A Rússia vista dos bálticos: a crise do “eu não te disse?” (ensaio de Paulo Rangel para a CNN Portugal)

23 fev 2022, 19:26
Paulo Rangel visita a base da NATO de Rukla, na Lituânia. Foto: DR

Paulo Rangel voou do Porto para Munique no sábado a pensar que seguiria depois para Kiev e Vilnius. A passagem pela Ucrânia teve de ser cancelada devido à escalada da tensão, manteve-se a ida à Lituânia. E é daqui que sai um ensaio de leitura fundamental para se entender tanto do que está a acontecer naquela parte do mundo. Mas não só naquela parte

1. Saí do Porto para Munique às 13.45h de sábado, dia 19, julgando que no dia seguinte voaria para Kiev. E que de Kiev voaria para Vilnius no dia 22 de manhã para ali ficar 22 e 23. Pouco depois de aterrar em Munique, soube que a missão a Kiev tinha de ser adiada sine die. Quedei-me por Munique até voar no dia 21 para Vilnius. O entorno da conferência anual de segurança convidava a não sair da capital da Baviera. Na segunda 21, à tarde, cheguei a Vilnius. Destes dias todos, ficaram muitas coisas novas, muito material para maturar e meditar. Mas há uma frase, proferida pela primeira-ministra lituana na manhã de 23 que ecoa nos meus ouvidos e que pode resumir o ambiente que a Europa e, em especial, a Europa de Leste vive nesta altura. Contava ela na reunião que teve connosco: “Esta crise, esta terrível crise, faz-me lembrar um dito recorrente e insistente da minha falecida mãe: 'Eu não te disse? Eu disse-te!'”.

2. Para quem conheça as preocupações dos povos dos três Estados bálticos e, em grande medida, da Polónia e da Roménia (talvez, em menor grau, de checos e de búlgaros), esta é mesmo a crise do “eu não te disse?”, do “nós não vos dissemos?”. Ou, numa fórmula mais expressiva, é a crise “eu não te avisei? Eu avisei-te”. Há muitos anos que convivo com políticos desta frente do Leste e a sua desconfiança estrutural da política e da visão de Vladimir Putin e do Kremlin. Ao longo de mais de 10 anos que os ouço insistir na ameaça e no perigo da Rússia de Putin e do seu projeto imperialista. A grande maioria destes meus interlocutores é fluente em russo e, por isso, acompanha diariamente a atualidade russa e a forma como ela é projetada pela comunicação social completamente controlada por Putin. Para eles, nada do que está a acontecer os surpreende. Assusta-os, preocupa-os, mas não os apanha de surpresa. Não os surpreende a concentração anormal de tropas nas fronteiras da Ucrânia, mas também em todo o território bielorrusso e ainda no enclave russo de Kaliningrado (estrategicamente entalado entre a Polónia, a Lituânia e o mar Báltico). Nem a decisão de Putin de reconhecer a independência e soberania dos territórios de Donetsk e de Luhansk e a decisão subsequente de enviar para lá o exército russo como “força de manutenção da paz”. Surpreende-os ainda menos o relevantíssimo discurso de Putin, que, falando num tom quase providencial, pura e simplesmente nega qualquer aspiração histórica da Ucrânia fora do império russo e da identidade russa. E fá-lo em termos tais que quase engole as identidades históricas das nações bálticas e até de uma larga parte do mundo eslavo. Neste discurso, não há apenas uma doutrina estratégica que apela à segurança da Federação Russa. Há muito mais do que isso. Há um sentido e um espírito quase religioso, de quem vela pela perenidade da terceira Roma. Há uma metafísica de quem zela pela “corporeidade” ou pela “incarnação” da alma russa.  Prolongando o paralelo religioso, poder-se-ia dizer que o “Reino” de Putin – ao contrário do Reino de Cristo – é mesmo deste mundo. E tem de ter uma tradução física.  

Não deve menosprezar-se esta dimensão transcendente da tradição e da herança histórica. Todos os bálticos a compreendem, todos os vizinhos percebem muito bem o seu sentido, todos eles alcançam perfeitamente a sua dinâmica. É aquela áurea que anima Putin, que, a despeito de ser um déspota cruel e realista na mais fiel linhagem da política russa, pretende cobrir-se de uma legitimidade histórica e transcendental. E com isso, já agora, proteger-se da ira ou do descontentamento do seu próprio povo.

3. Eis um primeiro ponto que tem de ser sublinhado: a justificação para a invasão do Donbass vai muito além das razões, claramente improcedentes, que poderiam explicar uma invasão e futura anexação daquelas regiões. A justificação envolve toda a Ucrânia e mais do que a Ucrânia. Nessa retórica, está anunciada uma intenção e apontado um plano. Que ninguém se esqueça. Ou cairemos de novo na armadilha do “eu não te disse?”.

4. Um segundo ponto, muito importante e facilmente verificável a partir da Lituânia, é a capitulação da Bielorrússia, que era a terceira das três grandes nações eslavas do Império Russo. A Bielorrússia, que sempre foi mais russófila do que qualquer outra República, já estava nas mãos de Putin. Apesar de durante mais de duas décadas Lukaschenko ter adotado uma atitude ambígua em face do vizinho russo, típica do jogo do rato e do gato, nos últimos anos pôs-se por completo nas mãos do Kremlin. Na verdade, a contestação interna atingiu níveis tais que teve de enveredar por uma repressão duríssima e de se socorrer do poder russo. Putin não desaproveitou a ocasião e passou a mandar no ditador bielorrusso. No último ano em particular, e decerto já antevendo a tomada da Ucrânia, pejou o território bielorrusso de militares russos. Neste momento, os números da base da NATO de Rukla, na Lituânia, que colhi na visita do dia 22, apontam para mais de 30.000 soldados russos em território da Rússia Branca. Esta capitulação da Bielorrússia faz temer pela independência deste Estado e é confirmada pela líder da oposição, Sviatlana Tsikhanouskaya, exilada em Vilnius e com quem jantei nesse mesmo dia 22. A sua mensagem é clara, claríssima: “Até agora, andei a lutar pela democracia e liberdade no meu país; neste momento, tenho de lutar pela simples sobrevivência da minha pátria”. Eis o que poucos perceberam: Putin só avançou para a Ucrânia porque já engoliu a Bielorrússia. E isto são notícias muito complicadas para os Bálticos (Lituânia e Letónia em particular). Ter uma larga fronteira com a Bielorrússia é hoje o mesmo do que ter uma fronteira direta com a Rússia. No caso da Lituânia, há até uma agravante: de um lado tem a Bielorrússia e do outro tem Kaliningrado. Como salientou, na manhã de 23, o meu amigo Gabriellus Landsbergis, ministro dos Negócios Estrangeiros lituano e neto do herói da restauração da independência, se a Rússia quiser fazer um teste à NATO o eixo mais frágil é a linha que vai da fronteira bielorrussa até ao enclave russo de Kaliningrado. É aí que há a tentação de abrir um “corredor sul” até ao Báltico. As consequências para a Lituânia e a Polónia, bem como para a NATO, desde logo em Rukla, seriam inimagináveis. Mas este é mesmo um ponto sensível, o elo sensível. 

5. Desta viagem muito mais haverá a dizer e não faltará ocasião de o fazer. Em particular sobre a resposta do Ocidente, da União Europeia, da NATO. E sobre os passos a dar para prevenir, precaver e tentar conter aquilo que pode ser o despertar dos pesadelos da velha Europa. Mas um avanço há que quero pôr em destaque, porque ele foi celebrado pelas nações bálticas como um regresso à esperança: a suspensão do Nordstream II. A Alemanha, malgrado a violência da II Guerra Mundial, aqui goza de grande prestígio, estava inapelavelmente marcada por esta “traição”. O Nordstream II era um fantasma de Catarina, a Grande, a czarina alemã. O euroatlantismo dos Bálticos foi sempre o contrapeso à geoeconomia alemã. Até esta suspensão, a Alemanha, mesmo quanto à China, vivia simplesmente no mundo da geoeconomia e havia renunciado à orbe da geopolítica. Este passo, muito celebrado em Tallin, Riga e Vilnius, visto como a verdadeira “sanção”, foi o sinal de que o motor da União Europeia finalmente cedia. Aparentemente cedeu. Seguramente por acção dos Verdes em Berlim, mais do que quaisquer outros. Mas pode também ser o início de uma outra Alemanha. Tudo coisas a ver num mundo que está a girar, que está a rodar. Por estes dias, ainda em roda livre.

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