ENTREVISTA || Fez milhões de euros em três anos a apostar contra o mundo — agora aposta contra o sistema que o tornou milionário. Gary Stevenson é economista, ex-trader e trocou os arranha-céus do Canary Wharf pelo megafone do YouTube, onde denuncia uma economia que, diz, engorda ricos e "espreme" os mais pobres. De férias em Portugal, aproveitou para apresentar este sábado o seu primeiro livro, "O Jogo dos Milhões"
“Já disse isto antes e volto a dizê-lo: não vamos ganhar isto hoje, não vamos ganhar isto amanhã, por isso mantenham a calma, sejam pacientes, estejam aí uns para os outros, Deus sabe como vamos precisar uns dos outros. Mas continuem a construir, se continuarem a construir, podemos vencer isto com sorte”.
Se isto tivesse sido dito em 2009, o contexto poderia muito bem ter sido diferente. Gary Stevenson, 38 anos, estaria no canto mais afastado da sala de trading, no arranha-céus do Citigroup, no complexo Canary Wharf, em Londres, e não na sua cozinha, a falar para 1,34 milhões de inscritos no YouTube, antes de tirar uns meses de férias em abril deste ano. Estaria a falar para um grupo de milionários agitados, envergando uma gravata às riscas amarelas e uns sapatos bicudos pagos com o seu primeiro bónus de 400 mil libras, sem imaginar que de ali a dois anos seria um jovem milionário. Possivelmente estaria de olhos postos nos ecrãs, imperturbável, a apostar milhões de dólares em movimentos de taxas de juro, ambicionando retornos mais altos no seu próprio bolso.
Aos 24 fez fortuna com o trading, aos 26 percebeu que o jogo estava viciado. Deixou o arranha-céus e tornou-se uma das vozes mais críticas do sistema que o fez enriquecer. Trocou os gráficos pelas redes sociais, os bónus por megafones e atualmente dedica-se a alertar para aquilo que considera ser uma verdade inconveniente: a desigualdade é o maior colapso silencioso do século XXI.
Descobri Gary Stevenson há mais ou menos um ano, a partir da sua página de Instagram: “Gary Economics”. Desconhecia o canal no YouTube, tampouco sabia que estaria em vias de publicar o seu primeiro livro, “The Trading Game” (“O Jogo dos Milhões”), no qual relata toda a sua experiência no turbulento universo do trading. Via apenas um tipo comum, de cabeça rapada e calças de fato de treino, visivelmente irritado com o fim da meritocracia. Rapidamente percebi que é economista, ganha dinheiro a apostar contra o otimismo económico e defende afincadamente as taxas sobre os ricos. Segui-o, queria saber mais.
Algures esta semana percebi, por acaso, que estava no Porto a passar férias, e que estaria em Lisboa para uma apresentação na Feira do Livro. Sublinho “por acaso”: tropecei numa story de um conhecido que estava a tomar copos com ele no Guindalense.“Manda-lhe uma mensagem, é muito acessível”, insistiu esse meu conhecido. Mas não queria duas ou três cervejas numa esplanada, queria uma conversa profunda e esclarecedora, ampliá-la e deixar que outros a lessem – e ouvissem. Enviei-lhe uma mensagem simpática. Dois dias passados aqui estamos, numa livraria em Lisboa. Voltou a trazer aquela t-shirt.
Estamos aqui porque vi uma story de um conhecido meu, no Instagram, há uns dias, a beber cervejas contigo no Porto.
[Risos] Sim.
Ou seja, és apenas um tipo normal de Ilford, leste de Londres, que aos 21 anos se tornou milionário no auge da crise económica, em 2008. Tinhas acabado de conseguir um emprego no Citibank, dois anos depois de pisares o edifício pela primeira vez para um jogo de trading, o que me leva a perguntar: como é que conseguiste tudo isso em tão pouco tempo?
Então, 2008 foi quando comecei a trabalhar lá depois do estágio, tinha 21 anos, mas só me tornei milionário em 2011.
Tornaste-te milionário em apenas três anos, ainda nem 25 tinhas.
Venho de uma família muito pobre, numa área muito pobre no leste de Londres, mas quando era criança era muito bom a matemática. Entretanto, vi que tinham construído um novo complexo de arranha-céus bancários, o Canary Wharf. Está na capa do livro. De onde venho, se as crianças fossem boas a matemática queriam trabalhar em arranha-céus como aqueles. Então, estudei muito. Quer dizer, fui expulso da escola aos 16 anos por vender drogas, mas depois continuei a estudar muito, tirei notas muito boas com 18 anos e pude entrar na London School of Economics (LSE), uma universidade de elite em Londres, com muitos milionários da China, Índia ou Rússia, etc.
Basicamente o meu plano era trabalhar arduamente para tirar boas notas e conseguir um emprego como banqueiro, mas o problema é que, na verdade, o caminho para se tornar banqueiro era conseguir-se um estágio no segundo ano. No segundo ano ainda nem sequer tinha as notas e estava basicamente a competir com filhos de milionários que tinham currículos incríveis: tinham trabalhado para as Nações Unidas Júnior ou tinham tocado clarinete no Royal Albert Hall. E eu? Quando era miúdo tentei ser rapper, trabalhei numa loja de sofás a ajeitar almofadas e vendi pequenas quantidades de droga.
Mas descobri que havia um jogo de cartas, basicamente um jogo de matemática: em inglês chama-se “trading game”, em português “o jogo dos milhões”. Foi a partir desse jogo que consegui um emprego. Era um jogo de números e eu era bom com números. Entrei nessa competição quando tinha acabado de fazer 20 anos, acho, ganhei e consegui o estágio. Era o trader mais jovem da cidade quando fiz 21 anos, pouco antes da crise financeira.
Nos primeiros capítulos do teu livro contas que, quando ganhaste o estágio no Citibank, foste para a rua comemorar com alguns amigos, naquela mesma noite, enquanto gritavas repetidamente “eu vou ser milionário”. Também dizes que estavas faminto por singrar na vida e procuraste conquistar os teus colegas de trabalho e superiores, para te ensinarem a ser um bom trader. Eis que poucos anos depois ganhas um bónus de 2,45 milhões de dólares. Quando olhas para trás, achas que tiveste uma sensação de liberdade, para dormir num bom colchão, comer em restaurantes sem preocupações, viajar, ou uma sensação de vazio?
Quando comecei era muito ambicioso. Queria ter sucesso, mas não tinha ideia do que estava a fazer. Comecei em 2008, houve imediatamente uma crise financeira, e em 2009, quando tinha apenas 22 anos, consegui ganhar bastante dinheiro, basicamente porque havia caos em todo o lado e ninguém estava a prestar atenção a isso. Mas o meu objetivo era ganhar 100 mil libras e disseram-me que se fizesse 10 milhões de dólares para o banco podia ganhar 100 mil libras. Por isso trabalhei no duro, consegui 12 milhões de dólares para o banco e quando o meu bónus chegou, na verdade, eram 400 mil libras. Tinha acabado de fazer 23 anos. Foi como se a minha mente tivesse explodido. Sabes o que é um ovo escocês?
[Risos] Não.
Um ovo escocês é uma receita tradicional britânica. É um ovo cozido cercado de carne de salsicha e coberto por miolo de pão, e é super barato. Quando estava na universidade, todos os dias comia dois ovos escoceses ao almoço por 75 pennies, porque era a coisa mais barata. E lembro-me de que, quando recebi aquele bónus de 400 mil libras, pensei: “Meu deus, todos aqueles ovos escoceses”. Porque é uma loucura, certo? Como disse, era muito pobre quando era criança e vivia a vida a comprar a coisa mais barata. Então, um dia, aos 23 anos, ganho 400 mil libras. Parece até uma piada, uma dança que fazemos para os ricos. A partir daí, quando ia ao supermercado nem olhava para os preços.
Por isso, de certa forma foi uma espécie de liberdade, mas a verdade é que assim que recebi aquele bónus percebi como aquelas pessoas eram, porque eu era super júnior. Ou seja, se estava a ganhar 400 mil libras, esses tipos deviam estar a ganhar milhões. Fiquei obcecado e no livro escrevo que, naquele dia, algo mudou em mim.
Escreveste também que, depois disso, viste um sem-abrigo a dormir agarrado a um edredon fluorescente, mas não manifestaste qualquer emoção.
Costumava ir de bicicleta para o trabalho e era dia de bónus, talvez janeiro, era de noite. Então fui de bicicleta para casa e no escuro vi um sem-abrigo deitado no chão com um edredon muito branco. Lembro-me que a minha reação inicial foi “como é que esse tipo conseguiu um edredon tão branco?”. Foi um momento chocante, sabes? Porque tinha acabado de ganhar aquele dinheiro todo, vi uma pessoa pobre e a minha primeira reação foi uma espécie de julgamento. Passei muito rápido de pobre para rico.
Com este livro não queria dizer-vos o que pensar, só pretendia levar-vos lá e mostrar a desigualdade no mundo. Há um livro de Voltaire chamado “Cândido ou o Otimismo”, onde ele critica o mundo apenas a mostrar o mundo. Essa é a verdade. Em Londres temos uma cidade onde jovens na faixa etária dos 20, 20 e poucos anos ganham milhões de libras enquanto outras pessoas não conseguem pagar uma casa para morar. Muitas pessoas, um número cada vez maior de pessoas. Não faço julgamentos sobre isso no livro, cabe a vocês, leitores, tomar uma decisão.
Fiquei milionário a apostar que a classe média e a classe trabalhadora iam entrar em colapso para sempre"
Dizes que ser rico fez-te perceber como o sistema está basicamente falido e queres mostrar isso ao mundo. Mas o que é que tu viste dentro do sistema que te fez virar a mesa?
Então, fui um trader de 2008 até 2013-2014, é um pouco complicado. Trabalhei durante a crise de 2008 e as pessoas falam muito sobre isso, mas o que as pessoas geralmente não percebem é o quão más eram as previsões dos economistas, dos traders depois da crise de 2008. Em 2008 todas as taxas de juro foram a zero, tivemos expansão quantitativa. Todos pensavam que teríamos uma recuperação muito rápida, e em 2008 todos disseram que ia ser em 2009, mas não aconteceu. Em 2009 todos disseram que ia ser em 2010, em 2010 todos disseram que ia ser em 2011.
No início de 2011 tornei-me realmente cético em relação aos economistas e ao nosso entendimento porque estudei na LSE [The London School of Economics and Political Science], trabalhei na cidade e o que comecei a ver foi realmente um bando de miúdos ricos e chiques, não tão inteligentes, que estavam sempre errados em tudo. Queria entender o que estava a acontecer realmente, porque é que a recuperação não tinha acontecido, porque é que as pessoas não estavam a gastar dinheiro, as taxas de juro a zero deviam fazer as pessoas gastar, mas não o faziam. Então perguntava às pessoas e toda a gente me dizia a mesma coisa: “Não gasto porque não tenho dinheiro”. E isso foi em 2011, vocês portugueses sabem que foi o ano da crise da dívida soberana. O que nós tivemos naquele ano foi uma situação em que famílias comuns não podiam gastar porque não tinham dinheiro. Quando olhei para a situação delas vi a geração dos meus pais, que tinha propriedades, e a minha geração, que não se podia dar ao luxo de ter propriedades.
Ou seja, o que se via era a perda da riqueza da classe média e, ao mesmo tempo, tínhamos governos ocidentais cuja riqueza também estava a colapsar, estavam a acumular dívida. Com uma perspetiva económica daquelas isso não deveria ser possível, certo? Não deveria ser possível o setor público e o setor privado perderem as suas riquezas, e queria entender: para onde estava a ir essa riqueza? Mas claro, estava a trabalhar em trading, rodeado de milionários. Foi quando percebi o que se estava a passar: a riqueza dos ricos e dos super-ricos está a crescer e eles estão a sugar a riqueza dos governos e da classe média, e isso só vai piorar, não se vai resolver sozinho.
Comecei a apostar em 2011 que os padrões de vida iam entrar em colapso permanente, e foi assim que fiz o meu dinheiro nesse ano. Era o trader mais lucrativo do Citibank, no mundo inteiro, a apostar que a classe média ocidental e a classe trabalhadora ocidental iam entrar em colapso para sempre. Foi isso que mudou a minha forma de ver as coisas.
Quem manda nesse sistema?
Quanto mais rico se é, mais poder se tem, não acho que haja uma sala de pessoas a tomar decisões. Quanto mais rico se é, mais rendimento passivo se tem. Acho que é realmente um problema de rendimento passivo de juros compostos. Sabes que alguém vale 1.000 milhões de euros, vai ter um rendimento passivo anual de 15 milhões de euros, isso são quatro milhões de euros por mês. Se estou a ganhar quatro milhões de euros por mês, quanto vou gastar? Eu não conseguia gastar mais de 100 mil euros. Esses tipos não têm escolha, a não ser comprar o resto dos ativos, é o que está a acontecer. Se permitires que um pequeno grupo de pessoas se torne extraordinariamente rico, vão gerar enormes quantidades de rendimento passivo. É essencialmente o que está a acontecer à medida que os ricos ficam mais ricos. Espremem a classe média, o governo e é por isso que as famílias comuns e os jovens não podem comprar casa. Estão a ser superados pelos ricos e os super-ricos.
Apenas um parêntesis, aqui. Referes várias vezes que eras o trader mais lucrativo do Citibank a nível mundial, mas alguns ex-colegas já vieram desmentir essa afirmação. Porque é que isso acontece?
Bem, terias de perguntar e esses ex-colegas [risos]. Alguns deles não estão particularmente felizes com a forma como foram retratados no livro. Suponho que isso fosse sempre acontecer. Escrevi de uma forma talvez não muito elogiosa sobre algumas pessoas muito ricas e poderosas. Para ser honesto, se quiserem saber porque é que os meus colegas me chamaram mentiroso, devem ler o livro, acho que fica muito óbvio.
Mas hoje aquele universo ainda te fascina?
Ainda faço trading.
Consideras-te um viciado?
Não faço trading todos os dias. Por exemplo, estou de férias agora, mas mesmo quando regresso a casa...ok, olho para aquilo todos os dias, mas sabes, estudei na London School of Economics, em Oxford e também fui trader. Na minha opinião, o grupo de pessoas que está realmente a tentar entender o que está a acontecer na economia é, provavelmente, o dos traders. Aprendi muito mais sobre trading do que na LSE ou em Oxford, e se quiser entender o que está a acontecer agora na economia a melhor maneira para mim é olhar para o mercado e falar com os traders, também tentar vencê-los.
Tu sabes, tu vês notícias, muitas pessoas têm opiniões. Assim que começas a experimentar apostar todo o teu dinheiro pessoal nas tuas opiniões, começas a pensar de forma muito diferente sobre aquilo em que realmente acreditas. E acho que, se estabeleceres uma regra que impeça qualquer pessoa de expressar a sua opinião sobre as notícias, a menos que possam perder 100 mil, 200 mil euros se estiverem erradas, provavelmente obterias opiniões muito melhores sobre as notícias.
Faço trading, porque é assim que entendo a economia. Para mim, parar de o fazer seria como tu parares de assistir a notícias, parares de assistir à previsão do tempo. Sabias que os 10.000 economistas mais bem pagos do mundo são todos traders? Se fores o Cristiano Ronaldo, se fores o Leonel Messi, queres jogar na terceira divisão ou na Premier League?
Quero dar boas informações para as pessoas que assistem ao meu canal do YouTube, boas análises. Se não consigo vencer os melhores traders, então não posso dar boas análises. Por isso, provavelmente nunca vou parar. Se sou viciado ou não, essa é provavelmente uma pergunta para o meu psicólogo [Risos]. Gosto de pensar que tenho tudo sob controlo.
Não deixa de ser uma relação de amor-ódio, certo? Às vezes não o queres fazer, mas também sabes que precisas disso.
É o que faço. Tu leste o livro, é muito óbvio que eu acho que há problemas com a cultura do trading e a cultura dos traders, mas o trading é um desporto lindo. Por outro lado, quando digo isso devo ser muito cuidadoso, porque houve recentemente um grande aumento de jovens, especialmente rapazes, a fazer trading em casa, todos os dias, com câmbio, criptomoedas e assim. E quero deixar bem claro que o trading é uma forma de jogo. É perigoso, jogar é viciante, o vício no jogo já destruiu muitas famílias. Qualquer um que considere fazer isso em casa como um não profissional deve ser muito, muito cuidadoso.
No início do livro, relatas uma conversa que tiveste com um superior teu do Citibank, em Tóquio, enquanto jantavam num restaurante asiático. Descreves como te sentiste um pouco entorpecido e ansioso, quando ele partilhou contigo, num tom ameaçador, que era muito difícil sair daquele mundo. Usou inclusive o exemplo de um antigo trader que queria sair, mas acabou completamente falido. Tu, que nessa altura já pensavas fazer o mesmo, como conseguiste fugir desse destino?
Não foi tranquilo. Estou convosco aqui hoje, no fim das contas consegui sair. Eles não me algemaram a uma estação de trading, mas foi difícil. Os administradores de topo tornaram isso difícil. E como referiste, a cena de abertura do livro sou eu a ser basicamente ameaçado por um membro dessa administração do Citibank. Disse-me: “Gosto de ti, acho que és uma boa pessoa, mas às vezes coisas más acontecem a pessoas boas”. Isso foi assustador. Tive de adotar algumas táticas pouco ortodoxas para sair do banco, isso é uma grande parte de um capítulo posterior no livro. Mas não foi só o banco que o tornou difícil, também foi difícil para mim, internamente. Trabalhei arduamente para conseguir aquele emprego, estava a ganhar muito dinheiro, era muito bom no que fazia. Tinha muito sucesso e era bem conhecido. É difícil para um jovem abrir mão de muito dinheiro, mas estava a ficar doente.
As pessoas às vezes perguntam-me porque é que saí. Seria mais fácil para mim dizer, “bem, via que a economia estava em colapso e quis fazer algo em relação a isso”, mas a verdade é que é mais complicado do que isso. Comecei a ficar doente. Acho que algumas pessoas podem pensar que o “Jogo dos Milhões” é um livro de economia ou um guia para o trading, e obviamente tem elementos desses, mas queria realmente vê-lo como um romance, algo que podia simplesmente transportar o leitor, contando a história. Queria expressar as minhas emoções. Estava infeliz, tinha muitos problemas de saúde mental, foi dramático e tive de lutar muito, lutar contra mim mesmo, lutar contra o banco, mas consegui sair e estou aqui agora. Guardei um pouco para mim, algum dinheiro. Tinha comida na mesa.
Saíste daquele mundo e, como tu próprio disseste, canalizaste tudo para mostrar às pessoas como as coisas funcionam lá, do mais entusiasmante ao mais obscuro, os altos e os baixos. Agora dedicas-te a sugerir mecanismos de combate às desigualdades económicas. Consideras-te, portanto, um economista, um ativista ou um desertor do sistema?
Acho que sou um economista. Passo a maior parte do meu tempo a pensar em economia, mas ao mesmo tempo, como quando era trader, é muito sobre o que está a acontecer na economia. Qual é o negócio? Qual é a aposta? Como ganhar dinheiro com isso? Mas essencialmente, o que estou a tentar fazer é promover mudanças económicas. Penso que se nada for feito, a desigualdade vai piorar e o padrão de vida vai continuar a cair. Será mesmo muito problemático se nada acontecer. Em suma, penso em economia, mas não penso apenas na economia, penso em como podemos consertá-la.
Também há uma grande lacuna nos média, no sentido de faltar alguém que realmente explique o que está a acontecer na economia de uma forma acessível, compreensível e acolhedora. É por isso que me afastei desse ramo, escrevia para jornais, mas os meus amigos não liam jornais, estavam a ver vídeos no YouTube e no Instagram. Por isso, percebi que havia ali um espaço enorme nas redes sociais para explicar o que está a acontecer, porque a economia está a piorar cada vez mais e muitas pessoas nos média parecem confortáveis e desconectadas. Estou a tentar preencher esse espaço para consciencializar o público, e está a resultar. Estive fora cerca de um mês e só nesse período tivemos 50 milhões de visualizações no YouTube. O canal está a crescer bastante e temos muita gente a apoiar, por isso vou continuar a passar esta mensagem.
Não estou a ser pago para vir a Portugal, estou aqui para falar com as pessoas. Os políticos estão protegidos, não estão a ser afetados por isso, então é preciso que os cidadãos comuns se manifestem e digam: “Não, exigimos medidas contra a crescente desigualdade”.
A maioria dos economistas discorda de mim e é por isso que ganho milhões, porque eles estão errados e eu estou certo"
O teu Instagram tem, neste momento, mais de 950 mil seguidores e há 1,34 milhões de inscritos no teu canal de YouTube. Certamente és acompanhado por outros economistas e traders, que estão a par da tua visão e fazem alguns comentários. O que é que eles pensam disto tudo?
Conheço alguns deles, porque alguns escrevem nos jornais. Diferentes economistas têm opiniões diferentes. Sei o os meus ex-colegas pensam, alguns gostam disso, outros não gostam. Onde estudei, as opiniões sobre desigualdade não são a maioria, mas sou o tipo que continua a prever corretamente e eles continuam a prever incorretamente.
Se assistires ao meu primeiro vídeo no canal, de junho de 2020, bem no início da covid-19, disse que teríamos uma crise de custo de vida, uma crise de desigualdade, um aumento massivo nos preços das casas, inflação nos preços das ações, preço do ouro, dívida governamental. Naquela mesma época, a maioria dos jornais no Reino Unido dizia que teríamos os “loucos anos 20”, um enorme sucesso económico. Entendo que a maioria dos economistas discorda de mim e é por isso que ganho milhões de libras a apostar nisto, porque eles estão errados e estou certo. Tu sabes que esses economistas não poderiam receber milhões de libras de um banco, porque não têm histórico de grandes previsões. Existem economistas que recebem 50 a 60 mil libras por ano a dar previsões terríveis à população e depois existem pessoas como eu, que recebem milhões de libras por ano a fazer apostas corretas com o dinheiro dos ricos.
Claro que seria muito mais rico se estivesse a trabalhar num arranha-céus, mas escolhi afastar-me desse dinheiro para contar ao público o que realmente está a acontecer e, no final das contas, o público é que vai decidir. Eles podem acreditar em mim e fazer alguma coisa contra a desigualdade, podem proteger a vida dos seus filhos e netos, ou podem acreditar noutros economistas, naqueles que são ricos, e os seus filhos vão viver na pobreza.
A crise de 2008 foi gerida com aumento da desigualdade e da riqueza dos ricos"
A propósito, vive-se uma grande crise na habitação e noutros setores em vários países do mundo, sobretudo Europa. Há muitos milionários, mas também há muitas pessoas sem casa e com rendimentos muito baixos. Pegando em tudo o que disseste, concluis que o mundo está perto de entrar em colapso ou essa é uma visão demasiado fatalista?
Há diferentes maneiras pelas quais uma sociedade pode entrar em colapso. O padrão de vida está a cair para as pessoas comuns, mas de uma forma mais ou menos controlada. As pessoas têm essa imagem de um colapso económico parecido com o de 2008, como o colapso das bolsas de valores, os bancos a explodir, mas o mais interessante não é 2008, é 2010 até agora, um tipo de declínio lento e gradual dos padrões de vida. A minha preocupação é com esse colapso tão ordenado e gradual que não causa nenhuma reação da população.
A crise de 2008, entretanto acabou por ser gerida, mas como é que foi gerida? Com uma queda nos padrões de vida em geral, um aumento da desigualdade e um aumento da riqueza dos ricos. A pandemia foi inicialmente um pouco caótica, mas também foi gerida. E como? Com uma queda nos padrões de vida em geral, um aumento da desigualdade e um aumento da riqueza dos ricos. Desenvolvemos padrões económicos muito bem administrados, que garantem que os padrões de vida piorem constantemente, mas de forma gradual.
Há uma teoria, embora não saiba se é verdade, de que se atirares um sapo numa panela de água a ferver ele vai saltar imediatamente para fora. Mas se ferveres lentamente, o sapo vai ficar lá. Se observares o padrão de vida das pessoas comuns em países como, por exemplo, a Índia ou o Brasil, é muito pior para elas do que em Portugal ou no Reino Unido, mas as pessoas aceitam isso. Sinceramente, acho que o padrão de vida vai continuar a piorar no ocidente, se assim se mantiverem.
Há coisas que me parecem inseguras. A política está a tornar-se mais instável, teremos cada vez mais governos de extrema-direita, existe o risco de um nacionalismo crescente que pode ter consequências graves, como a guerra. Se olharmos para a situação em que estamos agora, política e economicamente, assemelha-se muito às décadas de 1920 e 1930, e todos sabemos como isso acabou.
Pode ser dramático ou não. Se não lidarmos com a crescente desigualdade, isso levará a uma pobreza extrema e eu quero ajudar a evitar isso.
Partidos de extrema-direita são financiados por bilionários, porque lhes cortam os impostos"
Temos vindo a assistir a esse crescimento da extrema-direita em todo o mundo, especialmente na Europa. Aliás, vi que abordas esse fenómeno num dos teus vídeos e explicas a teoria de que a extrema-direita vai dominar a economia mundial em cinco anos. Mas também referes o discurso anti-imigração, que além de o considerares uma manobra de distração por parte destes partidos, também o associas aos bilionários. Como é que estabeleces estas ligações?
Imagina que és o Elon Musk, és um bilionário, muito, muito, muito, muito rico. Estás a ficar mais rico a cada dia, vives uma vida de luxo extremo, mas também podes ver que a situação política não é estável. As pessoas estão com raiva, querem mudanças, há gente por aí a dizer que o problema são os ricos, que é preciso taxar os super-ricos. E tu pensas: "Bem, não quero isso, não quero taxar os super-ricos, preciso de alguma coisa diferente, o que posso fazer para garantir que pessoas como o Gary não ganhem?”. Sabes que o status quo atual está a fracassar e os principais partidos políticos estão a tornar-se cada vez menos populares. As pessoas querem algo diferente, querem mudança. Nesse tipo de situação, é bom para pessoas como eu, novas, diferentes, dizem que taxar os ricos pode tornar-se muito popular. E tu, o que fazes? É óbvio: precisas de uma história alternativa. E qual é a história alternativa? Todos nós sabemos que é a da extrema-direita. Então, se és bilionário, vais financiar esses partidos de extrema-direita. Não sei como funciona aqui em Portugal, mas sei que no Reino Unido é definitivamente verdade, são financiados por bilionários.
Donald Trump é um bilionário e foi financiado por Elon Musk, que é bilionário. Vocês precisam de se perguntar: porque é que esses bilionários estão a financiar esses partidos de extrema-direita? Não será porque esses partidos de extrema-direita cortam impostos de bilionários? Não tenho opiniões fortes em relação à imigração, se as pessoas querem menos acho que têm o direito de o dizer, mas é preciso ter muita cautela. Se olhares para esses partidos que dizem “menos imigração”, abres uma caixa, e vês que o que está lá dentro são partidos financiados por bilionários, que estão a cortar impostos de bilionários.
Alguns partidos à esquerda em Portugal defendem medidas como taxar os super-mega-ricos, a taxa progressiva sobre rendimentos/património, o aumento de impostos sobre os mais ricos. Os partidos à direita discordam. De que forma isso poderia ter um impacto positivo na vida dos cidadãos? E como é que lhes explicarias isso?
Primeiro, quero deixar claro: quando digo “taxar os ricos”, não estou a falar de taxar os trabalhadores com altos rendimentos. Isso costuma ser um grande equívoco. As pessoas pensam que quero taxar quem ganha 60 mil euros, 90 mil euros por ano. Estou a falar de taxar famílias e indivíduos que acumulam riqueza. Famílias e indivíduos que têm património superior a 10 milhões, 15 milhões, 100 milhões, 500 milhões de euros. Se não taxares essas pessoas, a riqueza delas vai crescer e crescer e crescer, por causa dos juros compostos, por causa do rendimento passivo. Se têm uma riqueza que cresce a 5%, 10% ao ano em economias que crescem a 1%, 2% ao ano, de onde achas que vem essa riqueza? Estão a comprar a riqueza que os teus filhos precisam, estão a comprar as casas que os teus filhos precisam, estão a impulsionar o mercado de ações para cima, estão a elevar os preços dos terrenos, a elevar os preços das casas.
Não se trata de odiar os ricos, não odeio os ricos, sou uma pessoa rica. Quero apenas impedir a perda de riqueza da classe média ocidental, dos governos ocidentais e não há como fazer isso sem interromper o crescimento incrivelmente enorme da riqueza dos super-ricos. Não podes permitir que a riqueza deles cresça para sempre e não esperar que a tua diminua para sempre. É tão simples quanto isto: taxar os ricos é a única maneira de proteger a classe trabalhadora e a classe média.
Em Portugal há um problema sério com o custo da habitação. Não sei se estás a par disso.
Um pouco, sim.
A questão da proporcionalidade que abordas nos teus vídeos, e que já referi anteriormente, aplica-se muito aqui: salários baixos e habitação cara. Muitos jovens, já na casa dos 30, continuam a viver com os pais, sem conseguirem perspetivar um futuro. O que dirias a estas pessoas, se elas te procurassem?
A primeira coisa é reconhecer que a economia mudou. O meu pai não foi para a universidade, trabalhou nos correios durante 35 anos. Nunca teve um grande salário, mas conseguiu comprar uma casa, formar família e ter alguma estabilidade. Hoje isso tornou-se muito mais difícil.
Vivemos numa cultura que ainda promove a ideia da meritocracia — se trabalhares muito, vais conseguir. Mas isso já não corresponde à realidade. O que temos agora aproxima-se mais de uma heredocracia. Se os salários não chegam para comprar casa, quem as compra? As pessoas que têm dinheiro. As casas deixaram de ser um bem acessível para quem trabalha e passaram a ser para quem já tem património.
Isto cria um problema sério: dizemos aos jovens que o sucesso depende do esforço, mas depois o acesso à habitação depende da herança. E quando não conseguem, sentem que a culpa é deles. Isso está a gerar uma crise de saúde mental.
Temos de ser honestos: o capitalismo, como o conhecíamos, acabou. Vivemos um novo tipo de feudalismo. Se nasces pobre, morres pobre. Claro que tens de trabalhar, mas não para enriquecer — para sobreviver e tentar dar alguma dignidade à tua família. Se queremos mudar isso, temos de agir juntos. Estou a tentar fazê-lo com o meu canal, com o meu livro. Mas não vamos continuar a alimentar mentiras.
Descobri o teu trabalho através de um vídeo onde dizes que amigos teus não conseguem alimentar os filhos, e que quem não tem pais ricos parte com uma grande desvantagem. Mas no teu caso, conseguiste. Achas que foi mérito, sorte ou talento?
Um pouco de tudo. Sempre tive talento para a matemática. Ganhei competições, tirei boas notas na LSE. Mas também fui expulso da escola por uso de drogas. Se tivesse tido cadastro, nunca teria entrado no mercado financeiro. Consegui o meu primeiro emprego a fazer batota num jogo de cartas. Tive muita sorte.
A verdade é que, mesmo tendo vindo de uma família pobre, consegui. Mas ao longo da minha carreira, nunca conheci outra pessoa que tenha feito o mesmo. Estatisticamente, é quase impossível. Não quero dizer que ninguém deva tentar, mas temos de ser realistas. Se dissermos aos jovens que tudo depende deles, quando na verdade as hipóteses são 0,01%, vamos deixá-los a sentir-se miseráveis.
Não é culpa deles. É o sistema que está desenhado assim. A geração anterior destruiu a meritocracia. O jogo está viciado.
Mas há quem ainda tente "vencer na vida" honestamente — estudar, conseguir um bom emprego, constituir família. Não têm hipóteses reais?
Sim, mas poucas. Os empregos melhor pagos tendem a estar reservados a quem vem de famílias com posses. Estudei economia, e há duas formas de trabalhar nessa área: ou tentas proteger os pobres, ou geres o dinheiro dos ricos. Adivinha qual é a que paga melhor.
Na comunicação social é igual: ou informas as pessoas, ou vendes o público aos interesses dos ricos. Muitos jornais fazem apenas isso, dizem às pessoas o que os poderosos querem que digam.
Ainda assim, há empregos importantes e dignos, mesmo que mal pagos. Trabalhos essenciais para o funcionamento da sociedade. As pessoas que os exercem devem orgulhar-se disso. Eu próprio deixei um emprego altamente remunerado para tentar fazer algo com mais impacto.
Dizes que o sistema está montado para empobrecer a maioria e enriquecer uma minoria. Acha que é incompetência ou intenção política?
Uma mistura de ganância e conveniência. Os que mandam nas nossas economias estão a sair-se muito bem. Não posso falar pelos políticos portugueses, mas no Reino Unido, tivemos por exemplo Rishi Sunak, cujo sogro é um dos homens mais ricos do mundo. Cameron, Blair — todos enriqueceram depois de sair do governo.
Eles não estão a sofrer. E é por isso que não vão resolver o problema. Não lhes interessa. Não estou aqui para convencê-los. Estou a falar com o público. São as pessoas comuns que estão a perder, e que vão continuar a perder, cada vez mais. Se queremos mudar algo, temos de agir em conjunto. O único poder que os pobres sempre tiveram é o número. Só o conseguem usar através da ação política coletiva. Não é glamoroso, mas foi assim que os nossos avós mudaram a Europa: exigindo redistribuição, criando uma classe média com acesso à educação, saúde, habitação, alimentação. Não o fizeram sozinhos, fizeram-no juntos. E temos de voltar a fazer o mesmo.
Repito: cresci em pobreza. Partilhava um quarto minúsculo com o meu irmão, por vezes passávamos fome ou frio. Foi duro. Por isso, sei que o dinheiro é valioso. A comida, a habitação, o aquecimento, tudo isso tem valor. É por isso que me recuso a aceitar que deixemos tudo nas mãos de alguém como o Elon Musk. Precisamos de garantir que as pessoas comuns também têm acesso a essas condições básicas.