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Diretor executivo CNN Portugal

Isto não é um obituário, é um vivário: Francisco Pinto Balsemão, jornalista e criador de entusiasmos

22 out, 07:35
Balsemão e PSG no Expresso. Pormenor. Foto Expresso

Pedro Santos Guerreiro escreve sobre Francisco Pinto Balsemão, com quem trabalhou entre 2014 e 2019 na direção do Expresso

Um jornal ou presta um serviço aos desconhecidos que o leem ou não presta para nada. Um jornal escora-se nos seus muitos leitores ou não se desancora dos tráfegos de influências de um país cadeado nas suas pequenezes. Um jornal pulsa, vibra, e faz-se por paixão luminosa, não por missão cega. Um jornal tem de ser adulto, não exuberante. Num jornal não se faz jornalismo para ganhar dinheiro, ganha-se dinheiro para fazer jornalismo. E a maior homenagem que aqueles que trabalharam com Francisco Pinto Balsemão lhe estão a prestar está em poucas palavras. Liberdade. Curiosidade. Desafio. Jornalismo.

Não é por acaso que muitos dos testemunhos mais próximos e desassombrados são de jornalistas. E eles poderão dizer também que é desfavorável mitificar e desnecessário conspirar. Nem Balsemão orientava notícias nem Balsemão foi herói, santo ou anjo – foi “jornalista, empresário e político”, por esta ordem. Não foi sequer um fabricante de consensos, foi um criador de entusiasmos. Um líder disposto à esperança e predisposto ao futuro. Era o adulto na sala quanto às respostas e o jovem inquieto quanto às perguntas. Queria saber, descobrir, testar. Queria fazer, desabrir, avançar.

É por isso que Balsemão merece um obituário festivo, ou melhor, não merece sequer um obituário, mas um vivário: viva quem viveu muito!

A mim chamava-me Paris Saint-Germain por graça (nas iniciais do nome) e Cruzado da Era Moderna por desgraça (nos meus arrebatamentos). Nos meus cinco anos na direção do Expresso posso confirmar que não, Balsemão não reunia à quinta antes do fecho nem fazia telefonemas antes das manchetes - mas reunia às segundas para avaliarmos a edição anterior, que ele analisava com olhos de editor, discutindo legendas e fotografias, questionando o texto se fastidioso, apontando a falta e afirmando o em falta. De vez em quando almoçávamos, e dizia-me: “Pronto, cheguei à página 2 e lá estava o cavaleiro bramindo a espada para endireitar o mundo!” Balsemão sempre defendeu o Expresso como uma instituição tão credível quanto estável, um porta-aviões e não uma lancha rápida. Tinha razões para isso: o grande obreiro do Expresso é Balsemão, que construiu e manteve uma marca mais forte que qualquer dos diretores (incluindo Marcelo, cujas marcas no jornalismo político, para o bem e para o mal, perduram ainda hoje) e de que qualquer composição da redação.

Marcelo Rebelo de Sousa, Francisco Pinto Balsemão e Augusto Carvalho, numa célebre foto durante o lançamento do Expresso em 1973 (DR/Expresso)

A sua força vê-se até pelos seus inimigos: Balsemão é amado por muitos e é detestado por alguns e quase todos são seus ex: seus ex-sócios, ex-acionistas, ex-colunistas, ex-jornalistas. Nenhum o foi mais do que Nuno Vasconcellos, seu afilhado, filho do seu amigo e parceiro de sempre, Luiz Vasconcellos, e que quis tirar-lhe o controlo da Impresa, numa fase em que foi cercado por todos os lados, financeiro e político – mas esses cabos ele dobrou, pois caiu a Ongoing, caiu a privatização da RTP e caiu o então ministro Miguel Relvas. Antes, apoiara João Rendeiro até ao colapso confirmado do BPP, de que era acionista e onde perderia dinheiro.

Muitos desses inimigos revelaram-se ou foram revelados nas Memórias de Francisco Pinto Balsemão, editadas em 2021. Das 999 páginas do livro, as mais lidas terão sido as 36 finais, o índice onomástico, que remete para mais de dois mil nomes.  Quando o livro saiu foi um corrupio de telefonemas e mensagens: antes de ler, já toda a gente tinha visto – visto se estava no livro e de que forma aparecia. Quase todos estavam fulos: ou porque esperavam mais espaço ou melhor tratamento. Mas nisso Balsemão não claudicou: depois de uma biografia não autorizada de Joaquim Vieira, que ele processou por causa do conteúdo, o patrão da Impresa, que dizia que só tinha boa memória para coisas inúteis, quis ser ele próprio a deixar o seu último registo e nos seus termos.  

Tanto amor e ódio revelam o magnetismo de Balsemão, um homem verdadeiramente respeitado e influente até morrer e que manteve o poder mesmo depois da fragilização financeira do grupo, resultado de erros do passado em compras demasiado caras, e que foi levando à probabilidade de uma venda. Os erros são anteriores à presidência executiva do filho Francisco Pedro, que conquistou o seu próprio espaço de respeito no grupo, mas o futuro da Impresa está por definir.

Francisco Pinto Balsemão, fundador do PSD, do Expresso, da SIC, ex-primeiro-ministro, sempre jornalista, morreu esta terça-feira aos 88 anos. Talvez seja mesmo o fim de uma era, mas a frase correta a dizer não é que Portugal fica mais pobre com a sua morte, mas que Portugal ficou mais rico com a sua vida. E se há um numeroso exército de pessoas a dizê-lo hoje, que o lamento se transforme em ensejo – e esse seja o seu último legado num mundo que, afinal, ele nos mostrou que todos podemos deixar melhor. 

 

Foto no topo: equipa do Expresso a 6 de janeiro de 2018, na comemoração do 45º aniversário do jornal. Pormenor. Foto Expresso.

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