"Não devemos descartar uma invasão russa": estão aí as eleições mais importantes da história da Geórgia

26 out 2024, 08:00
Manifestantes reúnem-se para protestar contra a reintrodução da “Lei dos Agentes Estrangeiros” na Praça da Primeira República (Praça da Revolução das Rosas) em Tbilissi, Geórgia, em 15 de abril de 2024. O parlamento georgiano retomou um projeto de lei depois de ter arquivado uma versão anterior em resposta a protestos em massa em março de 2023. A marcha, subordinada ao tema “Marcha pela Liberdade, Sim à Europa, Não à Lei Russa”, ostentava bandeiras da Geórgia e da União Europeia (UE) e faixas contra o projeto de lei (Davit Kachkachishvili/Anadolu via Getty Images)

Com um partido anti Ocidente no poder e uma população que se sente maioritariamente europeia, a Geórgia está à beira de umas eleições legislativas que a podem atirar para um de dois caminhos totalmente diferentes

O nome da Geórgia entrou pela casa dos portugueses neste verão durante o Euro 2024. A seleção do país, a fazer a sua estreia em competições internacionais, jogou contra Portugal na fase de grupos. O resultado foi surpreendente, com os georgianos a vencerem por 2-0. A alegria de uma muito bem-sucedida campanha nos maiores palcos do futebol europeu contrastava, porém, com a difícil situação política vivida no país, que desde que declarou a independência da União Soviética, em 1991, tem tido uma história, no mínimo, atribulada.

Guerras civis, limpezas étnicas e mudanças de poder, tanto violentas como pacíficas, têm marcado a existência deste pequeno Estado no sul do Cáucaso. No entanto, nenhum outro conflito permanece tanto nas mentes dos georgianos como a guerra contra a Rússia em agosto de 2008.

Tudo começou na Ossétia do Sul, território internacionalmente reconhecido como georgiano, mas controlado por separatistas pró-russos e efetivamente dependente de Moscovo. A Geórgia respondeu a sucessivas violações do cessar-fogo de Sochi, assinado em 1992, e entrou no território, mas a Rússia depressa apareceu em socorro dos amigos e invadiu o país vizinho. Algumas das maiores cidades georgianas, como Zugdidi, Poti e Gori, esta última o local de nascimento de Estaline, foram ocupadas por Moscovo durante o conflito.

A guerra terminou ao fim de duas semanas com uma contundente derrota georgiana e a ocupação russa da Ossétia do Sul e da Abecásia, outra região separatista alinhada com o Kremlin, que reconheceu a independência dessas duas autoproclamadas repúblicas.

Mulher georgiana ferida após um ataque russo contra a cidade de Gori, no norte da Geórgia, a 9 de agosto de 2008. Esta fotografia tornou-se uma das mais reconhecíveis da guerra (AP Photo/George Abdaladze)

É de compreender, portanto, a animosidade que uma boa parte dos georgianos sentem em relação à Rússia, o que torna ainda mais difícil de compreender como é que um país tão maltratado por Moscovo pode ter agora um governo pró-russo.

O Sonho Georgiano está no poder desde 2012, quando venceu com maioria absoluta as eleições legislativas. O partido soube capitalizar o enorme descontentamento, provocado em boa parte pela guerra, com o executivo de Mikheil Saakashvili e do Movimento Nacional Unido, que tinha um posicionamento marcadamente anti-Rússia e pró-europeu.

O fundador do partido, Bidzina Ivanishvili, assumiu ele próprio o cargo de primeiro-ministro. Ivanishvili é um bilionário que fez a sua fortuna durante a louca onda de privatizações levada a cabo nos anos 90 na Rússia pós-soviética. Viu muitas vezes o seu nome associado a causas solidárias e ao apoio ao próprio Estado georgiano.

Quando entrou na política, o Sonho Georgiano tinha uma grande diferença face ao Movimento Nacional Unido, explica Levan Kakhishvili, investigador e pós-doutorando no ETH Zurich. “A principal promessa deles em matéria de política externa, que os diferenciava do Movimento Nacional Unido, era o facto de quererem normalizar as relações com a Rússia”, explica. No entanto, o partido tinha também como objetivo aproximar a Geórgia do Ocidente, principalmente com a adesão à União Europeia. Na verdade, ainda tem. A invasão russa da Ucrânia, no entanto, alterou o cenário doméstico da política georgiana.

Ainda nas primeiras semanas da guerra, vários oficiais ucranianos pediram à Geórgia para abrir uma “segunda frente” no Cáucaso, para desgastar a Rússia. Tal não agradou ao governo do Sonho Georgiano, então liderado por Irakli Garibashvili.

Bidzina Ivanishvili durante um comício do Sonho Georgiano em Tbilisi a 29 de abril de 2024 (AP Photo/Shakh Aivazov)

A resposta do governo à invasão russa foi suave. Enviou ajuda humanitária para a Ucrânia, mas recusou alinhar nas sanções económicas aplicadas pelo Ocidente à Rússia, com receio de que tal pudesse vir a prejudicar o país.

Desde então, o executivo georgiano tem andado numa espiral de teorias da conspiração e medidas autoritárias muito próximas das tomadas por Moscovo. A mais popular mentira propagada pelo governo georgiano é a do “partido da guerra global”. Este partido, diz o Sonho Georgiano, é controlado pelos suspeitos do costume – George Soros e empresas de investimento como a Blackrock e a Vanguard, entre outras – e tem como objetivo o prolongamento da guerra na Ucrânia e o assassínio de líderes mundiais.

O atual primeiro-ministro, Irakli Kobakhidze, responsabilizou este partido por tentar arrastar a Geórgia para uma guerra com a Rússia e pelas tentativas de assassinato do chefe do executivo eslovaco, Robert Fico, e de Donald Trump, bem como por conspirações contra a sua própria vida. Até ao momento, Kobakhidze não foi vítima de qualquer atentado.

Uma das leis mais polémicas aprovadas no parlamento do país, ainda não ratificada pela presidente Salome Zourabichvili, foi a dita ‘lei contra a propaganda LGBT’, que proíbe, entre outras coisas, as uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo e as cirurgias de afirmação de género.

Mas nada enfureceu mais os georgianos do que a ‘lei dos agentes estrangeiros’, atualmente designada de ‘lei dos portadores de influência estrangeira’, explica Levan Kakhishvili, pois a palavra agentes “tinha uma conotação mais negativa”. Segundo este documento, todas as organizações da sociedade civil ou meios de comunicação social que tenham pelo menos 20% de financiamento estrangeiro têm de se designar como grupos portadores de influência estrangeira, ficando também sob vigilância direta do Ministério da Justiça e sujeitas a elevadas multas.

Kakhishvili explica-nos o propósito da lei, que diz ser “muito similar” a uma lei aprovada na Rússia em 2012, daí que seja conhecida vulgarmente entre os georgianos como ‘lei russa’. “O objetivo é criar barreiras, que podem ser barreiras burocráticas, para as organizações da sociedade civil, como o fornecimento de muitas informações que são completamente desnecessárias”, diz o investigador e especialista em política georgiana. “Por outro lado, querem rotular estas organizações como ‘agentes estrangeiros’, que trabalham a favor de interesses estrangeiros. Isto cria certa expectativas no georgiano comum. Se eu sou um eleitor normal e vejo que uma determinada organização trabalha para potências estrangeiras, vou suspeitar sempre que criticam o governo. E quando o governo diz que ‘esta crítica é contra os interesses nacionais da Geórgia’, acabo por começar a acreditar neste argumento do governo”.

Manifestantes com bandeiras da Geórgia, UE, Ucrânia e EUA reúnem-se em Tbilisi durante um protesto contra o projeto de lei dos agentes estrangeiros, conhecida como a 'lei russa', a 26 de maio de 2024, Dia da Independência da Geórgia (AP Photo/Zurab Tsertsvadze)

Segundo Kakhishvili, esta lei, para além de poder servir para silenciar a oposição, é profundamente desnecessária do ponto de vista prático. “A maior parte do financiamento proveniente do estrangeiro vem da UE e de outros doadores ocidentais. Portanto, este financiamento já é transparente e o governo já o conhece. As próprias organizações, na verdade, orgulham-se de obter financiamento destes doadores e publicam os seus relatórios. São facilmente acessíveis, especialmente para o governo”.

Os georgianos saíram às ruas durante vários meses contra esta lei. Resultou da primeira vez, quando o Sonho Georgiano arquivou o projeto de lei em março de 2023. Mas o partido no poder decidiu reavivá-la este ano.

O medo da "segunda frente"

A guerra na Ucrânia tem sido muito aproveitada pelo Sonho Georgiano para tentar obter ganhos políticos a pensar nas legislativas de 26 de outubro. Recentemente, o partido lançou cartazes nas ruas que comparam a destruição das cidades ucranianas com a paz e harmonia vivida nas cidades da Geórgia, uma tática condenada pela presidente do país, que o Sonho Georgiano apoiou na altura das presidenciais.

O Sonho Georgiano também tem uma mensagem muito clara sobre o principal partido da oposição: se o Movimento Nacional Unido chegar ao poder após as eleições deste mês, vai abrir uma “segunda frente” da guerra, isto é, a Rússia vai invadir a Geórgia.

Questionado sobre se esta campanha de medo resulta entre o eleitorado georgiano, Kakhishvili responde afirmativamente. “Muitos georgianos ainda têm memórias muito vivas de múltiplos conflitos militares. Houve conflitos na Abecásia e na Ossétia do Sul, ambos na década de 1990. Houve uma guerra civil em Tbilisi e depois também houve a guerra de 2008 com a Rússia. Portanto, todas estas memórias, todo este trauma coletivo, ainda existe, está presente”, explica.

Cartaz político do Sonho Georgiano, que compara a destruição da cidade ucraniana de Mariupol com a vibrante vida noturna de Batumi, cidade georgiana popular entre os turistas (Sonho Georgiano)

“Normalmente, os apoiantes da oposição não acreditam nisso. Mas os apoiantes do Sonho Georgiano ficam assustados, especialmente tendo em conta a assimetria de poder entre a Geórgia e a Rússia”.

Não é de estranhar, portanto, que o atual governo considere que salvou o país. “Porque é que a Rússia não entrou na Geórgia em 2022? Têm uma explicação? Nós salvámo-la, sim! Salvámos a Geórgia, se tivéssemos seguido as exigências que nos foram feitas não só por altos funcionários do governo ucraniano, a Rússia teria entrado na Geórgia em 2022”, disse Kobakhidze no final de setembro.

As ações do Sonho Georgiano têm sido alvo de condenação por parte do Ocidente. Em junho, o Conselho Europeu alertou que o “comportamento” do governo “coloca em perigo” a entrada da Geórgia na União Europeia e fez um alerta relacionado com a lei dos agentes estrangeiros, que “representa um retrocesso em relação às etapas definidas na recomendação da Comissão relativa ao estatuto de candidato”.

Durante um evento a 9 de julho, a bomba caiu mesmo: o processo de adesão da Geórgia estava congelado, disse o enviado da União Europeia ao país, Pawel Herczynski. Com o processo parado, ficou também congelado um financiamento de 30 milhões de euros no âmbito do Mecanismo Europeu de Apoio à Paz.

Apesar disso, Kobakhidze e o seu partido mantêm a ambição de entrar na União Europeia até 2030, mas apenas nos seus termos. “[A UE] tem de respeitar aquilo a que chamam de “dignidade” e a preservação da cultura e dos valores da Geórgia, bem como dos valores familiares tradicionais”, afirma Kakhishvili à CNN Portugal.

Irakli Kobakhidze durante um discurso no Dia da Independência da Geórgia, a 26 de maio de 2024 (Irakli Gedenidze/Pool Photo via AP)

A retórica do Sonho Georgiano tem, no entanto, agradado muito a Moscovo. Os dois países ainda não reataram as relações diplomáticas, mas têm-se aproximado. A 10 de outubro, Vladimir Putin assinou um decreto que levantou a obrigatoriedade de os georgianos terem um visto para estudar e trabalhar na Rússia, e retirou o limite de 90 dias para visitas ao país sem necessidade de ter aquele documento.

Um pouco antes, durante a Assembleia-Geral da ONU de setembro, Sergei Lavrov afirmou que a Rússia estaria disponível para retirar as suas tropas da Abecásia e da Ossétia do Sul e ajudar a Geórgia num processo de “reconciliação” com as duas regiões separatistas. Mas esta benevolência tem um senão, diz Kakhishvili. “Da perspetiva russa, a paz significaria a existência de três Estados soberanos independentes com boas relações entre eles, mediadas pela Rússia”, explica o perito. “No entanto, na perspetiva da Geórgia, a Abecásia e a Ossétia do Sul são regiões do país e não entidades independentes. Um processo de paz que possa vir a ocorrer é, de facto, mais com a Rússia do que com os povos da Abecásia e da Ossétia”.

O Sonho Georgiano parece estar, contudo, interessado em remendar as relações com esses povos. Bidzina Ivanishvili afirmou mesmo que o governo georgiano iria pedir desculpa aos ossetas pela guerra de 2008, uma afirmação que “caiu muito mal” junto da população, refere Kakhishvili.

“É uma tentativa de culpar o anterior governo (de Mikheil Saakashvili) e a atual oposição. Uma das alegações do Sonho Georgiano é o facto de este ser o primeiro governo da Geórgia, desde a reconquista da independência em 1992, que não se envolveu em conflitos militares. E isso é verdade. Ao mesmo tempo, a Geórgia independente não tem uma história muito longa, por isso também não é algo muito especial. Mas isso ajuda-os a apresentarem-se como o partido da paz. E o oposto disso, por definição, é o partido da guerra, que é a oposição. Consolida esta narrativa de que o Sonho Georgiano é pela paz e evita guerras a todo o custo, enquanto a oposição, que é a alternativa nas próximas eleições, vai arrastar a Geórgia para uma guerra com a Rússia”, conclui.

Ivanishvili também mencionou recentemente, durante um comício do partido em Batumi, que queria “ilegalizar” o Movimento Nacional Unido e levar cada “traidor” à justiça pelos “crimes de guerra” cometidos em 2008.

Que fará a Rússia?

As últimas sondagens para as legislativas de 26 de outubro têm dado o Sonho Georgiano na liderança com cerca de um terço dos votos, um valor que tem vindo a descer gradualmente desde as últimas eleições. Na segunda posição segue a União, coligação que integra o Movimento Nacional Unido e que regista quase sempre valores próximos dos 20%.

A eleição deverá ser todos contra um. Das três coligações seguintes nas sondagens, duas são claramente pró-Europeias: a Coligação pela Mudança e a Geórgia Forte. A posição da coligação Pela Geórgia, fundada por Giorgi Gakharia, ex-primeiro ministro e dissidente do Sonho Georgiano, é ainda algo dúbia dado ser mais conservadora e hostil ao Movimento Nacional Unido.

No entanto, caso estas quatro coligações se entendam após as eleições e consigam um acordo de governação, será difícil ao Sonho Georgiano manter-se no governo se falhar a maioria absoluta. Um executivo pró-Ocidental é o que muitos georgianos desejam, mas essa opção acarreta riscos, alerta Kakhishvili, que menciona o mais grave deles.

“Existe o risco de a Rússia interferir e fazer alguma coisa com os territórios ocupados ou talvez ainda pior”, lamenta, apontando para o que está a acontecer na Ucrânia. “Não devemos descartar uma invasão. Um segundo conflito [para a Rússia] é possível, mas depende de como as coisas corram e da real capacidade da Rússia. Não sabemos se eles têm capacidade para essa segunda guerra”.

A formalização da anexação total dos dois territórios separatistas também está em aberto, diz o especialista. “É mais provável com a Ossétia do Sul, pois a Ossétia do Norte fica na Rússia e tal poderia ser visto como a unificação do povo osseta. No caso da Abecásia, não é isso que as pessoas querem”, explica.

“Nada pode ser excluído. A Rússia faz o que faz sem qualquer explicação lógica”.

Europa

Mais Europa

Patrocinados