A energia nuclear assusta, mas a crise climática dá-lhe uma segunda oportunidade

CNN , Julia Horowitz, Salma Abdelaziz e Li-Lian Ahlskog Hou
8 jan 2022, 14:00
Energia nuclear volta a ser uma possibilidade

Como cresceu na Finlândia, Iida Ruishalme sempre teve uma grande afinidade com a natureza — sobretudo com a floresta, onde adorava fazer trekking com os cães. Agora, receia que as filhas não possam desfrutar dos mesmos dias idílicos, tendo em conta a aceleração da crise climática. Foi por isso que, em novembro, apanhou um comboio noturno na Suíça para se juntar à manifestação que teria lugar na capital alemã, Berlim.

Ruishalme concorda que o mundo precisa de mais parques eólicos e painéis solares, mas o que ela e os restantes manifestantes pretendem é centrar as atenções noutra solução: a energia nuclear.

"Temos de dar uma oportunidade a esta tecnologia", referiu este elemento do movimento Mothers for Nuclear, juntando a sua voz à de dezenas de outras pessoas que ergueram cartazes junto ao famoso Portão de Brandemburgo.

A energia nuclear é uma das fontes de energia com baixas emissões de carbono mais fiáveis que existem, mas a memória dos acidentes nucleares ocorridos em Fukushima, Chernobyl e Three Mile Island ainda está bem presente, alimentando o ceticismo e o medo e dissuadindo os investidores de apostarem em novos projetos nucleares.

Já para não falar que é muito dispendioso construir centrais nucleares. Os prazos de construção e o orçamento estipulado raramente são respeitados e a verdade é que, regra geral, as energias solar e eólica implicam menores custos. O armazenamento em segurança dos resíduos radioativos produzidos é outra dor de cabeça.

A Alemanha começou a reduzir a sua indústria nuclear logo após o acidente nuclear em Fukushima, no Japão, em 2011, altura em que um terramoto e consequente tsunami desencadearam a fusão de três reatores num dos piores acidentes nucleares de todos os tempos. Os seis reatores alemães continuam em funcionamento, mas devem ser desativados até ao final do próximo ano.

 

Manifestantes a favor da energia nuclear junto ao Portão de Brandemburgo, na Alemanha, no sábado, 13 de novembro.

 

Porém, a dimensão da crise climática está a incentivar outros governos e investidores a darem uma segunda oportunidade à indústria nuclear.

Saber se o mundo vai investir em força em energia nuclear vai depender da vontade das populações. Ruishalme espera que consigamos pôr os nossos receios de parte.

"Os nossos instintos não são bons conselheiros na procura de soluções imediatas", referiu, acrescentando que também ela já considerou esta solução "muito arriscada", mas que mudou de ideias depois de pesar os prós e os contras.

A grande decisão da Europa

A energia nuclear pesa atualmente cerca de 10% na produção mundial de eletricidade. Em alguns países, esse valor é superior. Os Estados Unidos e o Reino Unido produzem cerca de 20% da sua eletricidade a partir da energia nuclear. Em França, esse valor atinge os 70%, segundo dados da Associação Nuclear Mundial.

O mundo está agora numa encruzilhada nuclear: pode expandir a sua utilização como fonte de energia, de modo a manter as emissões em níveis reduzidos, ou apostar tudo em energias renováveis, mais rápidas de estabelecer e mais rentáveis – mas pouco fiáveis.

Os apologistas enfatizam que o nuclear produz energia mesmo quando o sol não brilha e o vento não sopra.

"Precisamos que as energias renováveis sejam complementadas com uma fonte de energia fiável 24 horas por dia, 7 dias por semana", referiu James Hansen, um cientista climático da Universidade de Columbia que também participou do protesto em Berlim.

O Governo britânico está de acordo. Atualmente, apoia a construção da primeira central nuclear do país a ser construída em mais de duas décadas, no sudoeste da Inglaterra. O pacote de infraestrutura do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, contempla um financiamento de seis mil milhões de dólares para manter as centrais mais antigas em funcionamento. E o Presidente Emmanuel Macron anunciou recentemente que a França iniciaria a construção de novas centrais pela primeira vez em quase 20 anos.

Significa que a França e a Alemanha estão em espetros opostos do debate, numa altura em que a União Europeia tem de tomar uma decisão crucial sobre se a energia nuclear deve ser incluída na coluna "ecológica" ou "transitória" da lista controversa de fontes de energia sustentáveis que será divulgada na próxima quarta-feira. O resultado pode desencadear uma vaga de novos financiamentos ou descartar o nuclear por completo.

 

A central nuclear de Grohnde, na Baixa Saxónia, na Alemanha. Será desativada no final deste mês.

 

O responsável pela pasta do clima da UE, Frans Timmermans, referiu recentemente que tanto a energia nuclear como o gás natural - que é composto sobretudo por gás metano, com efeito de estufa - podem ser abrangidos pelo financiamento verde.

"Creio que temos de encontrar uma forma de reconhecer que estas duas fontes de energia desempenham um papel importante na transição energética", referiu, num evento organizado pelo Politico. "Isso não as torna verdes, mas reconhece o facto de que o nuclear, sendo uma energia com neutralidade carbónica, é muito importante para reduzir as emissões, e que o gás natural será essencial na transição do carvão para as energias renováveis."

A produção de energia nuclear pode não gerar emissões, mas o urânio que é fundamental para essa produção tem de ser minerado, e esse processo emite gases com efeito de estufa. Não obstante, uma análise da Comissão Europeia concluiu que as emissões da energia nuclear são mais ou menos equivalentes às da energia eólica e inferiores às da energia solar, se tivermos em consideração todo o ciclo de produção.

Hansen, um defensor de longa data da energia nuclear, salientou que ela é crucial nos esforços globais no sentido da descarbonização e que a Alemanha não deve usar a sua influência política para impedir novos investimentos.

“A consequência de tratar esta energia como não sustentável é deixarmos de ter uma solução para conter as mudanças climáticas ao nível a que os jovens estão a exigir”, referiu. "É muito importante que a Alemanha não imponha a sua política ao resto da Europa e ao mundo."

Mas há políticos e especialistas alemães que alegam que os custos elevados e o tempo necessário para construir novas centrais – nunca menos de cinco anos, e muitas vezes muito para além desse prazo – significam que seria preferível investir os fundos noutros projetos.

Os mais recentes dados científicos relacionados com o clima e sancionados pela ONU revelam que o mundo devia reduzir as emissões em quase metade nesta década para termos sequer uma hipótese de limitar o aquecimento global a 1,5 ºC até ao final do século, um limite essencial para evitar o agravamento dos impactos climáticos. O mundo deve ainda procurar alcançar a neutralidade carbónica até meados do século. Isso significa que as emissões devem ser reduzidas tanto quanto possível, e o restante carbono captado ou compensado.

Os compromissos atuais, incluindo aqueles que foram acordados durante a recente cimeira do clima da COP26, na Escócia, só permitem atingir um quarto dos objetivos, segundo dados do Climate Action Tracker.

A Agência Internacional de Energia afirma que a produção de energia nuclear deverá mais do que duplicar entre 2020 e 2050, tendo em vista a neutralidade carbónica. A sua percentagem na produção de eletricidade deverá diminuir, mas isso deve-se ao facto de a procura de energia ter tendência a aumentar, à medida que o mundo enveredar pela eletrificação das máquinas, incluindo carros e outros veículos.

O plano da Agência Internacional de Energia para alcançar a neutralidade carbónica até 2050 aponta para a duplicação da produção de energia nuclear, apesar de o seu peso na produção de eletricidade diminuir, tendo em conta o contributo das energias renováveis, que também deverá aumentar.

 

No entanto, Ben Wealer, que estuda a economia da energia nuclear na Universidade Técnica de Berlim, alega que o mundo não pode esperar por novas centrais nucleares, sobretudo porque os próximos oito anos serão cruciais para a descarbonização.

"Se considerarmos os prazos, esta solução não ajuda sobremaneira no combate às alterações climáticas, pois bloqueia fundos que são necessários para as energias renováveis", afirma.

Mesmo que o mundo tivesse mais tempo, os atrasos são sempre um problema. A central de Hinkley Point C, no Reino Unido, por exemplo, deverá ficar concluída em meados de 2026, seis meses depois do previsto, e os custos não param de aumentar. O valor mais recente aponta para 23 mil milhões de libras (30 mil milhões de dólares), 5 mil milhões de libras (6,6 mil milhões de dólares) acima do previsto aquando do lançamento do projeto, em 2016.

As autoridades alemãs alegam ainda que a falta de um plano global para o armazenamento de resíduos tóxicos deve justificar a exclusão da energia nuclear da lista de fontes de energia "sustentáveis".

Christoph Hamann, do gabinete federal alemão para gestão de resíduos nucleares, enfatizou que os esforços do governo para construir aterros subterrâneos onde os resíduos possam ser armazenados indefinidamente ainda são um projeto em curso.

“Estamos a falar de resíduos muito tóxicos e altamente radioativos, que serão uma dor de cabeça durante as próximas dezenas ou centenas de milhares de anos. E a verdade é que estamos a delegar este problema da utilização da energia nuclear nas gerações futuras”, referiu Hamann.

Vaga de financiamento

Não é apenas a Europa que está a ponderar expandir o uso de energia nuclear. A maior entusiasta é a China, onde estão a ser construídos 18 reatores, à medida que o país responsável pelo maior número de emissões tenta afastar-se do carvão. Este número representa mais de 30% dos reatores construídos em todo o mundo, segundo a Associação Nuclear Mundial.

E o debate está a tornar-se mais complexo, à medida que novas tecnologias nucleares são desenvolvidas e demonstram que podem resultar num maior retorno financeiro.

O governo dos Estados Unidos está a apoiar a TerraPower, a start-up liderada por Bill Gates. A empresa, que quer construir um projeto nuclear de última geração numa antiga exploração de carvão no Wyoming, utiliza sal fundido para transferir calor do reator e assim produzir eletricidade, alegando que isso simplifica a construção e permite ajustar a produção para satisfazer as alterações na procura.

Entretanto, a Grã-Bretanha está a apoiar um esforço da empresa de engenharia Rolls-Royce para construir reatores nucleares de menor dimensão, que acarretam custos iniciais mais reduzidos. Esta medida pode ajudar a atrair investidores privados.

 

Iida Ruishalme, a diretora europeia do movimento Mothers for Nuclear, deslocou-se a Berlim para demonstrar o seu apoio à energia nuclear.

 

"É muito difícil para qualquer país alcançar a neutralidade carbónica sem a energia nuclear", afirmou Tom Samson, diretor-executivo da Rolls-Royce.

As peças de um reator Rolls-Royce são projetadas de modo a que quase todas elas possam ser construídas e montadas em fábrica. Isso limita o tempo necessário para montar todos os componentes num estaleiro de obras dispendioso. Inicialmente, prevê-se que o custo de produção ronde os 2,2 mil milhões de libras (2,9 mil milhões de dólares) por unidade.

“Se voltarmos atrás no tempo, encontramos muitos exemplos de grandes projetos nucleares que passaram por dificuldades”, afirmou Samson. "Pensámos o nosso projeto para ser diferente."

Cerca de 210 milhões de libras (278 milhões de dólares) em financiamento do governo do Reino Unido permitirão que a empresa comece a requerer aprovações regulatórias. Contam construir três fábricas na Grã-Bretanha e começar a produzir cerca de duas unidades por ano, o que abasteceria dois milhões de lares. A primeira unidade deverá entrar em funcionamento no Reino Unido em 2031.

Como termo de comparação, a central de Hinkley deverá fornecer eletricidade a seis milhões de lares.

Samson realça que os reatores de menor dimensão produzem poucos resíduos. O combustível usado de um pequeno reator modular em funcionamento durante 60 anos encheria apenas uma piscina olímpica.

Cisão ou fusão?

Segundo dados da PitchBook, as start-ups de energia nuclear angariaram 676 milhões de dólares em financiamento de capital de risco a nível global nos primeiros nove meses de 2021. É um montante superior ao valor total angariado nos últimos cinco anos.

Esse valor inclui o financiamento para start-ups que exploram a fusão nuclear, que tem atraído mais atenções. Os geradores de energia nuclear atualmente em funcionamento usam tecnologia de cisão, que envolve a divisão do núcleo de um átomo. A fusão é o processo de combinar dois núcleos para criar energia - muitas vezes referida como a energia do sol ou das estrelas.

Os cientistas ainda estão a tentar perceber como controlar uma reação de fusão e transformá-la num projeto comercialmente viável. Mas os investidores estão cada vez mais empolgados com o seu potencial, uma vez que não produz resíduos radioativos remanescentes e não apresenta riscos de causar acidentes como o ocorrido em Fukushima, nem depende do urânio.

A Helion, uma start-up de fusão com sede nos Estados Unidos, anunciou no mês passado que tinha angariado 500 milhões de dólares numa ronda encabeçada por Sam Altman, o antigo presidente da Y Combinator.

Enquanto o mundo pondera sobre o rumo a seguir no que diz respeito à energia nuclear, podemos demorar anos a perceber qual era afinal o caminho certo. Uma análise ao que acontecerá na Alemanha e em França nos próximos 10 ou 20 anos pode fornecer a resposta.

Em última análise, os argumentos sobre as emissões, a fiabilidade e a economia podem ser postos de lado. O verdadeiro futuro da energia nuclear pode depender da opinião pública.

"Um novo acidente nuclear de grandes dimensões pode pôr fim a toda a indústria", afirmou Henning Gloystein, diretor de energia, clima e recursos do Eurasia Group.

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