OPINIÃO. Vivemos num sistema que enriquece poucos e torna miserável a vida de quase todos os outros.
Nota do editor: Kirsten Powers é analista política sénior da CNN e autora best-seller do New York Times. O seu livro mais recente é “Saving Grace: Speak Your Truth, Stay Centered and Learn to Coexistently with People Who Drive You Nuts”. Escreve a newsletter “Things That Matter”. Pode segui-la no Twitter, Instagram ou Facebook em @KirstenPowers. As opiniões expressas neste artigo são exclusivamente da autora.
No seu novo livro, “It's OK to Be Angry About Capitalism” [ainda não editado em Portugal mas cujo título pode ser livremente traduzido como “É OK Estar Zangado com o Capitalismo”], Bernie Sanders escolhe a alcunha “uber-capitalismo” para descrever o nosso sistema económico atual - um sistema que se sente perfeitamente concebido para enriquecer uns poucos enquanto torna a vida miserável para quase todos os outros.
Outros termos funcionam igualmente bem - quer seja “hipercapitalismo” ou “capitalismo tardio” - para descrever o capitalismo desamarrado da moralidade ou da decência. Como quer que se lhe chame, não funciona exceto para os super-ricos, pessoas que Sanders apropriadamente rotula como oligarcas.
Algumas pessoas diriam que o capitalismo é imoral, não importa qual a forma que assuma. Mas esse não parece ser o argumento de Sanders. Em vez de defender um governo socialista democrata, Sanders parece querer uma reforma do capitalismo americano e ver o país abraçar uma espécie de liberalismo New Deal [programa de reformas económicas do final dos anos 30 nos EUA caraterizadas pelo estímulo económico e intervenção do Estado].
Sanders tem dito ao longo dos anos que vê as generosas redes de segurança social da Escandinávia como um modelo do tipo de sistema que ele apoia. No seu livro, ele enfatiza uma inspiração mais próxima de sua casa: o Presidente Franklin Delano Roosevelt [FDR] - em particular, a perceção de FDR de que “a verdadeira liberdade individual não pode existir sem segurança económica e independência”.
Qualquer pessoa que viva de salário em salário, trabalhando até à exaustão apenas para sobreviver e conseguir ficar acima do que paga pela sua dívida, certamente reconhece que esta afirmação é verdadeira. Quão “livre” é realmente uma pessoa, se tudo o que ela faz é trabalhar?
Quão “livre” é alguém que vive com um estado de saúde debilitado porque não pode pagar os medicamentos ou os cuidados de saúde que poderiam curá-la? Quão “livre” é uma pessoa que começa a vida adulta com dívidas apenas para obter a educação de que necessita para conseguir um emprego?
Muitos americanos são essencialmente servos presos por contratos a uma sobreclasse que continua a acumular riqueza e poder, ao mesmo tempo que falham em transmitir a sua abundância aos seus empregados. Entre 1978 e 2018, os salários dos CEO dispararam em mais de 900%, enquanto os salários dos trabalhadores cresceram pouco menos de 12%, de acordo com um relatório do Economic Policy Institute.
Estes empregados cronicamente mal pagos são também muitas vezes tratados como objetos pelos seus patrões. De acordo com uma investigação do The New York Times, "Oito dos 10 maiores empregadores privados dos EUA rastreiam as métricas de produtividade de trabalhadores individuais, muitos em tempo real”. Os trabalhadores queixaram-se de que “os seus empregos são implacáveis, e que eles não têm controlo - e em alguns casos, que nem sequer têm tempo suficiente para usar a casa de banho”.
Isto não é liberdade.
Os americanos trabalham tanto e estão tão desprovidos de tempo livre que o The New York Times sugeriu numa série sobre dicas de Ano Novo que poderia aumentar a sua felicidade se agendasse chamadas telefónicas de oito minutos com amigos e entes queridos, e reciprocamente prometeu não exceder o tempo atribuído.
A parte mais louca é que isso não soa realmente a loucura, pelo menos para um americano. Muito do que consideramos normal aqui - tal como a cultura de “dar tudo” ou de trabalhar 24 horas por dia para depois os patrões nos despediriam sem pensarem duas vezes - é desconcertante para os nossos pares em muitos países industrializados, que dão prioridade à sua saúde mental e física e não sofrem de um fetiche de produtividade capitalista tardio.
As grandes companhias dos Estados Unidos não se limitam a maltratar os seus trabalhadores; falta-lhes mesmo um pouco de decência quando se trata da sua responsabilidade para com os consumidores e a sociedade em que vivem. Hoje em dia, somos um país onde as empresas farmacêuticas obtêm lucros recorde e pagam aos seus gestores quantias obscenas de dinheiro por venderem medicamentos que os americanos precisam para sobreviver. Sanders conseguiu acertadamente desfazer os planos da Moderna de quadruplicar o preço da sua vacina contra a Covid, que foi desenvolvida em parceria com o governo. (A Moderna anunciaria mais tarde que as suas vacinas permaneceriam gratuitas).
A maioria das pessoas não pode sequer pagar o crédito à habitação da sua casa, enquanto uma subsecção da sociedade está a afundar dinheiro no seu novo domicílio. A percentagem de compradores que estão a comprar casa pela primeira vez é a mais baixa em 41 anos, enquanto os compradores ricos podem pagar em dinheiro.
“Essencialmente, apenas os ricos estão a comprar casas”, afirmou Lawrence Yun, economista-chefe da Associação Nacional de Corretores de Imóveis, ao The Washington Post. “Se esta tendência continuar, isso significa que algo está fundamentalmente errado com a sociedade”.
Mas não precisamos desta tendência para continuar a saber que a nossa sociedade está fora dos carris. Os resultados mostram-no. Este sistema não é apenas injusto, é mortal: os EUA ganharam a indesejável distinção de ter a menor esperança de vida e a maior taxa de suicídio entre os países ricos.
Quer se concorde com as inúmeras soluções que Sanders apresenta no seu livro para acabar com o flagelo do uber-capitalismo, não há dúvida de que ele enquadrou com precisão o problema como sendo sobre a liberdade. O senador de Vermont tem sido nada menos que profético ao advertir contra as terríveis consequências de uma cultura que preza a produtividade acima de tudo e que acarinha e venera os super-ricos.
Talvez acima de tudo, Sanders tenha poderosamente articulado - tanto nas suas campanhas como no seu último livro - a profunda falta de decência e a imoralidade total do atual sistema económico americano. Agora cabe a todos nós decidir o que fazer sobre isso.