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Jornalista

O que fica deste Presidente

27 out, 13:55
Marcelo e Montenegro com adeptos portugueses na Alemanha (Lusa/ Nuno Veiga)

Sei que se tornou moda desqualificar Marcelo Rebelo de Sousa enquanto Presidente da República. As elites sociais, económicas, políticas e até dos media nunca gostaram muito dele, nem da forma como escolheu exercer as suas funções. Para estes grupos, será sempre um comentador ou um endiabrado manipulador. Acham-no desprovido de sentido de Estado, confundindo isto com a obscuridade dos processos de decisão, o cultivo da proximidade com a rua ou o comportamento de recato exigido pelas decisões sérias que não estão, e nem devem estar sequer em termos de compreensão, ao alcance de qualquer um

Marcelo Rebelo de Sousa não é assim, ou não quis ser assim, com todos os riscos que sabia que isso implicava. Porventura, nunca foi assim na vida e menos foi quando decidiu candidatar-se a Presidente da República. Marcelo tem uma bagagem de saber, de cultura e de mundo que poucos têm. É um exemplo de inteligência e genialidade, de desconcertante inteligência e genialidade. Mas também de proximidade e emoção, características que acabam por se tornar fragilidades quando frequentemente expostas na praça pública.

Em quase 10 anos de exercício contínuo de defesa da cidadania esclarecida, de aprofundamento da democracia, de compromisso com o serviço publico, de quebras de protocolo e desapego pelas benesses do cargo, Marcelo cometeu erros e vai ficar rotulado como o Presidente que falava sobre tudo e a toda a hora. Mas foi este estilo, esta forma de estar na política, que significou uma lufada de ar fresco em relação aos últimos anos da Presidência de Cavaco Silva. O exercício de poder traz naturalmente desgaste e isso é naturalmente mais evidente nas democracias liberais. É até uma saudável condição para a não perpetuação no poder: o desgaste traz mudança e a mudança vem com novas visões para tentar vencer os desafios do futuro. Nem sempre acontece o melhor, mas o melhor é mesmo a tentativa de o fazer. 

Nas eleições presidenciais de 2016 e de 2021, Marcelo teve uma média de quase 2,5 milhões de portugueses a acreditarem que era a solução para tornar Portugal melhor. E o (novo) Presidente foi igual a si mesmo, apesar das sondagens que dão ultimamente a sua popularidade em queda livre. Dificilmente se achará que Marcelo não foi o homem certo na Presidência para lidar com os tempos conturbados de uma pandemia e com o surgimento de uma guerra na Europa. Dificilmente se julgará que Marcelo não simboliza a solidariedade, o combate às exclusões, a tolerância e a pedagogia. Dificilmente não se achará que Marcelo tem um desapego material pelas mordomias do cargo e preza acima de quase tudo a liberdade de expressão e de Imprensa.

Também em termos políticos e do exercício do cargo, e apesar de ser o Presidente recordista das dissoluções governamentais (três), Marcelo teve uma intervenção sempre clara ao nível das condições essenciais para um Governo se manter em funções: se um primeiro-ministro se demite, se um orçamento de Estado não passa ou se uma moção de confiança é negada, o melhor é voltar a dar a palavra ao povo. Não podia ser mais claro, porque são sempre as eleições que clarificam, mais tarde ou mais cedo, o rumo de um País.

Igualmente na questão dos vetos políticos, Marcelo teve uma intervenção ponderada (e não interessa se ganhou ou perdeu em última instância), sobretudo em questões socialmente relevantes como a morte medicamente assistida, a autodeterminação de género, a procriação medicamente assistida e a gestação de substituição, a atribuição da nacionalidade e as leis da imigração, a carta portuguesa dos Direitos Humanos na era digital e a legislação sobre o cibercrime e os metadados. O Presidente esteve também sempre do lado certo da História a nível internacional, especialmente na análise que que fez da postura da nova administração norte-americana e de Trump e no apoio do esforço de guerra na Ucrânia.

No dia a dia, Marcelo foi a imagem do que são a maioria dos portugueses: das férias em Montegordo às braçadas na praia, das filas no supermercado às selfies e aos beijinhos e abraços a meio mundo, das idas à gelataria e ao multibanco (sim, eu sei que não foi só isso), dos passeios a pé ao estar com as populações afetadas pelos fogos e outras tragédias. Marcelo abriu a todos o Palácio de Belém e mostrou-se ele mesmo quase totalmente. Deu-se como nenhum outro presidente até nos erros e confusões em que se meteu. Foi indiscreto em comentários, zangou-se em público com o filho, falou das doenças que o afetavam. 

Marcelo foi, e está a ser, o que nenhum outro Presidente foi antes dele. Só isso, e não é pouco, torna-o – mais do que um político de exceção - uma pessoa excecional. Mesmo para quem não o conhece pessoalmente, como eu.

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