Começo este artigo deixando absolutamente claro que reconheço e condeno todos os excessos cometidos pelo governo de Israel na Faixa de Gaza desde os ataques de 7 de outubro de 2023. Foram pelo menos 70 mil mortos, mais de 90% das casas destruídas, o uso da fome como arma de guerra, bombardeamentos contra hospitais e escolas, e uma sucessão de crimes de guerra documentados por organizações internacionais. Nada disto é novidade para quem me acompanha. Ao longo de quase um ano e meio como comentador na CNN Portugal, critiquei duramente essas ações sempre que foi preciso, com a mesma firmeza e rigor com que analiso os crimes russos na Ucrânia. E sempre deixei claro que um Estado democrático tem o dever moral de não se rebaixar ao nível de uma organização terrorista como o Hamas ou o Hezbollah.
Mas reconhecer tudo isto não pode significar apagar o que aconteceu no dia 7 de outubro de 2023, um dia que mudou para sempre o Médio Oriente, marcado por massacres, violações, raptos e a execução brutal de civis israelitas. Faço esta ressalva logo de início porque o que direi a seguir pode incomodar. E quero que se entenda desde já: reconhecer e condenar os crimes cometidos pelo governo de Israel não significa aceitar narrativas distorcidas que simplificam uma tragédia e esvaziam o peso das palavras. Porque, apesar de considerar que o governo de Netanyahu comete atrocidades inaceitáveis em Gaza e até crimes de guerra, eu não uso a palavra genocídio para descrevê-las — e isso, por si só, já exige uma explicação mais cuidadosa.
A minha cautela em usar o termo “genocídio” não vem da falta de indignação perante o que acontece em Gaza, mas de respeito pelo sentido das palavras e pelo rigor que o direito internacional exige. A acusação de que Israel conduz uma política genocida soa, à primeira vista, compreensível. Cidades inteiras foram destruídas, hospitais e universidades transformaram-se em ruínas, mais de dois milhões de pessoas foram deslocadas e a fome passou a ser usada como instrumento de guerra. É impossível olhar para isso sem horror.
Mas, no campo jurídico, “genocídio” não é uma metáfora nem um juízo moral. É uma definição precisa, estabelecida pela Convenção das Nações Unidas de 1948, que exige dois elementos coexistentes: a prática de atos criminosos — como assassinatos, tortura, deportações e destruição deliberada das condições de vida — e, sobretudo, a intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso enquanto tal. Essa intenção é o ponto central, e até agora nenhum tribunal internacional chegou a essa conclusão no caso de Israel. O Tribunal Internacional de Justiça aceitou a denúncia apresentada pela África do Sul, apoiada pelo Brasil e por outros países, mas não afirmou que exista genocídio. O Tribunal Penal Internacional apresentou acusações por crimes de guerra e contra a humanidade, não por genocídio.
Nos últimos meses, a palavra “genocídio” passou a ser usada com tanta frequência que, em muitos casos, perdeu o cuidado que deveria acompanhá-la. Vejo pessoas, instituições e até governos recorrerem a ela mais para enviar uma mensagem política e demonstrar a própria indignação genuína do que para denunciar uma atrocidade com base em factos comprovados. E isso é perigoso, porque banaliza um conceito criado precisamente para nomear o inimaginável.
Uma coisa é reconhecer que existem indícios sérios e alarmantes, que precisam de ser investigados e contidos com urgência. Outra é afirmar que o genocídio já está em curso, quando nem mesmo os tribunais internacionais chegaram a essa conclusão. Se um dia isso for comprovado e reconhecido pela justiça internacional, eu não terei qualquer dificuldade em usar essa palavra. Mas, até lá, prefiro manter o rigor — não por fraqueza moral, mas por acreditar que a força das palavras depende da responsabilidade com que são usadas. E digo tudo isto com respeito por quem pensa de forma diferente, porque compreendo que, diante de tanta dor e destruição, é natural que muitos sintam que esse limite já foi ultrapassado.
No dia 7 de outubro de 2023, imagens de bodycams e câmaras de segurança registaram a selvajaria de mais de dois mil terroristas do Hamas, que fizeram desse o dia mais sombrio da história de Israel. Vi algumas dessas imagens, e elas são um murro no estômago: assassinos a rirem-se alto enquanto metralham famílias inteiras que imploram pelas suas vidas, crânios a rebentar, pedaços de osso e cérebro a voar pelas paredes como destroços de um pesadelo. Mulheres são arrastadas pelos cabelos, violadas até os seus corpos se tornarem numa massa irreconhecível de sangue, fluidos e carne rasgada, enquanto os terroristas zombam, cospem nos cadáveres e celebram a destruição. Em áudios gravados, alguns terroristas ligam para as suas famílias em Gaza cheios de orgulho, gritando coisas como “matei dez judeus com as minhas próprias mãos, cortei-lhes as cabeças!”, mostrando facas a pingar sangue e mãos sujas de entranhas.
Uma das cenas mais devastadoras, revelada há pouco tempo, mostra dois rapazes e o pai, todos de roupa interior, acordados logo de manhã e arrastados para um quarto nos fundos da casa. Uma granada explode, e o pai é despedaçado diante dos filhos. As crianças correm para dentro de casa, gritando em desespero, uma delas com os olhos a jorrar sangue. Um dos miúdos, em pânico, tenta explicar ao outro, entre soluços, que “não é brincadeira, é a sério, não é uma partida”. Entretanto, um dos terroristas abre o frigorífico e pega numa bebida.
As imagens de 7 de outubro mostram algo mais difícil de compreender: a perda da própria noção de humanidade. É impossível ver aquelas cenas sem se perguntar onde começa e onde acaba o mal que um ser humano é capaz de causar a outro. Fica claro que algo se quebrou ali — e que essa violência não se limitou às vítimas israelitas. O rasto deixado por aquele dia também atingiu os próprios palestinianos, que hoje, mais do que os israelitas, vivem as consequências mais duras dessa tragédia.
Longe de retirar a responsabilidade de Israel, que cometeu e continua a cometer ações desproporcionadas, brutais e condenáveis, é inevitável refletir sobre a postura do Hamas dois anos depois. No 7 de outubro de 2025, o grupo não tratou essa data como um erro que levou à sua destruição militar e à morte de 70 mil palestinianos, mas recordou-a como um “dia glorioso”. O que leva alguém a celebrar algo que trouxe tanta dor ao seu próprio povo? O que resta de uma causa quando o sofrimento de quem se pretende defender se torna parte da estratégia?
E se alguém, com toda a razão e legitimidade, condena e critica Israel — como deve ser feito — mas ao mesmo tempo minimiza a responsabilidade do Hamas ou o romantiza como uma forma de resistência ou de luta pela causa palestiniana, talvez valha a pena olhar de novo para essa data. Porque a forma como o grupo escolheu lembrar o 7 de outubro, dois anos depois, mostra a sua verdadeira essência: a disposição de sacrificar tudo, inclusive o próprio povo, pelos seus objetivos.