Crónica de lágrimas e sorrisos na despedida de Eunice Muñoz. “O teatro mostra-nos que o belo ainda existe”

28 nov 2021, 20:02

“Fui feliz no palco em tudo o que fiz”. Despedida de Eunice Muñoz do palco do D. Maria II nas graças de uma plateia grata e emocionada. “Não perca esse sorriso”, disse-lhe o primeiro-ministro com lágrimas na voz, “é um dos sorrisos mais bonitos do mundo”. Eunice continuou a sorrir enquanto via com a plateia o seu álbum de fotografias

Às vezes a emoção é um facto. O facto é que, no final, quando o espectáculo acabou, a sala estava inteira de lágrimas nos olhos, olhos rasos à fita branca das máscaras de proteção, olhos de corpos levantados e braços levantados e gratidão levantada a aplaudir. Olhando o público, não se via uma só boca – mas viam-se todos os sorrisos. Eunice Muñoz, 93 anos, despedia-se assim este domingo do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, falando à plateia: “Subi a este palco pela primeira vez há 80 anos. Fui feliz no palco em tudo o que fiz”.

E o público com ela, em todas as cenas, na última cena.

A porta que se abre para outra dimensão

Última cena. Eunice Muñoz dirige-se à porta de saída, à esquerda na casa no palco. Coloca a mão na maçaneta, roda-a, entreabre a porta, não avança, Eunice está parada, roda a cabeça, olha a jovem que já foi, sentada à mesa na casa-palco que está prestes a deixar, encosta a porta de novo como se hesitando, como se grafando em si o momento, reabre a porta de novo, mas só o bocadinho por onde passaria um gato, Eunice continua parada, roda o olhar, vê o público, a mão na maçaneta, a luz cai, devagar, a luz desvanece-se, Eunice evanesce como a chama última de uma vela que consumiu a cera, Eunice velhinha parada na margem da porta que separa a casa-vida da outra dimensão, a dimensão da memória.

A margem do tempo.

O último espectáculo ainda circulará pelo país, disse-nos horas antes da última estreia em Lisboa, esta foi “só” a despedida do Teatro Nacional D. Maria II, no preciso dia, 28 de novembro, em que aos 13 anos se estreou, com o espectáculo “Vendaval”, pela mão de Amelia Rey Colaço. Hoje o vento parece ter miado suave, mas não foi sempre assim.

“A Margem do Tempo” (de Franz Xaver Kroetz) é o seu último espectáculo e a escolha não é por acaso. Nem a encenação, de Sérgio Moura Afonso. É toda ela feita de simbolismo declarado para a despedida de Eunice. Um espectáculo mudo, só gesto, corpo, movimento, até mímica, duas atrizes, avó e neta Muñoz, Eunice e Lídia, a representar o encontro sobreposto da mesma mulher em idades diferentes, a mulher-velhinha e a mulher-jovem. Fazem os mesmos gestos, cumprem os mesmos rituais, fazemos toda a vida as mesmas coisas, na mesma casa, das mesmas maneiras.

Eunice é a primeira a entrar em cena, cumprindo gestos que depois Lídia mimetizará, a mulher-velhinha e a mulher-jovem, as duas a mesma mulher. Eunice entra no palco pela ala esquerda, abre a porta de casa, pendura o casaco, limpa a manga puída, abre a janela, limpa a vidraça, abre o armário, veste a jaqueta sem mangas de estar-por-casa, escova o cabelo ao espelho, olha as rugas (Lídia olhará os brincos), olha as mãos. Quando tira o relógio do pulso, as margens do tempo sobrepõem-se e o ritual reinicia-se agora pela jovem Lídia. Depois, deambularão pela casa, uma e outra, lendo a mesma revista, ouvindo o mesmo rádio, a velhinha sorri das pressas de si mesma enquanto jovem, passa-lhe os cigarros rindo baixinho, já sabe que o isqueiro não acenderá, a mulher-jovem prepara o pão e o chá que ambas comerão, até que num determinado momento uma música ecoa do rádio, a mulher-jovem saltita uma dança, vira-se, estão frente a frente finalmente, olham-se, a mulher-velhinha sorri e ensaia a mesma dança, mas desiste, já não saltita, já não dança, já não sabe ou quer ou acredita naquele instinto de alegria do corpo que antes saltitou. Todos os rituais do dia e da noite se cumprem naquele espaço-casa. E a mulher-velhinha apenas ficará de olhar perdido nas curtas ocasiões em que a mulher-jovem a deixa sozinha em casa. Aí a música silencia-se, Eunice fica parada, fica desamparada. Só ficamos em solidão quando perdemos a memória de nós próprios.

O álbum de fotografias

Só ouviremos a voz de Eunice depois da primeira salva de palmas ecoar, quando as luzes de todo o teatro se reacendem depois da cena final. As lágrimas já molham os olhos quando a atriz maior do Teatro Nacional começa a ler o seu curto discurso. É a mesma voz de sempre mas velhinha, é o mesmo sorriso de sempre mas jovem.

“O teatro precisa de nós, de nós no palco, e de vocês, que recebem o melhor que temos para dar.”

Eunice declara-se feliz. Agradece à sua avó Augusta, de quem recebeu o talento; agradece à mestre Amélia Rey Colaço, “na dimensão em que agora vive”; agradece aos seus pais, “gente que levava o sonho a cada sítio por onde passasse”; passa o testemunho à neta Lídia, atriz no papel de Eunice-jovem que agora, lavada em lágrimas, lhe segura na mão; agradece “sobretudo ao público”, que sempre a acarinhou; e agradece aos colegas, pedindo-lhes coragem, pedindo-lhes que não desistam.

Todos lhe agradecerão de seguida. Pedro Penim, novo diretor do TNDMII, que vê na sua querida Eunice “um hino ao teatro e um hino à vida”; Graça Fonseca, ministra da Cultura, que lhe lê um poema de Eugénio de Andrade, Green God, “Sorria como quem dança. / E desfolhava ao dançar / o corpo, que lhe tremia / num ritmo que ele sabia / que os deuses devem usar”; e o primeiro-ministro, que lhe agradece “em nome de todos nós”, os que sorrimos e chorámos, os que amámos com Eunice no palco. É possível chorar e sorrir e amar ao mesmo tempo. “Nunca perca esse sorriso”, pede-lhe António Costa de lágrimas na voz, “é um dos sorrisos mais bonitos do mundo”.

Acabamos juntos, atriz e plateia, em lágrimas e sorrisos, vendo juntos 80 fotografias da sua carreira projetadas na tela do palco. Eunice de frente para as fotografias, apontando, mostrando à sua neta, está de costas para nós, que aplaudimos continuamente, nós e as lágrimas nos olhos e os sorrisos sob as máscaras. Ou talvez Eunice já esteja na verdade de frente connosco, ao nosso lado, sendo agora público que olha o palco, palco onde minutos antes nos dissera que “o teatro mostra-nos que, apesar dos dias estranhos e difíceis, o belo continua a existir.”

Citando toda a gente que lá estava: “Obrigado, Eunice”. Fim de crónica.

Sim, o teatro mostra-nos que, apesar dos dias estranhos e difíceis, o belo continua a existir.

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