PAÍSES BAIXOS 0-0 FRANÇA || Não foi o melhor jogo do Euro mas serviu para: não ver Mbappé; constatar que França atravessa um momento Palhinha; começar a pensar que Portugal vai ter França ou Países Baixos ou Áustria nos quartos. E faltou ser um grande espetáculo
Rabiot tem um excelente coração: o melhor do jogo
França é tão forte que dá para admirar tudo o que faz de bem mas também dá gosto apreciar o que França faz de mal, como quando Adrien Rabiot está isolado diante da baliza aos 13 minutos e prefere fazer um passe cómico para Antoine Griezmann em vez de rematar, que é o que faria qualquer bom jogador de outra nacionalidade - mas os franceses estão tão fortes que Rabiot, que é um bom jogador de nacionalidade francesa, optou por criar a ilusão de que os Países Baixos podiam discutir o resultado e por isso Rabiot não quis começar a acabar com o jogo logo ali, foi um ato de sacrifício para salvaguardar a emoção do espetáculo. Griezmann não estava sintonizado com o colega de equipa e por isso tropeçou na bola quando Rabiot a passou, Griezmann supôs que Rabiot ia chutar e acabar com isso de nenhum francês ter marcado ainda neste Euro, Griezmann certamente rematava se fosse Rabiot, Griezmann não tem certamente o coração abnegado de Rabiot. O mais interessante é que há três reações muito relevantes naquele instante: de Griezmann consigo próprio, põe as mãos na cara a pensar na vergonha daquele tropeção humilhante; vê-se também Rabiot a gesticular na direção de Griezmann como que a assinalar o facto de aquela vergonha que aconteceu a Griezmann ser o castigo esperado para quem tem coisas negras no coração; vê-se Dembelé a abrir os braços e depois a assinalar com a mão direita que era para a direita que Rabiot devia ter passado, para a direita onde não estava nenhum francês, se a bola tivesse ido para a direita podia ter-se evitado a vergonha de Griezmann - Dembelé acha que também não há necessidade de se punir daquela maneira as pessoas más como Griezmann.
Alucinámos na narrativa do minuto 13 porque a decisão de Rabiot continua a ser bastante indecifrável, já vimos o lance com o volume no máximo e a meio e no mínimo, vimos em câmara lenta e acelerada, em full screen e em quadradinho pequeno e continuamos sem entender por que motivo Rabiot não remata para começar a desequilibrar com um golo um jogo que teve sempre um sentido dominante - o da baliza neerlandesa: França teve mais posse (58%), quase o dobro dos remates (16 para 7), mais do dobro dos ataques (57 para 26), passou mais vezes a bola (678 passes para 404) e fê-lo com mais eficácia (620 passes acertados, 91% de eficácia; os PB, vamos chamá-los assim daqui em diante ou ainda começa a sair Holanda, os PB tiveram 361 passes certeiros, 89% de eficácia). E ainda: França melhorou todos os índices (posse, remates, ataques, cantos, eficácia de passe) relativamente ao jogo com a Áustria e neste jogo com os PB conseguiu correr menos 7,1 quilómetros que naquele jogo com os austríacos.
Portanto: França faz tudo melhor contra um adversário alegadamente superior - é preciso usar o alegadamente porque posso estar a cometer um crime ao dizer que os PB são melhores que a Áustria, vamos tirar as dúvidas na próxima jornada. E se formos cínicos: o que fica destas duas jornadas é que França saiu com um resultado melhor no jogo em que fez pior, isso pode dar origem a uma teoria falaciosa - a de que mais vale jogar pior e ganhar do que andar a enfeitar o jogo e empatar, mas essa teoria está desmentida pela História, no futebol já se ganhou e vai ganhar-se das maneiras todas, no futebol já se perdeu e vai perder-se das maneiras todas, há é maneiras que nos criam memórias de futebol emocionante (olá, Brasil perdedor de 82) e depois há outras maneiras estilísticas que se apagam da memória (olá, Grécia vencedora de 2004).
Mas sim, esta França é forte mas tem uma força diferente da da Espanha e é sobretudo uma força sem a potência alemã, ainda que a Alemanha tenha um grupo bem menos competitivo que os de França e Espanha: entre as equipas com dois jogos feitos, a Alemanha é a que tem mais ataques, França a quarta, Espanha a oitava; a Alemanha é a equipa com mais remates, Espanha a quarta, França a quinta (mas França tem mais remates enquadrados que Alemanha e Espanha); entre as equipas com dois jogos feitos, a Alemanha é a única que tem mais de 90% de eficácia de passe (tem 94%), França está em terceiro neste ranking, Espanha em oitavo; a Alemanha é a segunda equipa que mais cruza, França a sétima e Espanha a 15ª (Portugal, com um só jogo, está em 12.º, vejam só); Espanha é a quarta equipa que mais bolas recuperou, a Alemanha a sexta e França a oitava; a Alemanha é a segunda equipa com mais posse (a primeira é Portugal mas ainda só tem um jogo), França é a oitava e Espanha a 14.ª. E isto diz-nos que Espanha tem um jogo mais prático e combativo que França e Alemanha, diz-nos que a Alemanha é impositiva e que França é bonitinha, nem linda-linda nem assim-assim, é bonitinha.
Basta ver o meio-campo francês para entender como é difícil para a França lidar com a sua diversidade de belezas: Rabiot tem 1,88 metros, cabelo farto que não deve necessitar de implantes até ao fim da vida, Kanté tem 1,69 metros, cabelo que não se vê; o Rabiot joga com a elegância de um membro do Grémio Literário e o Kanté com a intensidade de um cobrador de dívidas. São tão diferentes, ainda que nisto sejam muito parecidos - Rabiot fez 103 passes neste Euro e só falhou cinco (94% de eficácia), Kanté fez 109 e falhou oito (92,5%), parece bom mas são performances terrenas porque o extraterrestre Kroos tem mais do dobro dos passes feitos (233) e apenas sete falhados (97% de eficácia). É isso, França tem sido bonitinha enquanto a Alemanha tem o dobro dessa beleza, mas há mais: Kanté (33 anos) é mais velho que Rabiot (29 anos) mas já correu mais três quilómetros nestes dois jogos e atingiu um pico de velocidade de 33,8 km/h, superior aos 32,71 km/h de Ronaldo e ainda mais acima dos 31,9 km/h de Rabiot: é bastante impressionante como o Rabiot é tão mais vistoso, é no que dá ser alto e cabeludo, enquanto o Kanté anda a acumular piques e quilómetros naquele seu jeito aparentemente invisível, mas só aparentemente porque Kanté foi eleito melhor em campo no jogo anterior e agora neste com os PB. Mas por muito bom que Kanté seja, e é mesmo, é mais ou menos como ter o Palhinha (que nós amamos) escolhido como melhor em campo em dois jogos seguidos de Portugal: quer dizer que o Palhinha está muito bem mas que a equipa pode estar melhor.
Mbappé a recuperar do nariz partido: o pior do jogo
Não mencionámos Mbappé nos parágrafos anteriores e foi deliberado: quisemos imaginar como seria uma França a jogar para sempre sem ele, escrevemos esses parágrafos como se Mbappé não existisse, como se a realização não o tivesse mostrado 73 vezes, como se nenhum francês tivesse pensado que ele faz falta. Ficaram uns parágrafos bem feios, precisamos de Mbappé para escrever melhor.
Quatro minutos à espera: golo anulado, o momento do jogo 1
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— sport tv (@sporttvportugal) June 21, 2024
Xavi Simons celebrou aos 68 minutos mais depois ficou na expectativa: uma longa avaliação do VAR, quase quatro minutos dela, resultou num fora de jogo posicional que recolocou o resultado no 0-0 final - mas serviu para pôr a França em sentido, a partir dali o jogo tornou-se mais físico e isso quer dizer que é quando se joga mais para não perder do que para qualquer outra coisa. Perdeu o espetáculo, ganharam França e os PB - um ponto.
O momento do jogo 2: já falámos sobre isso, fica aqui o vídeo
Que desperdício dos 🇫🇷#sporttvportugal #EUROnaSPORTTV #EURO2024 #PaisesBaixos #França #betano pic.twitter.com/BXzuR9sdLY
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A Áustria (sim, sim): a surpresa do jogo
Cenário em que Portugal vence o seu grupo e passa os oitavos - o adversário nos quartos pode ser ou França ou Países Baixos ou Áustria, avaliemos os três: França não deslumbra mas isso ninguém o fez no Euro, nem Espanha (que foi bem mais impositiva contra a Itália do que contra a Croácia, apesar de um 3-0 parecer melhor que o 1-0, mas não foi), portanto é melhor continuar a sobrevalorizar França do que subestimá-la, atenua riscos de eventual excesso de confiança; os Países Baixos têm uma frente de ataque aberta com muito talento - Xavi, Gakpo e Memphis - mas que desperdiça muito, isso também pode gerar excessos de confiança nos adversários - mas os PB são inferiores a França e isso ficou evidente; a Áustria entra na última jornada em condições de lutar pelo segundo lugar (o primeiro parece mais difícil, um França-Polónia não abre grandes expectativas de liderança para os austríacos) e é o segundo lugar deste grupo que se pode cruzar com Portugal nos quartos - e esta Áustria teve mais bola contra França e só perdeu com um autogolo, além disso mostrou contra a Polónia que consegue jogar futebol feio quando tem de ser mas que sabe fazer bonito quando quer impressionar, é um equilíbrio bastante útil quando vier o mata-mata, atenção à Áustria - é uma bela surpresa-confirmação.