Estes adolescentes cometeram suicídio. Agora, as famílias querem responsabilizar as empresas detentoras das redes sociais

CNN , Samantha Murphy Kelly
26 abr 2022, 09:00
CJ Dawley

Christopher James Dawley, conhecido pelos seus amigos e familiares como CJ, tinha 14 anos quando se inscreveu no Facebook, Instagram e Snapchat. Como muitos adolescentes, ele documentou a sua vida nessas plataformas.

CJ trabalhou como empregado de mesa no Texas Roadhouse em Kenosha, Wisconsin. Ele adorava jogar golfe, ver a série "Doctor Who" e muitas das melhores universidades do país queriam que ele estudasse nelas. "O seu conselheiro disse que CJ conseguia entrar em qualquer faculdade para onde quisesse ir", disse Donna Dawley, a mãe do rapaz, à CNN Negócios, durante uma entrevista na casa da família.

No entanto, enquanto andava no ensino secundário, CJ desenvolveu o que os seus pais consideravam ser um vício pelas redes sociais. A mãe disse: “No último ano, ele não conseguia parar de olhar para o telemóvel. Ficava acordado até às três da madrugada e trocava mensagens no Instagram com outras pessoas. Por vezes trocava “nudes” (fotografias em que estava nu). O meu filho ficou com privação de sono e tornou-se obcecado com a sua imagem corporal.”

A 4 de janeiro de 2015, enquanto a sua família desmontava a árvore de Natal e arrumava as decorações, CJ foi para o seu quarto. Ele enviou uma mensagem para o seu melhor amigo, onde escreveu: "Vai com Deus". De igual modo, publicou uma atualização na sua página de Facebook onde dizia: "Quem apagou a luz?". Numa mão, CJ segurou uma espingarda de calibre 22. Na outra mão, tinha o seu “smartphone”. Disparou sobre si mesmo. Ele tinha 17 anos. A Polícia encontrou uma nota de suicídio escrita no envelope de uma carta de admissão de uma faculdade. Os pais de CJ disseram que ele nunca tinha mostrado sinais de depressão ou de ter ideias suicidas.

"Quando o encontrámos, o seu telemóvel ainda estava ligado. O CJ tinha-o na mão e estava salpicado de sangue", disse Donna Dawley. "O meu filho era tão viciado nisto que até os últimos momentos da sua vida foram documentados nas redes sociais."

"Durante sete anos, tentámos descobrir o que aconteceu", disse Donna Dawley, mãe de CJ. (John General/CNN)

Agora, os Dawleys juntam-se a um número crescente de famílias que instauraram processos por homicídio culposo contra algumas das grandes empresas detentoras de redes sociais. Estas pessoas alegam que as plataformas desempenharam um papel significativo quando os seus filhos adolescentes decidiram acabar com as suas vidas. O processo dos Dawleys, que foi instaurado recentemente, tem como alvo a Snap, a empresa-mãe do Snapchat, assim como a Meta, a empresa-mãe do Facebook e do Instagram. O processo acusa as duas empresas de conceberem as suas plataformas de forma a viciar os seus utilizadores. Os algoritmos que estas redes sociais usam levam a que as pessoas percorram, de forma quase interminável, as páginas. Isto serve para maximizar o tempo gasto na plataforma para fins publicitários e em termos de lucros.

O processo judicial menciona, de igual forma, que as plataformas exploram as tomadas de decisão e o controlo do impulso dos utilizadores ainda menores, devido ao "desenvolvimento cerebral incompleto".

Donna Dawley disse que ela e o seu marido Chris acreditam que a saúde mental de CJ sofreu devido à natureza viciante das plataformas. Eles disseram que se sentiram impelidos a instaurar o processo contra as empresas Meta e Snap, depois de Frances Haugen ter divulgado centenas de documentos internos do Facebook. Alguns destes documentos mostraram que a empresa estava ciente de que o Instagram podia prejudicar a saúde mental e a imagem corporal.

Nas intervenções públicas que fez, incluindo o seu testemunho perante o Congresso no outono passado, Haugen também revelou algumas preocupações relativamente à forma como os algoritmos do Facebook poderiam levar os utilizadores mais jovens a ver conteúdos prejudicais, tais como publicações sobre distúrbios alimentares ou automutilação. Tudo isto levaria a uma adição das redes sociais. Mark Zuckerberg, o CEO da empresa Meta, escreveu, na altura, uma publicação no Facebook de 1300 palavras. Ele alegou que Haugen tirou do contexto a pesquisa da empresa sobre o seu impacto nas crianças. Isso deu uma imagem errada da empresa.

"Durante sete anos, tentámos descobrir o que tinha acontecido", disse Donna Dawley. A mãe de CJ acrescentou que se sentiu compelida a "responsabilizar as empresas" depois de ouvir que o Instagram fora concebido para manter os utilizadores na plataforma durante o maior tempo possível. "Como se atrevem a colocar no mercado um produto, mesmo a saber que vai viciar as pessoas? Quem faria isso?”

As revelações de Haugen e o testemunho do Congresso renovaram, por parte dos legisladores de ambos os lados partidários, o escrutínio sobre as plataformas tecnológicas. Foi apresentado no Senado norte-americano, em fevereiro, um projeto de lei bipartidário. Este propõe novas responsabilidades no que concerne as plataformas tecnológicas. Isto servirá para proteger as crianças dos danos digitais. O presidente Joe Biden usou, de igual maneira, parte do seu discurso sobre o Estado da União, para levar a que os legisladores “responsabilizem as redes sociais pela forma como usam os nossos filhos, de forma a obterem lucro".

Agora, algumas famílias começaram a dar início a estes processos. Para tal, recorrem aos tribunais para que estes pressionem as empresas de tecnologia, de forma a mudarem o funcionamento das suas plataformas. Matthew Bergman, advogado da família Dawley, formou, no outono passado, o Centro Jurídico das Vítimas das Redes Sociais, após a divulgação dos documentos do Facebook. Atualmente, este advogado representa 20 famílias que instauraram processos por homicídio culposo contra as empresas detentoras de redes sociais.

"Não é o dinheiro que faz com que Donna e Chris Dawley tivessem instaurado este processo e revivam a perda inimaginável que sofreram", disse Bergman. "A única forma de forçar as empresas detentoras das redes sociais a mudarem os seus algoritmos perigosos, mas extremamente rentáveis, é mudar o seu cálculo económico. Há que fazê-los pagar os custos reais que os seus produtos perigosos infligiram às famílias, tal como aos Dawleys."

O advogado acrescentou: "Quando estamos perante casos semelhantes de má conduta por parte dos fabricantes dos produtos, os jurados atribuem dezenas de milhões de dólares por danos compensatórios. De igual modo, aplicam prémios milionários pelos danos punitivos. Tenho todos os motivos para esperar que um júri, depois de avaliar todas as evidências, possa fazer um julgamento semelhante neste caso."

Os pais de CJ, Chris e Donna, processam as empresas Meta e Snap pela morte de CJ. (John General/CNN)

Em declarações à CNN Negócios, Katie Derkits, a porta-voz da Snap, disse que não pode comentar litígios em curso, mas "as nossas preces estão com as famílias que perderam um ente querido por conta do suicídio.”

"De maneira deliberada, nós construímos o Snapchat de forma diferente das plataformas tradicionais das redes sociais. Esta aplicação é um lugar para as pessoas se conectarem com os seus amigos reais. O Snapchat oferece, de igual modo, recursos para a saúde mental, incluindo para a prevenção do suicídio para os utilizadores que necessitem", disse Derkits. "Nada é mais importante do que a segurança e o bem-estar de nossa comunidade. De forma continua, nós exploramos maneiras adicionais de apoiar os utilizadores do Snapchat."

A Meta recusou-se, de igual forma, a comentar o caso devido a encontrar-se em litígio. No entanto, foi dito que a empresa oferece uma série de ferramentas de prevenção do suicídio. Fornece, de forma automática, recursos a um utilizador caso um amigo ou a IA detete uma publicação sobre suicídio.

Empresas de tecnologia pressionadas a fazerem alterações

Embora já se fale há anos sobre o perigo do vício das redes sociais, o testemunho de Haugen, bem como as preocupações com o aumento do tempo gasto “online” durante a pandemia, tornou a questão um assunto de discussão nacional. Contudo, esta mudança não foi suficientemente célere para algumas famílias.

Jennifer Mitchell disse que Ian, o seu filho de 16 anos, morreu com um tiro autoinfligido enquanto estava no Snapchat. Ela está a trabalhar com o Centro Jurídico das Vítimas das Redes Sociais, de maneira a abrir um processo contra a empresa Snap. Mitchell disse esperar que isto torne os pais mais conscientes dos perigos das redes sociais. Ela espera, de igual maneira, incentivar os legisladores para que regulamentem as plataformas.

"Se podemos colocar restrições de idade relativamente ao consumo de álcool, ao tabaco e à idade em que se pode comprar uma arma, é preciso fazer alguma coisa quando se trata das redes sociais", disse Mitchell à CNN Negócios. O requisito para alguém se inscrever no Snapchat é ter 13 anos. "É muito viciante para as crianças."

Em agosto de 2019, Jennifer Mitchell tinha acabado de aterrar no Alasca, vinda de uma viagem de negócios da Flórida. Foi então que recebeu uma série de mensagens de voz. Estas diziam que o seu filho tinha morrido por causa de um tiro autoinfligido. Mitchell disse que, mais tarde, a Polícia contou-lhe que acreditava que o rapaz estava a gravar um vídeo quando se deu o incidente.

A mãe de Ian disse: "Depois de tentar entrar em algumas das suas contas nas redes sociais, encontrámos um vídeo dele no Snapchat. Parecia que o meu filho estava a jogar à roleta russa com a arma. Nós não sabemos para quem ele estava a enviar o vídeo ou se estava brincar com alguém. Encontraram o telemóvel não muito longe do seu corpo.”

A empresa Snap recusou comentar o incidente.

A mãe de Ian disse que ele morreu com um tiro autoinfligido enquanto estava no Snapchat.

O surgimento de processos de homicídio culposo contra empresas detentoras de redes sociais não se limita aos adolescentes. Em janeiro, Tammy Rodriguez instaurou um processo, alegando que a sua filha Selena, de 11 anos, lutou contra o vício pelas redes sociais durante dois anos, antes de tirar a própria vida em julho de 2021. O Instagram e o Snapchat, as duas redes sociais que a menina mais usava, exigem que os utilizadores tenham pelo menos 13 anos para poderem criar contas. No entanto, como em muitas plataformas sociais, algumas crianças mais jovens do que isso ainda conseguem criar uma conta.

De acordo com o processo judicial, Selena Rodriguez passou mais tempo nessas redes sociais durante a pandemia. Ela começou, de igual forma, a falar com homens mais velhos nas plataformas. A menina acedeu aos pedidos para enviar imagens sexualmente explícitas, "que, posteriormente, foram compartilhadas ou divulgadas com os seus colegas de turma. Isso aumentou a sensação de ridículo e o constrangimento pelo qual passou na escola", referiu o processo.

"Durante o período em que Selena usou as redes sociais, Tammy Rodriguez não tinha conhecimento dos efeitos clínicos viciantes e mentalmente prejudiciais do Instagram e do Snapchat", menciona o processo judicial. Aqui, também se citou a falta de controlo parental suficiente na época. Isso foi visto como um fator que contribuiu para esta situação. Recentemente, esta é uma questão que tem sido alvo de algumas críticas entre os legisladores.

Tanto a Snap, como a Meta, recusaram comentar o caso. No entanto, referiram dispor de recursos para ajudar os utilizadores que lutam contra problemas do foro mental.

"Se uma pessoa entra num bairro perigoso e é atacada, é um incidente lamentável", disse Bergman, que também representa a família Rodriguez. "Mas se um guia turístico diz: “Deixe-me mostrar-lhe a cidade. Mostrar-lhe-ei os melhores locais.” Se um desses locais é um bairro muito perigoso e a pessoa é agredida, o guia turístico tem alguma responsabilidade por ter posto o turista em perigo. É exatamente isso que essas plataformas fazem."

Ele acrescentou: "Não é por acaso que as adolescentes são levadas a ir para um conteúdo que as faça sentirem-se mal com seus corpos. É assim que os algoritmos atuam. Estes funcionam através de padrões.”

Um caminho longo e incerto a nível legal

Carl Tobias, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Richmond, acredita que esses processos por homicídio culposo contra as empresas detentoras das redes sociais podem manter-se firmes em tribunal, apesar dos desafios inevitáveis.

"O problema, pelo menos na noção tradicional da lei, tem sido a dificuldade em provar que o vício leva uma pessoa a tirar a sua vida ou o facto de causar danos sérios a alguém quando é autoinfligido", disse Carl Tobias. "Contudo, em determinadas situações, os juízes e os jurados podem estar mais recetivos a apurar responsabilidades e atribuir as respetivas indemnizações.”

Ele disse que o testemunho "condenatório" de Haugen perante o Congresso e os dados "aparentemente preocupantes" que as empresas recolheram sobre os utilizadores jovens, como foi revelado nos documentos, poderia, potencialmente, apoiar uma decisão a favor dos queixosos, mas isto dependia de cada caso.

"Há muitas informações de que não dispúnhamos antes", disse Tobias. "Quando uma empresa, entidade ou indivíduo sabe que está a expor outra pessoa a alguma situação de perigo, então as leis que tratam da reparação de danos causados pela prática de ato ilícito e as leis que apuram as responsabilidades pelo produto podem, por vezes, imputar responsabilidades."

Embora Carl Tobias tenha dito que "não é claro" se os processos serão, de facto, bem-sucedidos, os "argumentos apresentados pelos queixosos e pelos seus advogados, em alguns desses casos, são algo que as empresas têm de levar a sério.”

Foram interpostos, no passado, processos individuais contra as empresas detentoras das redes sociais. No entanto, por norma, estas têm um amplo escudo de responsabilização legal referente aos conteúdos publicados nas suas plataformas. Contudo, Tobias disse que como as famílias têm na mira a forma como as plataformas são concebidas, isso "pode persuadir um tribunal a fazer a distinção entre as novas alegações de outras ações dos réus que os juízes tivessem considerado estar isentas de culpa.”

Nos meses seguintes após a divulgação dos documentos, o Instagram lançou um pacote de medidas de segurança destinadas a proteger os utilizadores mais jovens. Isto incluía uma ferramenta chamada “Fazer uma Pausa”. Esta visava incentivar as pessoas a passar algum tempo longe da plataforma, depois de terem estado na rede social durante um determinado período. De igual modo, o Instagram também introduziu uma ferramenta que permite que os pais vejam quanto tempo os seus filhos passam na rede social. Assim, estabelecem limites temporais. Isto trouxe de volta uma versão do seu “feed” de notícias. As publicações foram classificadas por ordem cronológica inversa, em vez de estarem classificadas de acordo com os algoritmos da plataforma.

No mês passado, dezenas de procuradores-gerais escreveram uma carta ao TikTok e à Snap. Pediram às empresas que reforcem as ferramentas parentais existentes das plataformas e que trabalhem nas aplicações de monitorização de terceiros. Isto pode alertar os pais, caso as crianças usem uma linguagem que sugira a vontade de se automutilarem ou de cometerem suicídio.

A carta dizia: "As vossas plataformas não trabalham, de forma eficaz, com as aplicações de controlo parental. Também não fornecem uma oportunidade adequada para o controlo dos pais na plataforma. Pedimos que esta rede social esteja em conformidade com a prática corrente da indústria. Assim, são dadas aos pais maiores competências para que possam proteger os seus filhos mais vulneráveis.”

Como resposta a esta carta, a empresa Snap disse à CNN Negócios que, presentemente, está a trabalhar em novas ferramentas que forneçam aos pais mais informações sobre o que os seus adolescentes fazem no Snapchat e com quem falam. O TikTok não respondeu ao pedido de esclarecimentos sobre o assunto. Contudo, ao longo dos anos, a empresa alargou os seus recursos relativamente à segurança. Em 2019, o TikTok introduziu uma aplicação chamada “TikTok para utilizadores mais jovens”. Esta restringia mensagens, comentários e a partilha de vídeos para utilizadores menores de 13 anos. Em 2020, lançou a possibilidade de desativar mensagens diretas para utilizadores com menos de 16 anos.

Bergman disse que prevê ter uma "longa luta" pela frente. O advogado planeia “levar a tribunal vários casos” contra as empresas detentoras das redes sociais. "A única certeza que temos é o nível de resistência que vamos enfrentar, uma vez que estas empresas têm todo o dinheiro do mundo para contratar todos os advogados", disse ele. "As empresas querem fazer tudo o que conseguirem para não irem a tribunal, de forma a não terem de explicar ao júri a razão pela qual os seus lucros eram mais importantes do que a vida de CJ Dawley."

Donna Dawley disse que a última vez que viu o seu filho, no dia da sua morte, ele estava a olhar para o telemóvel e parecia triste. "Eu só desejava tê-lo agarrado e abraçado", disse ela.

"Este processo não é sobre ganhar ou perder. Neste momento estamos todos a perder. Mas se conseguirmos que eles mudem o algoritmo por causa de uma criança e se ela for salva, então valeu a pena."

SE SUSPEITAR QUE ALGUÉM POSSA SER SUICIDA:

1. Não deixe a pessoa sozinha;

2. Remova qualquer arma de fogo, álcool, drogas ou objetos cortantes que possam ser usados numa tentativa de suicídio;

3. Ligue para a Linha de Prevenção do Suicídio dos EUA, através do número 1-800-273-TALK (8255)

(em Portugal pode ligar para a linha SNS24 808 242424 ou para o 112. Há ainda o contacto SOS Voz Amiga 963 524 660)

4. Leve a pessoa às urgências. Procure a ajuda de um profissional de saúde ou de um especialista em saúde mental.

Fonte: Fundação Americana para a Prevenção do Suicídio

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