"Estou na enfermagem porque gosto, se fosse por dinheiro não estava"

26 nov 2021, 07:01
Hospital

Todos os anos saem das escolas quase três mil enfermeiros mas metade opta por emigrar. O desgaste da profissão e os ordenados baixos têm contribuído para a desvalorização da profissão

João Costa, 52 anos, enfermeiro no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra não tem problemas em dizê-lo: “Se não trabalhasse por turnos, se não fizesse muitas horas extraordinárias, se não fosse o subsídio de alimentação, isso tudo, não ganharia mais do que 900 euros por mês. Com isto tudo já podemos conseguir chegar à casa dos mil ou 1.100 euros. Mas com muito desgaste”. E, depois, como um lamento: “Tenho amigos noutras profissões que têm o 12º ano, fazem um horário normal, não se chateiam tanto e ganham muito mais”.

João era militar e foi assim que começou a trabalhar como socorrista no Hospital Militar de Coimbra. “Gostava do que fazia mas queria fazer outras coisas”, conta. Já não lhe bastava transportar as pessoas de maca, queria poder fazer algo mais por elas. Decidiu tirar o curso de enfermagem como trabalhador-estudante, acumulando horários e roubando horas ao sono para realizar um sonho antigo: “Gosto de cuidar, de ajudar as pessoas, de me sentir útil. Estou na enfermagem porque gosto, se fosse por dinheiro não estava”.

Entrou para a enfermagem em 1999, levou com os congelamentos da Troika, com as alterações à progressão na carreira, com uma pandemia: tem esperança que no início do próximo ano consiga, finalmente, recuperar algum do dinheiro que já lhe devia estar a ser pago. Mas confessa que o desânimo é grande e o cansaço acumula-se:

"A minha mulher também é enfermeira. Temos semanas em que mal nos vemos, só nos cruzamos. Temos um filho, que tem agora 14 anos. Quando ele era pequeno era muito complicado. Queríamos acompanhá-lo e não temos o apoio da retaguarda por parte dos pais, estão longe, tínhamos de nos revezar. Quando recebíamos as escalas, às vezes só mesmo no final do mês, era começar logo a fazer trocas. Ainda pensámos em ter outro filho mas andar aqui com estas confusões era uma loucura. E desistimos.”

Os últimos dois anos foram particularmente complicados, devido à covid-19: “No início demos o corpo ao manifesto, sem sabermos bem o que ia acontecer, fomos um bocado às cegas. Nós, os enfermeiros, estivemos na linha da frente e depois atuamos na vacinação. Houve colegas que foram contaminados. Em termos de horas extraordinárias também foi mais exigente. Havia muita falta de pessoal e passámos a trabalhar 12 horas seguidas. Foi muito desgastante”.

As horas extraordinárias, aliás, são uma constante. “A escala já prevê essas horas, dois, três, quatro turnos a mais numa escala normal. Nem poderia ser de outra forma porque não há gente suficiente. Podemos trabalhar no máximo 150 horas extraordinárias mas nós trabalhamos certamente muito mais. Não faço as contas, é o melhor.”

Uma carreira que não é valorizada

“As maiores queixas que os enfermeiros têm são sobre a falta de pessoal e a desvalorização da carreira”, confirma Elisabete Amoedo, 45 anos, enfermeira há 22 anos no Instituto Português de Oncologia. Uma coisa está ligada à outra, como é óbvio. 

A falta de enfermeiros no SNS existe, por um lado, devido à falta de abertura de concursos e às poucas contratações, mas, por outro lado, também porque cada vez há mais enfermeiros a saírem do Serviço Nacional de Saúde: para emigrarem, para irem para o privado ou, simplesmente, porque desistem da carreira, como explica Guadalupe Simões, do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP):

"Chegam cada vez mais testemunhos de colegas que abandonam a profissão. Vão fazer outras coisas, seja fazer bolos ou abrir pequenas empresas noutros ramos de atividade. O registo de pessoas que já abandonaram ou pretendem abandonar a profissão está a aumentar e isso é muito preocupante.”

O desgaste causado pela profissão aliado às dificuldades em progredir na carreira são os principais motivos apontados para esta desvalorização da enfermagem.

A carreira encontra-se organizada em três categorias: enfermeiro, enfermeiro especialista e enfermeiro gestor. A maioria dos profissionais encontra-se na primeira categoria, apenas cerca de 25% está na segunda categoria e um número muito reduzido (cerca de 2%) consegue chegar à terceira categoria. A progressão na carreira é lenta ou, em alguns casos, inexistente. 

“A situação no Serviço Nacional de Saúde tem se vindo a degradar ao longo dos anos. Existem  problemas estruturais, principalmente de suborçamentação, carência de recursos humanos, equipamentos degradados”, explica Guadalupe Simões.

No caso concreto dos enfermeiros, “continuamos a assistir a uma falta de expectativa de desenvolvimento profissional e salarial dos profissionais na sua generalidade, isto decorre das carreiras mas também de um sistema de avaliação de desempenho que diz que as pessoas só podem progredir de dez em dez anos. Na melhor das hipóteses, um enfermeiro quando tiver 100 anos pode atingir o topo da carreira. Depois, devido a todas as alterações que tem havido, temos enfermeiros com 25 anos de trabalho que continuam a ganhar a mesma coisa que enfermeiros que ingressam agora na carreira. Isto aumenta a desmotivação e a revolta.”

Entre as reivindicações da greve que esteve marcada (e foi depois cancelada) para o dia 4 de novembro e que uniu pela primeira vez os sete sindicatos do setor, estavam a integração no SNS dos enfermeiros que estão ao trabalho com contratos precários, a admissão de mais profissionais, a abertura de concursos para todas as categorias da carreira, a contagem de pontos para progressão aplicada da mesma maneira a todos os enfermeiros, independentemente do tipo de contrato. 

Um enfermeiro a fazer o trabalho de dois ou três

“O desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde tem sido muito grande de há muitos anos para cá. É o material que se degrada, são as instalações que se degradam e são as próprias pessoas que acabam por se degradar também, a nível profissional e pessoal”, conclui Elisabete Amoedo.

“Não há nenhum hospital que possa dizer: nós estamos muito bem, temos o rácio que devíamos ter. Isso já não existe há muitos anos, não é de agora, ao longo dos anos foi sempre piorando”, diz esta profissional. Isto significa que “uma pessoa tem de fazer o trabalho de duas ou três, o que é muito complicado”, explica.

"Nós tentamos sempre dar o nosso melhor só que uma pessoa não consegue fazer o trabalho de três, alguma coisa há de ficar menos bem ou fica por fazer, para os que vêm no turno seguinte. É uma loucura."

A falta de profissionais tem sido denunciada por vários responsáveis em diferentes instituições de saúde ao longo dos últimos meses. Há duas semanas, os enfermeiros do serviço de urgência do Hospital das Caldas da Rainha organizaram um protesto, denunciando "a escassez de enfermeiros no serviço que se encontra sobrelotado", fazendo, segundo o  delegado sindical do SEP, com que haja "uma média de 16 ou 17 doentes para cada profissional". Um rácio que impedia "a garantia de uma assistência em condições aos doentes", explicou na altura.

Mas esta poderia ser a descrição da situação de muitos outros serviços em muitos outros hospitais do SNS, um pouco por todo o país.

Perante este cenário, muitos enfermeiros procuram outras soluções.

Durante a pandemia estavam bloqueadas as saídas do SNS. Assim que terminou o estado de emergência saiu muita gente. Os privados vão abrindo hospitais e precisam de pessoas com experiência e com qualificação para trabalhar lá, onde é que vão buscar? Ao melhor sítio, ao SNS, onde nós temos a experiência e sabemos fazer”, explica Elisabete Amoedo.

“Nós tentamos nunca abandonar os doentes e é para eles que trabalhamos, sem dúvida nenhuma, mas depois é triste, como profissional, ver a desvalorização da carreira que tem havido, talvez de há uns 15 anos para cá”, lamenta a enfermeira. “Se fossem dadas condições, se as pessoas sentissem que eram valorizadas no SNS e se vissem que havia perspetivas de futuro, se calhar não saíam tanto.”

Emigrar é cada vez mais uma opção

De acordo com o último relatório “Health at a Glance”, Portugal tem 7,1 enfermeiros por mil habitantes - abaixo da média da OCDE que é de 8,8 enfermeiros por mil habitantes, muito abaixo de países como a Islândia (15,4), a Alemanha (13,9), os Estados Unidos (12,0),  a França (11,1), a Áustria (10,4) ou o Reino Unido (8,2).

Segundo a Ordem dos Enfermeiros (OE), “neste momento, existem 80.401 enfermeiros em Portugal, sendo que pelas novas inscrições anuais se percebe que, anualmente, saem perto de 3 mil novos enfermeiros das escolas”.

Desses, 49.727 trabalham no SNS - dizem-nos os dados do Portal da Transparência relativos a setembro deste ano. O número tem vindo a crescer - há seis anos eram 38.146 - mas não é suficiente. 

"Há vários anos que denunciamos essas situações de falta de enfermeiros, infelizmente não é novidade", admite a bastonária, Ana Rita Cavaco. "No caso dos enfermeiros, nós formamos exatamente os profissionais que precisamos, mas deixamos emigrar mais de metade", queixa-se a bastonária, criticando também a falta de valorização da carreira. "Os ordenados são baixos e não há perspetiva de carreira, de evolução, quando se tem mais anos de experiência ou se tem uma especialização", diz. "Lá fora existe esse reconhecimento da especialização e existe a perspetiva de uma evolução salarial."

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Afinal, Portugal é o quinto país da OCDE que pior paga aos enfermeiros, em paridade de poder de compra, a seguir à Eslováquia, Lituânia, Letónia e Hungria.

A nossa formação é excelente e em qualquer parte do mundo aceitam enfermeiros portugueses desde que dominem a língua do país”, sublinha Elisabete.

“Durante a pandemia nós demos uma boa resposta, apesar do desinvestimento e de tudo, ainda bem que temos o SNS, mal seria se não tivéssemos”, começa por dizer Elisabete Amoedo, elogiando todos os enfermeiros que estiveram na linha da frente do combate à covid e também todos os que participaram no esforço da vacinação.

“Mas fizeram-no sob pena de um cansaço extremo. Os meus colegas têm milhares de horas extraordinárias que não gozaram. Nós vamos dando este contributo e fazêmo-lo com gosto, com amor, com dedicação, mas depois no reverso da medalha não vemos nada. Isso é que custa. As pessoas não pagam as contas com palavras nem com palmadinhas nas costas. Se nem assim nos valorizam, quando é que vai ser?”

Para a enfermeira Elisabete, o cenário é negro: “O que vai acontecer a médio e longo prazo é que vão ficar tratamentos por serem feitos. Se não houver recursos humanos não se pode abrir as camas e não se pode fazer cirurgias. Isto ao longo do tempo acabará por ter consequências e quem é que sofre mais? São os doentes.”

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