A senhora xenófoba 

24 jan 2023, 19:35

Era uma vez uma senhora muito altruísta, muito instruída e muito participativa; mas muito xenófoba. A senhora defende os direitos de todos, faz voluntariado e diz que dinamiza apoio a vulneráveis; mas é xenófoba. A senhora faz aparições públicas, escreve sobre assuntos sociais e é livre para expressar a sua opinião; que é xenófoba. O problema desta senhora é que é tão xenófoba que não sabe que é xenófoba.

A senhora xenófoba defende que a integração de refugiados é algo muito bonito e politicamente correto, mas um português, italiano ou alemão não tem de mudar o seu estilo de vida por causa da entrada de outras nacionalidades no seu país. Mas a senhora xenófoba não sabe que os refugiados representam apenas 0,6% da população da União Europeia.

A senhora xenófoba argumenta que a imigração descontrolada prejudica as economias dos Estados. Mas a senhora xenófoba não sabe que um refugiado não é um imigrante: não escolhe sair do seu país, pelo contrário, não tem alternativa.

A senhora xenófoba exige que quem entra em Portugal tem de se adaptar e cumprir a lei. Parece que a senhora xenófoba parte do pressuposto de que todos os não-europeus são marginais e perigosos, numa perspetiva colonialista tão enraizada que permite pensar no sul global como subalterno da sociedade ocidental.

A senhora xenófoba refere que a Europa não é um ringue para lutas entre gangues ou traficantes de armas ou de droga. Talvez a senhora xenófoba tenha colhido inspiração do infame discurso Trumpista dos migrantes como “violadores”; é preciso mantê-los fora.

A senhora xenófoba acrescenta que a justiça não pode deixar de atuar quando as leis nacionais são violadas. Mas o que a senhora xenófoba ignora é o número infindável de vezes que foram violados os Direitos Humanos de quem chega a território nacional; dificilmente saberá que nas fronteiras da sua Europa de primeira água as leis internacionais e as convenções que os Estados-membro assinaram são rasgados todos os dias em prol do seu querido discurso protecionista.

A senhora xenófoba diz que Portugal é um gigante campo de refugiados e que é preciso repensar urgentemente as políticas para as migrações. Mas a senhora xenófoba não sabe que Portugal nunca cumpriu as metas com que se comprometeu para o acolhimento de refugiados, mesmo que elas tenham sido sempre, à partida, bastante reduzidas. Os refugiados não-ucranianos em Portugal não passam dos 2500; isto não é nem um terço da ocupação, em tempos, do campo de Moria, na ilha de Lesbos, na Grécia.

A senhora xenófoba insiste que, por causa do acolhimento de refugiados, a sua vida muda porque Lisboa está sobrepopulada e suja como nunca a viu. Mas o que a senhora xenófoba não sabe é que uma parte significativa dos refugiados em Portugal não vive no centro de Lisboa, onde as casas têm preços inacessíveis para estas famílias. Se a cidade está suja e sobrepopulada, deve refletir sobre outras questões como o turismo, os vistos gold ou políticas da autarquia para a limpeza e manutenção de espaços públicos.

A senhora xenófoba acredita ainda que em Portugal há uma questão despicienda e que é muito debatida na Europa: que responsabilidade devemos imputar aos países de origem? Como se assegura que todos os refugiados são pessoas vulneráveis? A senhora xenófoba pretende na verdade lançar a suspeita de que entre refugiados há usurpadores de estatuto e, quem sabe, criminosos ou terroristas. Mas a senhora xenófoba não sabe que os processos de requerimento de asilo passam por longos períodos de tempo - vários anos - em que as pessoas são alvo de um escrutínio profundo. Nem a própria Frontex, a agência europeia de gestão e controlo de fronteiras, detetou casos que representem esse risco para a segurança nacional. Sobre a responsabilidade dos países de origem dos refugiados parece-me total, mas sugiro uma reflexão mais profunda: qual a responsabilidade na Europa na desestabilização de África e do Médio Oriente, começando pela definição de fronteiras sem olhar à cultura ou etnia dos povos?

A senhora xenófoba recorre a todos os temas que se lembra, como os populistas e nacionalistas, baralhando a opinião pública, sem nunca abordar a questão de facto: o estatuto de asilo para um refugiado. Quando confrontada, a senhora xenófoba não pretende ouvir. Já está tão convencida das suas ideias que nada a demoverá das suas convicções absolutistas que, na ausência de argumentos que as suportem, inicia a segunda técnica de quem não quer na verdade debater o assunto em causa: a vitimização. Falando sobre si, sobre os seus feitos, sobre como é sofrida, mas sempre dedicada ao outro. Como todos os populistas, critica o jornalismo por ignorar matérias politicamente inconvenientes e preferir as cadeiras de cabedal a colocar as galochas e sair para a rua. A senhora xenófoba aproveita todos os detalhes da sua existência para se colocar numa posição de superioridade, ora porque tem mais uns anos de vida neste mundo, ora porque é uma Senhora e agradece cordialidade no trato.

Relembro a senhora xenófoba que também há senhoras da Síria, Iémen, Somália, Eritreia, Sudão do Sul - e de muitos outros países - que também agradecem cordialidade no trato. Mas senhora xenófoba classifica-as como marginais que vivem em lugares “bafientos”. Serão certamente muito diferentes da sua poltrona de cabedal. Este discurso discriminatório cria uma barreira de preconceito intransponível nas sociedades ocidentais onde o “outro” é percepcionado sempre como inferior a partir da posição de privilégio. Confessa pela extrema-direita e omissa (mas presente) por muitas outras ideologias políticas do arco de governação, esta forma de ver o estatuto de refugiado castra a hipótese de integração plena. Há uma indiscutível racialização dos requerentes de asilo, sobretudo dos árabes, no mundo pós-11 de setembro. Nos Estados Unidos, Donald Trump foi o rosto político dessa xenofobia quando impôs um bloqueio a países muçulmanos e, apesar de os sírios serem legalmente “brancos”, apelidou-os terroristas. Isto afeta não só o sentimento de pertença durante o acolhimento, como provoca o fim da vergonha para muitos xenófobos: é uma autorização para a expressão pública e horrenda do preconceito infundado. Na Europa, quem é o rosto desta ideologia? Ursula von der Leyen investe dinheiro europeu na fortificação de fronteiras, Angela Merkel forçou um acordo multimilionário para que a Turquia ficasse com os refugiados sírios, Theresa May defendeu a ideia da “política hostil” para tornar a vida dos migrantes num inferno, Emmanuel Macron quis proteger França dos afegãos depois da tomada de poder pelos talibãs, Giorgia Meloni recusa-se a deixar desembarcar em Itália pessoas resgatadas do mar, António Costa anunciou que queria aproveitar os refugiados para pô-los a limpar a floresta.

Quando estes assuntos se discutem, insurge-se a senhora xenófoba. Está ferida na sua identidade cultural. Afirma-se intelectualmente honesta e assegura que não tem medo que lhe chamem nomes por isso. É xenófoba e, talvez, também um pouco racista.

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