Há cada vez mais crianças a precisar de terapia da fala. A procura por esta especialidade aumentou mais de 200%. Há quem aponte o dedo às máscaras e quem diga “não só”. Mas há uma certeza comum: se nada for feito, o futuro vai trazer problemas na escola
Pedro está na casa dos dois anos e pouco fala. A médica já alertou Sofia, a mãe, que provavelmente o filho irá “precisar de terapia da fala”. E colocou a hipótese de o atraso na oralidade estar relacionado com “o uso de máscara nos adultos”.
Nas Páscoa, quando conseguiu estar mais tempo com o filho, porque também estava de férias, Sofia não tem dúvidas que houve uma evolução no menino: “Ele regressa à escola a falar melhor”, garante à CNN Portugal. Neste dias, o menino esteve sempre com adultos sem máscara e até com familiares que nunca o tinham conhecido. Mesmo assim, o menino irá realizar testes para haver certezas sobre se há, ou não, alguma questão física a interferir no processo.
Numa altura em que se devolvem os rostos às escolas, deixando de ser obrigatório o uso de máscaras, muitos pais estão preocupados com os atrasos na linguagem dos filhos. O aumento da procura na área da terapia da fala supera os 200% e os especialistas consideram que é preciso agir rápido para evitar problemas graves no futuro.
“Nós temos consciência dos problemas que vamos ter em termos de comunicação. Ou que já estamos a ter”, afirma à CNN Portugal Manuel Pereira, Presidente da Direção Associação Nacional de Dirigentes Escolares. Não são só pais a perceberem a dificuldade dos mais novos: “É claro que estes dois anos, este tempo de máscaras na escola, trouxe um enorme prejuízo e vamos ver as consequências disto a curto prazo”.
“Os bebés aprendem a falar olhando os lábios das mães. E os meninos do pré-escolar e do 1º ciclo aprendem a ler, a escrever e a falar olhando os lábios dos professores. É instintivo e, às vezes, não temos consciência disso. Nós próprios temos dificuldade em ouvir quando temos máscara. Na prática, o problema não é ouvir, mas não vermos os lábios e os lábios são uma grande percentagem do processo de compreensão”, acrescenta.
Alexandrina Martins, especialista ligada à Sociedade Portuguesa de Terapia da Fala, assume que “o uso da máscara não ajudou em nada”, mas não lhe aponta o dedo em exclusivo. “Houve um único fator: a pandemia. Mas a pandemia trouxe consigo uma serie de situações que de facto não ajudaram em nada o desenvolvimento dos miúdos, que tiveram limitações muito grandes nas suas experiências”, diz.
Expressão facial empobrecida
A mesma especialista assume que o “aumento de procura ultrapassa os 200%, principalmente na faixa etária dos dois e três anos”. “Há aqui uma série de questões, não só pela questão da produção de fala em si, mas também pela questão da própria expressão facial, que ficou extremamente empobrecida. E, obviamente, os miúdos deixaram de ver os articuladores a mexer e deixaram de ter aqui este contacto mais direto com a produção de fala propriamente dita”, explica esta terapeuta.
O futuro é algo que preocupa, e muito, quem trabalha diretamente com as crianças. É por isso que consideram urgente agir e tentar minimizar a situação, orientando pais e professores. “O desenvolvimento linguístico é o mais importante, ou um dos mais importantes, para a aprendizagem académica. Se as crianças têm estas dificuldades linguísticas na oralidade, isto, naturalmente e inevitavelmente, vai passar para a aprendizagem académica, para a leitura e para a escrita”, afirma Alexandrina Martins à CNN Portugal.
Na escola já não há máscaras, mas talvez seja preciso mais. “Orientar os pais ou até as próprias escolas. Estamos a sair desta pandemia e estamos a sair dela como se não tivesse acontecido. Não houve nada nos nossos procedimentos que ajudasse estas crianças ou os educadores a terem uma maior perceção ou a aprender estratégias”, defende Alexandrina Martins.
Seja no tempo que estiveram confinadas em casa, ou na escola sem verem os rostos dos adultos, as crianças podem ter perdido muito.
“Uma criança com três anos agora esteve em casa dois anos e estes são períodos de tempo muito ricos em termos de desenvolvimento linguístico e comunicativo. Numa creche, estamos a falar de miúdos muito pequeninos, que não veem os modelos corretos. Veem os outros miúdos a falar, mas o modelo correto, o adulto, aquele que lhes dá a base da aquisição linguística, eles de facto não a veem. Houve um compromisso sério de tudo aquilo que são interações comunicativas e linguísticas entre os adultos e os miúdos.”
Paula Correia, presidente da Sociedade Portuguesa de Terapia da Fala, também defendeu, em declarações à CNN Portugal, que atuaram "várias variáveis em simultâneo” e a urgência é grande: “A intervenção tem de ser feita agora e não mais tarde, senão temos problemas de leitura, de escrita e outros".
“O que se pediu aos pais foi uma coisa muito dura”
A experiência de décadas como professor também dá a Manuel Pereira, Presidente da Direção Associação Nacional de Dirigentes Escolares, uma visão pessimista quando questionado sobre se estas crianças que cresceram sem ver os rostos dos professores vão ter problemas: “É iniludível isso. Os que não tiverem dificuldades serão exceções. Em termos de escola, no que à escola diz respeito, esse prejuízo é claro”.
Os problemas de comunicação na escola são percetíveis diariamente, "dos mais novos até aos mais velhos", e "tudo se reflete na escrita". "A escrita implica uma organização cerebral em termos de construção frásica e silábica. Se esse processo não está a ser bem construído, depois reflete-se em termos de aprendizagem e em termos de escrita também”, explica.
O confinamento, as aulas online, o distanciamento social, mais tempo de ecrãs, as máscaras, a luta diária das famílias na gestão de espaços e funções. As consequências da pandemia não se resumem ao vírus ou à doença e, a outros níveis, só agora se começam a tornar visíveis.
Da prática que tem em lidar com crianças e pais quase diariamente, Alexandrina Martins deixa outro alerta: “O que se pediu aos pais foi uma coisa muito dura. Foi brutal, pediu-se assim: ‘Agora, ao mesmo tempo que estão a tomar conta dos filhos, têm que estar a trabalhar’. E isto são duas atividades que em si não são minimamente compatíveis”. E o que vê não a deixa indiferente: “Temos pais que carregam muitas destas culpas. Quando estavam a trabalhar achavam que deviam estar a brincar, e quando estavam a brincar achavam que devia estar a trabalhar”.
Para acalmar quem lhe chega ao consultório, Alexandrina Martins explica sempre que fazer “terapia da fala não é o fim do mundo”.
Quanto a Pedro, pode estar atrasado na fala, mas é muito desenvolvido a nível motor. Por isso, Sofia, que já tem uma filha um pouco mais velha, não está muito preocupada. "Faremos o que for preciso para recuperar", diz, sem qualquer complexo e pronta para o que vier.