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A crise e a lei

13 mai 2023, 20:00

É uma crise política que chega ‒ ou mostra - a crise institucional. Mas é fundamentalmente uma crise de leis, na medida em que são elas que estão em causa como consequência. Leis que foram violadas, ignoradas e incumpridas. Leis que foram invocadas, utilizadas e subvertidas. Leis que não explicam o que aconteceu, como aconteceu, com quem aconteceu. E episódios à margem, apesar e além da lei. 

Começando pelo início, o despedimento. João Galamba demitiu Frederico Pinheiro por telefone, retirando-lhe imediatamente acesso ao seu ambiente de trabalho informático e telefónico. A advogada Carmo Afonso, insuspeita de antipatias pelo atual governo, chamou precisamente à atenção para isso nos primeiros dias do tumulto. E se Pinheiro estava a roubar algo que, na verdade, era seu? Se "Frederico Pinheiro ainda era adjunto, teria direito a aceder ao computador como habitualmente fazia", escreveu a colunista do Público, a 2 de maio. 

Também no Contrapoder, aqui na CNN, Sérgio Sousa Pinto, jurista, recusou liminarmente a hipótese de os atos de Pinheiro constituírem um roubo ou um furto.

O conselho de fiscalização das secretas iria igualmente ao encontro dessa tese, negando a ocorrência do dito. A direção do SIS, até para proteger a sua própria intervenção, também. Não havia roubo. Se fosse roubo, seria assunto de polícia; se era assunto de polícia, não era das secretas.

Ora, se não houve roubo, por que foi Frederico Pinheiro impedido de sair do ministério com algo que, pelos vistos, era seu? Se, de facto, cometeu as “agressões bárbaras” de que Galamba o acusou, por que Diabo foi ele a chamar a polícia? Mas mais: se não houve roubo, como todos menos o primeiro-ministro e o ministro parecem defender, por que teve Pinheiro de devolver “a bem” algo que não tinha roubado? E o que tinha o SIS a ver com isso?

A audição do diretor do SIS, ainda que à porta fechada, deixou mais dúvidas do que respostas a essas questões. Segundo relatos recolhidos por jornalistas da especialidade, o responsável pelo serviço revelou que foi o SIS a contactar a chefe-de-gabinete de Galamba e não o oposto. Que não foi o governo, entre os gabinetes da presidência do conselho de ministros e do SIRP, a ativar as secretas. Que, pelo contrário, foram as secretas a agir de acordo com o narrado pela agora eterna “Eugénia”.

Menos mal, dir-me-ão, com algum alívio pela não politização do SIS. Mas falta às explicações das secretas o mesmo que faltou ao conselho que as fiscaliza. A lei. Com base em que lei é que se colocou um homem no terreno, à revelia da Polícia Judiciária e da PSP? Qual o enquadramento? “Não houve ação ilegal”, garantem-nos, mais uma vez em uníssono. E sustentam isso em quê?

De um ponto de vista operacional, o mais surpreendente na versão de Neiva da Cruz é o SIS não saber o que estava no computador do adjunto nem sequer o seu grau de classificação e, mesmo assim, ter procedido como procedeu. Às escuras. A dado momento, se cruzarmos as várias cronologias, nem o SIS nem a PJ sabiam ao certo e simultaneamente onde estava o portátil que o primeiro havia recuperado. Se isto é normal, não imagino o que considerarão excecional.

A política o que é da justiça…

Numa perspetiva política, a crise de maio não significou apenas uma rutura de António Costa com o seu Presidente-amigo. O primeiro-ministro também rompeu com um mantra que há muito apregoa e, aliás, pratica. “À política o que é da política, à justiça o que é a da justiça” foi a cantilena que serviu para livrar o PS da devida introspeção pós-Sócrates, assim como de casos menos tenebrosos como o Galpgate, as buscas no Terreiro do Paço com Centeno a ministro e, mais recentemente, as suspeitas em redor de Fernando Medina.

Frederico Pinheiro não teve direito a esse luxo. Com o ex-adjunto, o que teria sido da justiça foi imiscuído sem escrúpulo no que passou a ser da política. O mais chocante na declaração do primeiro-ministro, naquela terça-feira, não foi a recusa em demitir João Galamba. Foi, como chefe de um governo, ter acusado, julgado e condenado um homem por um crime que cabia aos tribunais decidir. Não a um político.

“Roubo”, disse Costa. “Nenhum roubo”, diz Constança Urbano de Sousa, ex-ministra de Costa. “Nenhum roubo”, confirmam as secretas, tuteladas por Costa.

Pelo caminho, ficou a lei. E não há democracia sem ela.  

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