O que aconteceria se Bruxelas obrigasse Portugal a cortar em 15% o consumo de gás?

26 jul 2022, 13:24

Se há quem defenda que Portugal não seria especialmente afetado caso Bruxelas impusesse uma meta de 15% na poupança de gás até à próxima primavera, também há quem tema pelos efeitos deste racionamento na produção de eletricidade nacional. Ministros da Energia chegaram esta terça-feira a acordo para reduzir consumo de gás na Europa e assim precaver um eventual corte russo no inverno

A Comissão Europeia tinha pedido "cabeça fria" a Portugal e aos outros países, como Espanha, Grécia, Polónia ou Hungria, que não aceitaram a proposta de reduzir em 15% o consumo de gás. João Galamba, secretário de Estado da Energia, considerou a medida "insustentável" e "desproporcional" para um país como Portugal, alegando dois aspetos que tornam o plano de Bruxelas desadequado às caraterísticas nacionais: ignora que Portugal não tem interligações com os sistemas de gás do resto da Europa e também que o consumo de gás se dirige essencialmente à indústria e à produção de eletricidade.

Este terça-feira, os ministros da Energia da UE chegaram a acordo para reduzir o consumo de gás e, embora não tenham sido ainda comunicados pormenores sobre o plano, sabe-se já que leva em conta as particularidades portuguesas e de outros países europeus, menos dependentes das importações de gás russo. Portugal e Espanha, por exemplo, não deverão ter de cumprir mais de 8% de poupança de gás. Mas, e se Portugal fosse mesmo obrigado a poupar 15% de gás?

Há quem defenda que este plano de poupança de Bruxelas, que tanto quanto se sabe é voluntário e poderia tornar-se obrigatório em caso de escassez de gás - de acordo com a primeira versão divulgada na semana passada -, teria pouco impacto nos lares e indústria portugueses.

"Somos muito pouco dependentes do exterior em matéria de energia", afirma o ecomomista João Rodrigues dos Santos, em declarações à CNN Portugal. "Já produzimos parte significativa da energia elétrica de que carecemos e só necessitamos de gás natural para a produzir. E parte dela já é produzida a partir de fontes renováveis", esclarece o economista. "Temos capacidade de produzir até 60 por cento da energia elétrica de que carecemos e, com o projeto de hidrogénio em Sines, poderemos produzir até 80%", acrescenta ainda o economista.

Por outro lado, nesta fase, o país tem 100% das reservas de gás garantidas, assegura João Rodrigues dos Santos, "um trabalho que foi feito pelo Governo ainda a montante deste processo", assinala o economista.  Em Portugal, o gás russo representou, em 2021, menos de 10% do total importado.

Para Rodrigues dos Santos, agora é mais importante que o Executivo faça, internamente, um trabalho de desvalorização desta eventual imposição, "na medida em que ela, considerando todas as variáveis, teria um impacto muito reduzido no normal desenvolvimento das atividades económicas e na vida dos portugueses", explica o economista.

E Portugal poderá até tornar-se um agente central na mitigação do problema do gás europeu, se chegar a operacionalizar-se a transferência de gás natural liquefeito (GNL) a partir do porto de Sines para o resto da Europa, hipótese que já foi admitida pelo próprio primeiro-ministro.

No final do mês de abril, a agência Reuters avançava mesmo que Portugal estaria a planear duplicar a capacidade do porto de Sines para receber navios-tanque de gás natural liquefeito e transferir depois o combustível para países europeus que tenham maior dependência do gás natural russo.

Produção de eletricidade sem alternativas ao gás

Uma consequência desta poupança de gás seria, naturalmente, uma subida do preço da matéria-prima, mas "também temos, em Portugal, um teto estabelecido com a autorização da UE para o preço da produção da energia elétrica", lembra Rodrigues dos Santos, pelo que, mais uma vez, esse impacto seria diluído. "Influencia indiretamente na inflação", admite o economista, que ainda assim acredita que, nesta fase de maior alarmismo, seria contraproducente atribuir especial importância a esta poupança forçada de gás, até para a confiança nos agentes económicos. 

"Neste momento, a confiança dos portugueses nos agentes económicos, e a dos europeus em geral, tende a cair. Tudo o que contribuir para minar a confiança é contraproducente do ponto de vista da dinâmica que se pretende para o fluxo da atividade económica, que já está muito afetada", defende o especialista. 

Para Jorge Maria Liça, vice-presidente da Ordem dos Engenheiros, se Bruxelas tivesse insistido com a poupança na ordem dos 15%, poderia colocar a Península Ibérica numa "situação dramática", mas neste momento a Comissão Europeia parece ter aberto um caminho "que dará alguma oportunidade a Portugal", explica. 

Um corte desta grandeza, defende o engenheiro, "poderia significar uma situação de grande risco no abastecimento de eletricidade". Jorge Maria Liça entende que problema não se colocaria para o cidadão comum, dependente do consumo doméstico de gás, mas para a indústria de produção de eletricidade que, este ano, precisa quase exclusivamente do gás para funcionar. "Não há alternativas disponíveis. A eletricidade está afetada pela seca e as renováveis, sobretudo eólicas, também estão de produção baixa por causa dos níveis de vento", assinala o engenheiro em declarações à CNN Portugal. 

"A eletricidade é a base de toda a nossa atividade industrial", sublinha Jorge Maria Liça, que refere que Bruxelas pretende sobretudo "o desvio do gás líquido importado pela Europa para socorrer a falta do gás russo, sobretudo nos países do norte da Europa", explica.

Entre os países mais afetados pela falta de gás, tanto para a indústria como para aquecimento, estaria a Alemanha: "Dado ser um motor económico europeu, se tiver um corte acentuado e não for socorrida por gás GNL que vem via marítima, e que está contratualizado para os países europeus, se não tiver esse recurso, a Alemanha será afetada, assim como toda a Europa", frisa o engenheiro. Um efeito dominó que a Comissão Europeia parece também querer controlar.

Jorge Maria Liça assinala ainda que faltam vias de ligação energética, quer de gás, quer de transporte de eletricidade de muito alta tensão, entre a Península Ibérica e o resto da Europa; um problema estrutural que não tem tido resposta, ainda que a guerra na Ucrânia possa ser uma oportunidade para o repensar e procurar soluções. "Neste momento, a Península Ibérica é excedentária em capacidade de receção de GNL e pode ser exportadora para o resto da Europa, se houver gasodutos, e mesmo em termos de eletricidade, não só eólica", assinala o engenheiro, que pede medidas "a médio e longo prazo para que se construam as infraestruturas necessárias" e uma crise desta natureza não se volte a repetir. 

As alterações de Bruxelas

Perante a oposição manifestada por vários estados-membros, a UE, que recebia da Rússia cerca de 40% do gás natural que consome antes do conflito na Ucrânia, viu-se obrigada a alterar o plano de poupança divulgado na semana passada de acordo com as exigências de várias nações - recorde-se que Bruxelas precisava do voto favorável de uma maioria qualificada no Conselho Europeu, que decorreu esta terça-feira, para aprovar o plano que previa inicialmente uma poupança de 15% de gás até à próxima primavera, precavendo já um eventual corte no gás russo no próximo inverno. 

Com um projeto de poupança que foi criticado por ser talhado à medida da Alemanha e outros países altamente dependentes do gás russo, Bruxelas recuou para não oferecer a Putin a imagem de uma União Europeia dividida. Espanha, um dos países que, publicamente, mais se bateu contra este plano - e que, por razões geográficas, tinha praticamente os mesmos argumentos de Portugal contra o racionamento voluntário - viria entretanto a atenuar o tom dos comentários críticos, acrescentando que não estava em causa a solidariedade europeia, mas apenas a eficácia das medidas.

Até ao momento, ainda não se conhecem pormenores do acordo que foi aprovado pelos ministros da Energia, mas Espanha e Portugal queriam que a meta de redução do consumo de gás se ficasse pelos 5 a 10 por cento, e não os 15 por cento inicialmente propostos pela Comissão Europeia. De acordo com informações recolhidas pela CNN Portugal, terão conseguido fixar essa meta nos já referidos 8%.

"Toda a gente compreende que, quando alguém pede ajuda, temos de ajudar. A ajuda pode funcionar de diferentes formas, mas acredito que o espírito de colaboração vai prevalecer", disse Teresa Ribera, a ministra espanhola da Energia, antes da reunião.

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