Frederico Pinheiro, ex-adjunto de João Galamba, foi o primeiro a dar a sua versão dos acontecimentos sobre a situação "deplorável", como disse o primeiro-ministro, que envolve Governo, TAP, serviços secretos, um computador com segredos de Estado, ameaças e agressões. Mas as suas declarações na comissão de inquérito à TAP estão longe de ser conclusivas e continuam a alimentar as dúvidas, que os deputados vão querer ver esclarecidas com a audição ao ministro
Depois de uma bicicleta ter sido (ou não?) atirada contra um vidro do Ministério das Infraestruturas e de terem ocorrido episódios de agressões (a quem?), houve um computador que foi levado do edifício por Frederico Pinheiro, que horas antes ainda servia o Governo como adjunto do ministro João Galamba. Isso motivou a intervenção do Serviço de Informações de Segurança (SIS), os serviços secretos do Estado português, que dependem diretamente do primeiro-ministro. E é esta intervenção que levanta várias questões jurídicas, mas também de legitimidade, uma vez que continua a existir uma dúvida principal: afinal, quem acionou o SIS? Essa será uma das principais questões a que João Galamba terá de responder, ele que esta quinta-feira vai ser ouvido na comissão parlamentar de inquérito à TAP, enquanto ministro em funções ao contrário do seu ex-adjunto, que foi exonerado.
A chefe de gabinete de João Galamba garantiu, esta quarta-feira, que foi ela a contactar o Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP), órgão que coordena o SIS. Terá sido depois disso que Eugénia Correia recebeu uma chamada do SIS para relatar o que se tinha passado. Afinal, o computador levado por Frederico Pinheiro tinha informação classificada, nomeadamente informação sensível relativa à TAP. Mas que informação era essa?
"Recebo instruções de como proceder em situações de eventual potencial risco e agi em conformidade com as orientações que recebi para o exercício das minhas funções", afirmou, explicando que ligou para o Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER) quando lhe disseram que não era possível bloquear a informação que constava no computador levado pelo adjunto.
"O risco não estava nas agressões, mas no facto de naquele computador estarem informações importantes sobre uma empresa estratégica para o país. Cumpri as orientações que tinha", acrescentou a responsável, referindo que também a Polícia Judiciária e a PSP foram chamadas a intervir. A primeira por causa do computador levado, a segunda por causa das agressões.
Nesta formulação foi o SIS quem contactou o Ministério das Infraestruturas, mas João Galamba tinha dito que o "SIS foi chamado para defender propriedade do Estado português". Então, o SIS foi chamado ou foi o SIS quem ligou a Eugénia Correia após esta ligar ao SIRP?
Por esclarecer cabalmente está também o teor das chamadas feitas para o primeiro-ministro e para a ministra da Justiça naquela mesma noite. João Galamba ligou a António Costa e a Catarina Sarmento e Castro para tentar obter conselhos sobre como proceder. O primeiro não lhe atendeu, estava a "conduzir", a segunda já confirmou a conversa, garantindo que a discussão abordou apenas a intervenção da Polícia Judiciária.
Na conferência de imprensa que deu para tentar esclarecer o caso, João Galamba deu a entender que foi dito ao seu gabinete que os factos deviam ser reportados à Polícia Judiciária, mas também ao SIS. "Liguei ao primeiro-ministro, estava penso que a conduzir e não atendeu. Liguei ao secretário de Estado adjunto do PM, julgo que estava ao lado do secretário de Estado da Modernização Administrativa, que disse que eu devia falar com a ministra da Justiça, coisa que fiz. Reportei o facto… disseram-me que o meu gabinete devia comunicar estes factos àquelas duas autoridades [SIS e PJ], coisa que fizemos", disse.
"A minha chefe gabinete… nós articulámos e falámos isto com o gabinete do primeiro-ministro e depois reportámos às autoridades competentes. A minha chefe de gabinete limitou-se a reportar uma coisa que tinha a obrigação de reportar", acrescentou. Só que Eugénia Correia disse que foi ela a ligar ao SIRP, sem que antes tenha informado o ministro.
Dúvidas que só se adensam com as declarações do diretor do SIS, Adélio Neiva da Cruz, que referiu no Parlamento que foi um seu adjunto a receber a ocorrência por parte do Ministério das Infraestruturas.
Quem foi o primeiro a ligar e de quem partiu a iniciativa?
Pressão ao SIS, mas de onde?
Frederico Pinheiro garantiu ter sido "ameaçado" pelo SIS para entregar o computador em causa, mesmo depois de se ter disponibilizado a entregar o portátil no dia seguinte. O ex-adjunto de João Galamba descreveu toda a interação com as secretas, admitindo que não pensou, no início, que estivesse mesmo a ser abordado pelo serviço.
Pediu ao agente que o contactou que lhe desse um número de código, através do qual Frederico Pinheiro confirmou que estava, efetivamente, a ser abordado pelo SIS. “A pessoa que me telefonou é um homem que se identifica como agente do SIS, refere que está a ligar por causa do computador e da informação que lá está", começou por explicar Frederico Pinheiro, questionado sobre os factos ocorridos a 26 de abril.
Alertado por familiares quanto à competência do SIS para aquela intervenção, Frederico Pinheiro disse ter expressado as suas dúvidas ao agente, que "refere que está a ser muito pressionado de cima", admite saber que há informação classificada no computador e sugere que “o melhor” é resolver a questão “a bem”.
De onde vem a pressão referida por Frederico Pinheiro?
Mas a "pressão" não se fica pelo SIS. Ainda Frederico Pinheiro estava a ser ouvido quando as cinco assessoras de João Galamba enviaram um comunicado às redações a negar as afirmações do ex-adjunto no Parlamento. Essa nota referia que "as imagens de videovigilância do edifício mostrarão, com toda a certeza, o estado de cólera em que Frederico Pinheiro se encontrava nesses momentos, arremessando inclusivamente a bicicleta contra a fachada do edifício". Mais tarde, e já ia longa a audição de Eugénia Correia, a chefe de gabinete disse desconhecer o comunicado que aparece com a sua assinatura.
Questionado pelos deputados sobre esta reação, Frederico Pinheiro considerou “indecente continuar a assistir a ataques pessoais” e “ameaças veladas” de divulgação de imagens de videovigilância, admitindo que após ser “sequestrado no Ministério” o que se verá “não é uma pessoa tranquila”. Mas o ex-adjunto foi mais longe, e afirmou ter tido a informação de que o Ministério das Infraestruturas estava, há vários dias, a tentar obter as filmagens.
E essas imagens existem mesmo? E o que revelam? É que Eugénia Correia indicou que a câmara de videovigilância do quarto andar, onde terão ocorrido as agressões, está avariada. Uma informação obtida depois de terem sido solicitadas, no dia dos acontecimentos, as imagens que poderiam ter ficado gravadas.
Computador sim, mas e o telemóvel? E as notas?
Uma intervenção polémica e alargada para recuperar um computador que, como disse a chefe de gabinete de João Galamba, é propriedade do Estado. Temia o Governo que fossem divulgados documentos classificados, nomeadamente sobre a TAP e todo o seu processo de privatização. Acontece que esses mesmos documentos estavam, segundo Frederico Pinheiro, no seu telemóvel.
Telemóvel esse que, como explicou Eugénia Correia, também pertence ao Estado. "Sou eu que pago as faturas desse número e de todos, incluindo o do ministro", disse a chefe de gabinete. Só que, ao contrário do que aconteceu com o computador, não foi requisitada a devolução daquele smartphone, que o próprio ex-adjunto disse tratar-se de um "minicomputador". Porquê?
Frederico Pinheiro disse que, “estranhamente, nunca foi preocupação do senhor ministro das Infraestruturas ou do Governo recuperar o telemóvel” de serviço, que se disponibilizou “voluntariamente para entregar”. O ex-adjunto referiu que, ao contrário do que acontecia com o computador, no seu telemóvel não estavam as notas que teriam sido tiradas por si na reunião de 17 de janeiro entre o grupo parlamentar do PS e a CEO da TAP, na qual participaram dois membros do Ministério das Infraestruturas, sendo ele um deles.
“Porquê? […] Era, efetivamente, no computador que eu guardava as notas sobre todas as reuniões em que participava e não no telemóvel. Ou ainda porque o objetivo do Governo não era a salvaguarda da informação classificada, mas sim a intimidação e ameaça a um cidadão sem qualquer poder político”, realçou o ex-adjunto, adiantando que ainda aguarda agendamento para a entrega daquele equipamento, que acabou por ficar no Parlamento depois de solicitado pelos deputados, e que, entretanto, já está nas mãos da Polícia Judiciária para que os inspetores tentem recuperar informação que desapareceu do WhatsApp, nomeadamente mensagens trocadas com a então CEO da TAP, Christine Ourmières-Widener.
Essas mensagens podem ajudar a esclarecer de quem foi, afinal, a iniciativa de a gestora francesa participar na reunião com os deputados do PS, que já se sabe que serviu para preparar a ida de Christine Ourmières-Widener à comissão parlamentar de inquérito. Essa intervenção também teve, segundo Frederico Pinheiro, dedo de João Galamba. O ex-adjunto disse aos deputados que o ministro das Infraestruturas indicou à CEO da TAP que devia focar a sua intervenção na comissão de economia no plano de reestruturação e nos resultados, evitando "assuntos mais polémicos".
Já sobre a reunião preparatória com deputados do grupo parlamentar do PS que decorreu em 17 de janeiro, Frederico Pinheiro afirmou que o deputado socialista Carlos Pereira disse as “perguntas que ia efetuar” e Christine Ourimières-Widener “mostrou as respostas que daria em relação àquelas perguntas”, tendo sido ainda abordada a estratégia comunicacional.
“E eu próprio recordei à CEO aquilo que tinha sido solicitado pelo senhor ministro das Infraestruturas no dia anterior, que passava por se focar nos resultados e não em assuntos mais polémicos”, reiterou.
“As notas que eu tenho de 17 de janeiro demonstram que o deputado Carlos Pereira indicou as perguntas que pretendia efetuar na reunião, a senhora CEO comunicou as respostas que faria àquelas perguntas e eu próprio recordei à CEO da TAP as indicações que tinham sido transmitidas na reunião do dia anterior sobre a estratégia comunicacional”, sintetizou.
De acordo com Frederico Pinheiro, no comunicado de imprensa que foi emitido pelo Ministério das Infraestruturas no dia 6 de abril “é omitida a realização da reunião de 16 de janeiro” e é “omitido também o facto de o senhor ministro ter tido um papel explícito e ativo na promoção da participação da TAP na reunião”.
“O comunicado só referia que não se tinha oposto […] creio que também a informação que consta dos emails em torno da proposta de resposta à comissão de inquérito demonstra claramente a tentativa de omissão de informação relevante”, enfatizou.
A versão do Ministério das Infraestruturas é que estas notas nunca foram reveladas, nem mesmo quando solicitado por Eugénia Correia que fosse disponibilizada toda a informação até ao dia 5 de abril, para que pudesse seguir o comunicado no dia a seguir. Acontece que Frederico Pinheiro garante que os responsáveis do Ministério "sabiam da sua existência", mas que "em momento algum" lhe pediram as notas.
“Em momento algum me foram solicitadas as notas [da reunião preparatória], sendo certo que sabiam da sua existência”, afirmou Frederico Pinheiro, acusando depois Eugénia Correia de ter ordenado uma intervenção que provocou um "apagão total" no seu telemóvel.
“Parece-me evidente a existência de um padrão de omissões e contradições”, acrescentou, falando em alegadas omissões de factos dos diferentes comunicados e declarações do Ministério das Infraestruturas ao longo das últimas semanas.
Tal como disse João Galamba anteriormente, Eugénia Correia, e o próprio Frederico Pinheiro, confirmaram que foi o atraso na partilha dessas notas que foi apresentado como motivo para o despedimento do ex-adjunto. Só que há uma diferença nas versões: a chefe de gabinete afirmou que Frederico Pinheiro falhou o prazo de entrega das notas, enquanto o ex-adjunto garantiu ter enviado tudo a tempo.
Eugénia Correia disse depois que, afinal, não foi a demora na entrega das notas que justificou o despedimento, mas antes as "informações falsas", nomeadamente as afirmações de que não havia notas. "Isso não é um comportamento aceitável", reiterou a chefe de gabinete. Qual foi, então, a causa do despedimento?
Da bicicleta aos "socos" de Galamba
Puxando a fita atrás, Frederico Pinheiro, Eugénia Correia e João Galamba não teriam sido chamados ao Parlamento se não tivesse havido um episódio que, segundo o primeiro-ministro, foi "deplorável". A versão do Governo é que houve agressões a várias funcionários do Ministério das Infraestruturas no edifício.
Frederico Pinheiro entrou no local para tentar reaver o computador, alegando ter direito ao mesmo, apesar de lhe ter sido dito que tinha sido despedido por telefone, numa chamada em que diz que João Galamba o ameaçou fisicamente com "dois socos". O ex-adjunto negou ter roubado, furtado ou fugido com o computador adstrito pelo Ministério das Infraestruturas, rejeitando também as acusações de agressão, alegando que apenas se libertou em legítima defesa.
“Não roubei, furtei ou fugi com o computador que me foi adstrito pelo Ministério das Infraestruturas. Não parti o vidro com a bicicleta ou com qualquer outro objeto. Estas acusações […] são falsas, injuriosas e difamatórias”, afirmou, acusando o ministro, mas também o primeiro-ministro, de estarem por detrás de uma "campanha" para o denegrir.
Relativamente às acusações de agressão, Frederico Pinheiro também as negou: "Não agredi ninguém, apenas me libertei em legítima defesa de quatro pessoas que me empurraram e puxaram e me tentaram tirar a mochila. Fui eu que chamei a polícia para abandonar o edifício onde me tinham sequestrado”, disse, acrescentando que é "o agredido, não o agressor".
"Fiquei extremamente perturbado pela forma completamente desrespeitosa e inaceitável com que o ministro falou comigo. Nunca antes um superior hierárquico tinha falado comigo daquela forma", sublinhou, voltando a falar nas alegadas ameaças físicas de João Galamba, que Frederico Pinheiro garantiu poderem ser comprovadas caso haja acesso à chamada.