

“Mariquinhas!”

Nalguns momentos, provocou o mesmo fascínio de ver um acidente a acontecer em direto. Noutros, provocou apenas vergonha alheia. 

“Humanista, nada!”

“Racista!”

“É tudo e o seu contrário!”

“Populista!”

“Mariquinhas!”

“Rei da bazófia!”

“Tem de crescer”

“Fanático!”

“Isto não é direita, isto não é nada!”

“Direita misógina, racista, xenófoba!”

“Mariquinhas!”

Houve diálogos embaraçosos, para dizer o mínimo, em particular quando Ventura se viu encurralado e se afundou no primarismo das suas reações. Dou dois exemplos (atenção, isto aconteceu mesmo).

 

FRS: “Você é o 4ª pastorinho de Fátima, escreveu isso no Facebook, e não tem noção do ridículo…”

AV: “Tens inveja, não? Tens inveja!...”

 

FRS: “O próprio Santo Padre diz que devemos abrir as portas para apoiar aqueles…”

AV: “Mete-os na tua casa! Mete-os na tua casa! Todos lá dentro da tua casa!”

 

Ultra-conservador. Tirando o eventual prazer para os apreciadores de desportos de full contact, alguém ganhou com o debate? Seguramente não André Ventura. Viu-se desarmado em boa parte das suas bandeiras, foi exposto pela fraude que é no seu catolicismo de pechisbeque, e viu-se a debitar insultos infantis perante um adversário que não teve medo de jogar o seu jogo. 

Quanto a “Chicão”, esmagou um adversário em debate - e não um adversário qualquer, mas aquele que lhe está a secar o partido. Mas terá conquistado votos? É uma dúvida legítima. Aposto que encantou os aficionados de touradas, depois de ter saído da arena televisiva com as duas orelhas e o rabo do oponente. Mas esses já eram votos em caixa. Na melhor das hipóteses, “Chicão” pode ter segurado eleitorado católico que se sinta encantado pelo messianismo de Ventura (isto, na hipótese - que diria remota - de essas pessoas terem aguentado os 25 minutos até ao fim). 

Num partido que está a sofrer uma sangria de votantes, estancar a sangria pode valer muito. Não haja dúvidas de que este CDS nada tem a ver com o partido do último quarto de século. Está muito mais à direita, e virou ultra-conservador. O CDS de Rodrigues dos Santos está a concretizar o sonho de José Ribeiro e Castro, um partido de contornos confessionais e com pose de forcado amador, fechado ao pluralismo das direitas e a qualquer sombra de cosmopolitismo. E não me espantarei se, sobrevivendo a estas eleições, se tornar uma cópia da ala evangélica do Partido Republicano. Talvez tenha dado ontem um passo importante para essa sobrevivência.

 

A frase. Numa coisa o CDS continua a ser igual: o partido dos soundbites. É uma escola, mas também aqui há dedo de Ribeiro e Castro. A melhor frase da noite, que se arrisca a ser uma das tiradas memoráveis da campanha, foi uma dessas frases criadas em laboratório, de que Chicão tanto gosta, dirigida a André Ventura: “Um esquadrão de cavalaria à desfilada na sua cabeça não esbarra com uma ideia.” Foi o momento em que o debate de tasca ganhou recorte literário. 

 

Elevação. Depois da chafurdice entre os líderes do CDS e do Chega, os outros dois debates do dia pareceram bálsamos. O confronto entre os representantes da IL e do Livre serviu para vincar posições e debater respostas radicalmente diferentes para problemas comuns - mas sabendo ambos que falavam para eleitorados que não se tocam. Facto que foi ainda mais evidente no frente-a-frente entre o PCP e o PSD, dois partidos com “um mar de divergências muito grande a separá-los”, como disse Rui Rio. O que não impediu um debate com respeito, elevação e simpatia recíproca. O contraste com o triste espetáculo da tarde não podia ser maior.

João Oliveira e Rui Rio

Prova. Frente a Rui Rio, João Oliveira superou com distinção a prova de substituir Jerónimo de Sousa num debate em representação do PCP. Esse era o principal atrativo de um embate em que os argumentos dos dois lados são bem conhecidos e irreconciliáveis. Apenas um fator unia João Oliveira e Rui Rio: a oposição ao PS - António Costa e o Governo estiveram sempre presentes no debate. Jerónimo de Sousa, quando enfrentou Costa, mostrou-se frágil, sem respostas e sem energia. Como teria sido diferente esse embate se fosse João Oliveira o comunista de serviço. 

Oliveira mostrou-se combativo, empático, bem preparado, com sentido de humor. Com a cartilha bem estudada e na ponta da língua, que nisso de ortodoxia o PCP não brinca. E com uma genuinidade que não se encontra em João Ferreira, a outra metade desta liderança bicéfala interina, enquanto Jerónimo de Sousa é operado e passa pelo período de convalescença.

 

Réplica. Sem disputar eleitorado comum, Rui Rio não se coibiu de elogiar a coerência do PCP, ainda que discordando em toda a linha das suas propostas. Foi útil para recentrar o PSD e piscar o olho ao eleitorado de centro-direita. E foi certeiro ao usar o PCP para fazer pontaria ao Governo. “Estou em total desacordo com aquilo que PCP pediu ao Governo, e se eu estivesse no governo não dava ao PCP aquilo que o PCP pediu. Agora, o Governo e António Costa, quando se meteram com PCP, sabem perfeitamente qual é a lógica de funcionamento do PCP, um partido coerente. Era expectável que o PCP pedisse o que pediu. [O PS] colocou-se na mão do Partido Comunista, não pode responsabilizar o Partido Comunista (…) a culpa é integralmente do Governo.”

Foi “a frase do debate”, segundo o seu interlocutor, e permitiu a melhor réplica de Oliveira. “Se as pessoas estão descontentes com o PS, porque não lhes resolveu problemas, e estavam a achar que iam encontrar no PSD alternativa, têm a resposta mais clara possível. Aumento de salários, reforço do SNS, aumento das pensões, resposta nas creches e na habitação, Rui Rio acabou de dizer que faria o mesmo que António Costa.”

Após o debate, os comentadores da CNN Portugal dividiram-se sobre quem teria vencido o debate, e no Expresso, o painel de análise aos debates dá um empate entre Rio e Oliveira. Nada mau, tendo em conta a derrota em toda a linha que Jerónimo sofreu há dias face a António Costa.

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